De férias no perreguenstan

Nosso repórter decidiu conhecer de perto um dos países mais perigosos do mundo: o Afeganistão. Para isso, contratou um agente de viagens especializado em levar gringos malucos para passeios “turísticos” pela terra dos talibãs. Durante dias, comeu mal, passou maus bocados nas estradas empoeiradas, morreu de medo e não conheceu um criminoso sequer – mas mesmo assim decidiu contar aqui sua aventura às avessas

Por Damon Tabor (texto e fotos)


TURISTA ACIDENTAL: Damon, o autor desta reportagem, posa em estrada próxima à Band-e-Amir

O TALIBÃ COBROU SÓ US$ 1 PARA NOS DEIXAR passar pelo primeiro “posto de controle” da estrada – na verdade, um bloqueio em uma terra sem lei. Já no segundo, pagamos US$ 2. Era um assalto na cara dura, mas isso não tinha muita importância para nós naquele momento. Estávamos viajando em um microônibus Toyota sem blindagem, com pneus carecas e um adesivo desbotado com o rosto de Alá colado no vidro de trás. Os homens nos postos de controle empunhavam armas, então o jeito foi pagar o “pedágio” com um sorriso no rosto.

Mas quando chegamos ao posto seguinte, o clima dentro do carro já estava pesado. Todo mundo estava nervoso com a possibilidade de um sequestro. O cansaço batia forte depois de vários dias de viagem casca-grossa em estradas de terra que não passavam de trilhas cheias de buracos e valas. E não aguentávamos mais comer kebab de carneiro.

No terceiro bloqueio, uma corda de nylon rosa tinha sido esticada entre dois postes de madeira. Paramos, e um cara na casa dos 40 anos com um sorriso de escárnio e uma pele morena cheia de linhas de expressão se aproximou. Outro mais jovem com uma AK-47 estava sentado debaixo de uma árvore enquanto um bando de turbante observava à distância – um deles segurando um rifle automático e outro, um celular. O cara de 40 anos conversou com nosso motorista em dari, uma das línguas locais, e ele, que até então se mostrara geralmente grosso, respondeu pianinho. O homem se virou e olhou para nós. Seus olhos eram claros e frios, e aos poucos ele foi deixando nosso motorista nervoso. Então deu um passo para trás, desamarrou a corda rosa e a deixou cair no chão.

Continuamos pela estrada e entramos em uma aldeia poeirenta em frangalhos chamada Chisht-e Sharif. Um helicóptero do exército dos EUA zunia no céu. Picapes carregadas com soldados do Exército Nacional Afegão vestindo máscaras negras e levando armas aceleravam pela estrada, na direção de onde viemos.

“Não não poderia vir ao Afeganistão e não ver alguns talibãs, certo?”, comentou nosso guia, um inglês de 70 e tantos chamado Geoff Hann. Sua pele era corada e as sobrancelhas, grossas. Com sua barba branca e touca de estilo local, ele poderia se passar por um afegão. Geoff vinha guiando excursões pelo país intermitentemente por mais de 30 anos. Mas naquela hora até ele parecia assustado.

Eu estava de “férias” em uma pequena excursão cujos participantes tinham pago a Geoff, o dono de uma empresa do Reino Unido chamada Hinterland Travel, US$ 3.700 pelo prazer de viajar por uma zona de guerra. O trabalho dele era assegurar que as pessoas que compraram o pacote para essa viagem continuassem vivas enquanto atravessavam um dos países mais perigosos do planeta. Geoff também opera em lugares mais seguros, porém sua reputação é mesmo de especialista em cuidar de turistas aventureiros em países como o Iraque e o Afeganistão – lugares onde outros guias não põem os pés, não importa quanto dinheiro dêem a eles.


