Trezentos e um

Numa recente viagem a Pucón, no Chile, o fotógrafo e escalador Roberto Linsker decidiu subir o vulcão Villarrica. O que ele viu por lá foi mais que a beleza daquela montanha: foi o prenúncio de uma tragédia

Por Roberto Linsker (texto e fotos)


FORMIGUEIRO: Turistas sobem em filas indianas a encosta nevada do Vilarrica

O VILLARICA É UM CONE NEVADO que traduz simetricamente aquilo que todos esperamos de um vulcão. Sua presença domina tanto a paisagem quanto o imaginário coletivo da pequena Pucón, no centro do Chile. Com 2.856 metros de altitude, ele se destaca nitidamente no entorno, sendo visível quilômetros antes de se chegar à cidade. Quem aterrisa em Temuco num dia claro pode ver tanto o Villarrica quanto o Lanín, um outro colosso que adorna este trecho da cordilheira andina.

Os vulcões desta parte dos Andes são geologicamente ativos. É comum ver nas crateras a presença de gases, fumaça, cinzas, pequenas explosões e, ainda que raramente, erupções de lava. Todos estes são sinais claros de vulcões adormecidos, prontos para despertar a qualquer momento se a pressão magmática no seu interior aumentar além da conta. Foi o que aconteceu em 2011 em um vulcão vizinho, o Puyehue, que expeliu grande quantidade de cinzas que afetaram o trafego aéreo no cone sul, além de causar outros prejuízos.
Em Pucón, hospedado no hotel Antumalal, minha rotina dos primeiros dias era de contemplação – comer cerejas e mirtilos no café-da-manhã, mergulhar nas águas transparentes do lago, incursionar pelas trilhas próximas em busca de surpresas. As primeiras jornadas aconteceram sob uma temperatura na casa dos 40ºC, o que achei estranho para aquela latitude. Entonces, o melhor a fazer era ficar quieto, pé no chão, de preferência à beira do lago, nas areias escuras de origem vulcânica.

Numa tarde, conversei com um casal e seus dois filhos adolescentes, também hospedados no hotel, que retornavam do topo do vulcão. Estavam cansados e muito felizes. Olhei no mural do hotel e a meteorologia previa a chegada de uma frente chuvosa. Na mosca. Ao entardecer, o horizonte que separava o céu das águas azuis do lago encheu-se de nuvens escuras e na manhã seguinte uma chuva intermitente ocultava o vulcão. Agora, se eu quisesse subir, precisaria aguardar a passagem dessa frente. Tudo bem. Fazia um bom tempo que eu não escalava um pico nevado e uma gostosa ansiedade tinha se instaurado em mim. Esperei paciente e feliz durante três dias: estava bem alojado, a comida era boa e os vinhos excelentes. Nenhum desconforto, nada que pudesse se comparar às escaladas do passado.


PAUSA: A cada hora os grupos param para recuperar o fôlego, ao lado,
guias dão recomendações de segurança e de uso dos equipamentos


TÉCNICA: Na subida todos os escaladores devem se manter no mesmo "trilho"

E então um lindo dia amanheceu: o céu límpido de novo, o ar refrescado. E eu tinha mais três dias pela frente! Fui me informar na portaria do Parque Nacional Villarrica e lá fiquei sabendo que precisaria contratar os serviços de uma agência. "Sin guia no se sube", afirmava categórico o guarda-parque. Muito a contragosto, voltei a Pucón para cumprir esses trâmites e reservei em uma agência a última vaga disponível para o dia seguinte. Não gosto muito de participar de excursões comerciais, e não tenho costume de contratar guias neste tipo de atividade. Detesto me sujeitar ao ritmo alheio, seja pelo fato de às vezes eu me demorar fotografando ou ainda porque existe a chance de um grupo de indivíduos desconhecidos ser lento.


RECOMPENSA: A paisagem é deslumbrante durante toda a subida do vulcão

PUCÓN VIVE DESDE 2005 um boom turístico alavancado por atividades outdoor: rafting, canoagem, mountain bike, trekking e esportes naúticos transformaram a pequena cidade chilena em um dos points mais freqüentados do pais. Não por acaso, lojas de vestuário e equipamentos como Patagônia e The North Face estão lá – e sempre cheias.