ROTINA: À esq., Geoff Hann numa casa de chá e militares afegãos

Seria difícil pensar em um roteiro de férias menos atrativo que essa nação do centro da Ásia. Viajei em agosto de 2010, quando as forças dos EUA e da OTAN estavam em uma grande ofensiva para esmagar a resistência dos talibãs entrincheirada no sul e no leste do país, que também vinha ganhando força em áreas mais pacíficas do norte e oeste. O mês anterior havia sido o mais mortal para as tropas norte-americanas desde que os talibãs tinham sido expulsos do governo em 2001 pelo exército dos EUA e seus aliados afegãos, depois de vários anos de um brutal regime fundamentalista.

Os atentados de homens-bomba eram frequentes, bandidos armados vagavam pelas estradas e o sequestro se tornava um lucrativo empreendimento comercial. O governo central – presidido fragilmente da capital, Cabul, pelo presidente Hamid Karzai, apoiado pelos EUA – exercia pouco controle fora das principais cidades, e a segurança em qualquer lugar era, para dizer o mínimo, tênue. O guia Lonely Planet, bíblia dos mochileiros, alertava os visitantes: “Centenas de grupos ilegais armados operam com liberdade”, estava escrito no guia. “Sequestros continuam sendo uma ameaça. Sabe-se de grupos criminosos que vendem reféns pela melhor oferta, normalmente para os rebeldes.” Funcionários de ONGs, jornalistas e os poucos turistas – os únicos estrangeiros no país além dos militares – estavam cada vez mais confinados às cidades e costumavam viajar em carros blindados com guardas armados.

Por causa da instabilidade no Afeganistão, os roteiros de Geoff eram sucessões de improvisos que ele chamava de “teorias”. Teoricamente, iríamos de avião para Peshawar, no Paquistão, para depois seguir de carro até a Passagem de Khyber para Jalalabad, no Afeganistão. Porém as forças da OTAN estavam usando o Khyber para transportar comboios de suprimentos, o que o tornava irresistível para rebeldes – e instransponível para nós. Assim, Geoff comunicou a todos os clientes o novo plano: voar de Dubai a Cabul, depois alugar um micro-ônibus para nos levar várias centenas de quilômetros pelo centro do Afeganistão, de Cabul a Herat, uma cidade perto da fronteira com o Irã. Dali faríamos um desvio até Mazar-e Sharif, no norte, para finalmente retornar a Cabul – tudo sem veículos blindados ou seguranças armados.

A viagem evitaria as regiões mais perigosas do país – as províncias de Kandahar e Helmand, no sul –, mas lugar nenhum do Afeganistão era realmente seguro. Em Cabul, havia sequestradores e homens-bomba. Na estrada, multiplicavam-se bandidos, talibãs, jihadistas e minas improvisadas. No noroeste, ficava a pior estrada do Afeganistão e uma notória cidade sem lei, Bala Murghab, abarrotada de rebeldes. No nordeste, que já fora considerado seguro, o Talibã tinha recentemente tomado o posto de controle do governo ao norte de Cabul, onde decapitou seis policiais. Até mesmo os animais eram perigosos: em dezembro de 2009, o Talibã atacou tropas britânicas usando um “burro-bomba”.

Geoff propagandeia suas excursões ao Afeganistão como uma chance única de se ver de perto o interior montanhoso e escarpado do país e dormir no chão em tradicionais casas de chá – além de cruzar estradas em micro-ônibus que pulam como touros mecânicos. São também uma oportunidade de ser um turista em um lugar onde quase não há nenhum. No Afeganistão, não existem mochileiros ou gente que faz excursões de um dia em ônibus confortáveis. A proximidade com o perigo é a verdadeira essência da viagem de Geoff – uma breve caminhada pelo lado escuro do Hindu Kush, a belíssima cordilheira que fica na divisa com o Paquistão. Com sorte, você sai dessa experiência se sentindo mais vivo que nunca. Sem sorte? Melhor nem pensar nisso.


NO IMPROVISO: Conserto de estrada feito por moradores

PARA GEOFF, A ESTRADA até essa carreira começou em 1970, quando ele viajou de Kombi da Grã-Bretanha até Bombaim (hoje rebatizada de Mumbai), seguindo sua então esposa que tinha ido morar em um centro de meditação indiano. Mais tarde Geoff a deixou para cortejar uma mulher que conheceu em uma de suas excursões. Nativo de Surrey que largou a escola aos 17 anos, ele serviu na Força Aérea de Sua Majestade em meados da década de 1950 e depois trabalhou durante vários anos na empresa de manutenção elétrica do pai.

A corrida atrás da esposa despertou nele o apetite por viagens sem redes de proteção. Nos anos 1960 e início dos 1970, o Afeganistão, na época uma monarquia constitucional, estava sendo invadido por ônibus de dois andares reformados e Kombis com pinturas psicodélicas que transportavam ocidentais encardidos indo de Londres à Índia ou ao Nepal – era a chamada “rota hippie”. Em 1971, Geoff inaugurou a agência Hann Overland e guiou “um bando de gente esquisita” em uma Land Rover de 12 lugares de Londres a Bombaim. No caminho, o grupo escapou de bandidos, foi roubado na Turquia e passou por regiões extremamente ermas do Afeganistão. “No final da viagem, a galera estava um pouco abalada, mas foi muito empolgante”, conta ele.

A empresa de Geoff, que fazia principalmente excursões pelo Iraque, faliu depois que a primeira Guerra do Golfo interrompeu os voos para Bagdá. Ele lançou então a Hinterland, depois que o conflito acabou em 1991, focando sua energia principalmente no Afeganistão e no Iraque. Mas Geoff também guiou viagens para outras zonas de perigo, incluindo a Caxemira, Burma (hoje Mianmar) e Paquistão. Ele já conheceu a prisão na Índia, onde foi interrogado por diversos departamentos de segurança e levou uma coronhada de um rifle na cabeça. Carrega uma faca estilo militar e mantém uma pistola escondida com um vendedor de tapetes paquistanês chamado de “seu Ralph”. Durante uma já legendária viagem pelo Iraque depois da invasão norte-americana em 2003, os grupos de Geoff testemunharam um homem ser linchado em Mosul e estiveram a apenas um quarteirão de distância quando um carro-bomba explodiu do lado de fora da embaixada turca em Bagdá. Em 2007, Geoff viu-se em meio a uma troca de tiros entre dois clãs em guerra no Afeganistão, onde negociou um cessar-fogo na hora e guiou seu grupo, ao estilo de Moisés, por entre as facções rivais. Incrivelmente, nenhum cliente foi seqüestrado ou morto nos últimos 40 anos, mas Geoff acredita que é melhor eles se inscreverem para suas excursões com os olhos bem abertos.

“As pessoas embarcam em uma viagem como esta porque querem, por vontade própria”, explica. “Se algo acontecer com um dos clientes, sinto muito. Lógico, faço o melhor que posso para evitar isso. Mas, se algo acontecer, paciência. Quem disser que não sabe dos riscos é um idiota. Está na TV todos os dias.”

Geoff é cauteloso, mas deixa seus clientes passearem livremente sozinhos nas cidades – algo que a maioria das empresas ocidentais e ONGs em zonas de guerra consideram insanamente arriscado. Seus roteiros atraem viajantes aventureiros, mas que estão longe de ser um bando de viciados em adrenalina ou em guerras. A maioria já passou da meia-idade, não é casada, tem bom gosto e não possui filhos. Carregam passaportes com carimbos de países como a Síria, o Paquistão e o Sudão – locais que os ocidentais normalmente preferem ver só pela na televisão. Alguns estão eliminando itens de sua lista de “coisas a fazer antes de morrer”, e muitos parecem motivados pelo desejo de admirar de perto os esplendores do mundo. O Afeganistão, para eles, é a próxima fronteira, e o fato de ser perigoso faz parte da atração.