A ascensão do Villarrica é vendida como um programa turístico. Mais um. Em qualquer agência a informação é a mesma: são 4 a 5 horas ladeira acima, é preciso levar água e lanche e estar na agência às 6h30 da manhã para experimentar os equipamentos que eles emprestam – capacete, botas, crampons, piqueta, polainas, calça, agasalho, luvas, óculos e até mochila se precisar. A partida é às 7h00.

Cada agência transporta os seus grupos de van até a base da estação de esqui, que funciona somente na temporada de inverno. Ali o cliente pode escolher se prefere iniciar a caminhada ou utilizar o teleférico para poupar uma hora de esforço. As cadeiras do teleférico levam os turistas até praticamente a linha de neve. De lá, para vencer o desnível de 1.400 metros até o topo, serão no mínimo quatro horas de uma subida relativamente árdua. O tempo de ascensão dependerá do seu condicionamento físico, da sua desenvoltura para avançar na neve usando crampons e ainda, do sempre imprevisível e limitante "ritmo" do grupo. Por isso, reze para que a turma que fará a empreitada com você tenha condições similares, senão você terá de esperar o tempo todo ou os outros irão lhe esperar o tempo todo. Ócios do ofício.

O meu grupo começou com seis pessoas. Cara a cara com o vulcão, uma garota desistiu. Ficamos então três argentinos, uma inglesa e eu, além dos dois guias chilenos. Se comparado aos grupos que vi naquela manhã, o nosso era pequeno e felizmente o ritmo da turma não era nada ruim. Seguimos sem grandes dificuldades. Não há segredos para andar numa encosta de neve: é sempre um passo após o outro num contínuo zigue-zague, sem esquecer, nas viradas, de mudar a piqueta de uma mão para a outra (ela deve ficar sempre do lado de dentro, para brecar qualquer queda ou derrapada). Depois que você se acostuma, o movimento fica automático, como trocar as marchas de um auto.

OLHANDO MONTANHA ACIMA ou abaixo, era difícil acreditar no cenário. Calculei que haviam cerca de trezentas pessoas serpenteando pelas encostas. Não me lembro de jamais ter visto tanta gente numa montanha. Segundo o nosso guia, janeiro e fevereiro são os meses de maior movimento. E devia ser mesmo – nesse dia, algumas agências conseguiram reunir grupos com mais de vinte clientes.

Pouco antes de chegar na cratera, enquanto fotografava aquela colorida procissão, pensei no quanto as montanhas foram transformadas por nós nestas últimas décadas – típica reflexão saudosista de um ex-escalador. Elas nunca foram tão democráticas quanto hoje. O acesso, para o bem e para o mal, foi facilitado pela presença de guias e empresas que viabilizam, por um punhado de dólares (70, no caso do Villarrica) o sonho que antes era impossível para a grande maioria dos mortais.

Jon Krakauer já discorreu extensamente sobre o assunto ao analisar as ascensões himalaianas no livro No Ar Rarefeito. Mas claro, o tema é recorrente. Principalmente quando acidentes acontecem. E no passado mês de março, um deles encheu as manchetes dos noticiários: um jovem brasileiro escorregou e caiu numa fenda ao ascender o Villarrica, num deslize que lhe custou a vida.

Em algumas situações, saber avaliar com clareza o próximo passo é a diferença entre viver ou morrer. Já perdi três amigos escaladores que mesmo conhecendo o terreno que pisavam e o risco inerente, decidiram ir adiante. Não creio que a maioria desses trezentos que diariamente sobem o vulcão tenha consciência desse risco. Mesmo o Villarrica não sendo uma montanha com exigências técnicas, continua sendo uma montanha.

Talvez todas aquelas pessoas se sintam seguras vendo tanta gente ao redor. Nada poderá lhes acontecer, certo? Minha reflexão é simples: quanto mais gente for para a montanha, alheia ou descrente dos riscos, mais gente vai morrer na montanha. É uma mera questão estatística.

Roberto Linsker é fotógrafo e editor de livros, idealizador das coleções Brasil Aventura, Cuidados pela Vida, Tempos do Brasil e Fotógrafos Viajantes, todas pela Terra Virgem Editora. Escalador de rocha e alta montanha nas décadas de 1980 e 1990, realizou, entre outras expedições, as primeiras ascensões brasileiras do Huascarán e Alpamayo, ambos no Peru, e participou da 1ª Expedição Brasileira ao Monte Everest em 1991. É autor do projeto fotográfico Mar de homens, que durante oito anos percorreu o litoral brasileiro e resultou no livro homônimo

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2012)