O GUIA: Geoff em uma das vans caindo aos pedaços da viagem

Como não é de surpreender, Geoff é alvo de críticas. Um viajante ocidental com extensa experiência no Afeganistão, e que pediu para permanecer anônimo, afirma que o que Geoff faz é pura irresponsabilidade. “Há empresas em Cabul em que eu confiaria para levar gente para o Afeganistão”, diz. “São formadas por locais, têm procedimentos de segurança bem estabelecidos, oferecem assistentes para jornalistas estrangeiros, empresas e ONGs. Mas a Hinterland não é nada disso. Só porque Geoff até agora teve sorte não torna suas excursões seguras.”

Geoff conhece os riscos, mas argumenta que é possível se locomover pelo Afeganistão se a pessoa combinar corretamente informação consistente e prudência, pulando entre ilhas de segurança como se fossem pedras em um riacho. Em todas as viagens, ele tenta provar que a sabedoria comum do mundo está errada sobre onde as pessoas devem ou não ir. “Estou tentando dar às pessoas liberdade para se locomover em áreas restritas”, diz, com convicção.

“JÁ ESTAMOS AQUI tempo demais”, disparou Geoff dois dias depois de chegarmos de avião em Cabul e nos hospedarmos no hotel Spinzar, que conta com guardas sonolentos com AK-47s tinindo de novos em uma guarita na entrada da frente. Ele desenvolveu algumas regras sobre como ser um turista em um lugar perigoso como o Afeganistão: não ficar em um único lugar muito tempo, não contar a ninguém para onde se está indo e evitar veículos militares ou da ONU – algo bem difícil, já que eles estão em toda parte em países assim.

Na manhã do terceiro dia, subimos em um micro-ônibus para seguir ao norte, na direção de Bamiyan, local das famosas ruínas budistas destruídas pelos talibãs. Havia relatos de atividade do Talibã na estrada adiante, mas ninguém no grupo parecia ansioso. Sue Hynard, uma executiva de Londres com quase 60 anos, já tinha participado de uma viagem ao vale de Swat no Paquistão na época em que estourou uma disputa entre o exército e alguns rebeldes, e sua atitude diante disso foi a típica para esse grupo. “Turistas compram pacotes de viagens para lugares como Torremolinos”, disse ela, referindo-se ao superurbanizado centro de resorts no sul da Espanha. “Nós somos viajantes.”

Os outros aparentemente se sentiam do mesmo modo. Peter Haug, um professor norte-americano de 58 anos, já se perdeu nas terras selvagens do Butão, sendo resgatado por tropas do exército. Cameron Rose, um professor de matemática aposentado alto e pálido da Inglaterra, participou de uma viagem noturna com um contrabandista de açúcar do Líbano à Síria. Kent Rausner, um hoteleiro dinamarquês de 44 anos que vive na Tailândia, teve uma faca apontada para ele em Dakar, capital do Senegal. A pessoa mais velha do grupo era uma pequena mulher indiana de 75 anos chamada Bithi Das, que caminhava com uma bengala e exalava a tranqüilidade de um iogue. Ela acalentava planos de ir à Síria e ao Uzbequistão depois daqui, e parecia ter uma opinião bem filosófica sobre riscos. “Eu vou morrer. Todos nós vamos morrer. Não há por que se preocupar”, disse.

O vento levantava a poeira da estrada conforme avançávamos aos poucos pelas ruas apocalípticas de Cabul, com os comboios militares interrompendo o trânsito o tempo todo. Valerie Godsalve, uma patologista com dificuldade de digestão que chegou de avião vinda do Canadá, Sue e Bithie usavam véus. Peter, Cameron, Kent e eu vestíamos shalwar kameez, a típica túnica longa com calças folgadas que os soldados dos EUA chamam de “pijamões”. Mas os afegãos continuavam nos encarando; não pareciam acostumados a ver “kuffar”, ou “infiéis”, em um micro-ônibus sem blindagem.

Uma hora depois, já ao norte da cidade, o céu ficou escuro e a chuva começou a cair em pingos enormes que transformaram a estrada em pura lama. Geoff encostou atrás de uma fila de carros parados em frente a uma enxurrada que descia das montanhas e passava pela estrada. Parecia intransponível, mas um morador empreendedor tinha levado uma escavadeira laranja até o alagamento e usava a pá para abrir uma estrada improvisada – cobrando 100 afghanis, ou cerca de US$ 2, de pedágio.

Chegamos a Bamiyan tão tarde que o único local para dormir era o quartel da polícia. Pela manhã, seguimos por um campo seco e poeirento para ver os agora destruídos budas. Eles costumavam ser uma grande atração turística, mas em 2001 o Talibã usou armas antiaéreas e dinamite para reduzir as duas estátuas – uma com 36 metros e a outra com 53 metros de altura, ambas esculpidas numa montanha no século 3 – a uma pilha de destroços. O penhasco tinha um monte de cavernas rasas que foram, há 1.500 anos, lar de monges budistas; hoje, muitas estão abarrotadas de fragmentos de ossos e fezes de animais. Fui até a escadaria em ziguezague escavada no paredão de arenito e, no topo, encarei o nada. Visitar os budas de Bamiyan é contemplar o vazio – bem apropriado, já que a estátua mais alta representava o sunyata, ou vazio interior.

Um dia depois, seguimos para o oeste passando pela cordilheira de Hindu Kush, na direção de Band-e Amir, uma reluzente série de lagos cor turquesa em meio a montanhas salpicadas de penhascos. Escavadeiras amarelas estavam reformando a estrada, parte de um projeto da USAID (agência norte-americana de ajuda internacional a países emergentes) para tentar facilitar os trajetos no Afeganistão e assim baratear a exportação de produtos não-opiáceos. Era começo de tarde quando chegamos ao primeiro lago, onde havia um estacionamento sujo repleto de carros. Em 2009, o governo afegão declarou essa área o primeiro parque nacional do país. Havia planos para hotéis e restaurantes. Durante a inauguração do parque, o embaixador dos EUA no Afeganistão, Karl Eikenberry, andou em um pedalinho em forma de cisne, uma das principais atrações do lugar, ao redor de um dos lagos, sorrindo como uma criancinha.

Agora, mulheres em burcas ficavam na margem enquanto seus maridos passeavam nos pedalinhos. As famílias faziam piquenique em toalhas de mesa, e os meninos pulavam de cueca na água gelada. Peter, Sue e eu embarcamos em um bote vermelho com a tinta descascando, e fomos logo seguidos por uma flotilha de embarcações em forma de cisne cheias de afegãos curiosos. Dois garotos em uma canoa amarela se aproximaram, um deles com um sorriso amplo que mostrava dentes semiderrubados. Chegou outro bote, com três homens vestidos em túnicas de cores claras. De longe, eles vinham apontando e rindo dos infiéis no cisne de mentirinha. “De onde vocês são?”, gritou um deles. Outro pegou uma câmera digital e começou a tirar fotos nossas. “Estados Unidos e Inglaterra”, respondeu Peter, com um sorriso. “Qual seu trabalho?”, perguntou Abdullah, o garoto mais velho. “Somos turistas”, respondi. Ele pareceu surpreso. “Em Band-e Amir, a segurança é muito boa”, disse um dos homens, com orgulho. “Vocês são muito amigáveis e gentis”, gritou outro enquanto pedalava para longe, rindo como criança.

PASSAMOS O DIA SEGUINTE INTEIRO DIRIGINDO. Atravessamos a passagem de Shahtu, a 3.350 metros de altitude, e depois pernoitamos em uma casa de chá com um burro mal-humorado no quintal dos fundos. Cameron desenrolou um colchão inflável do tamanho de um tobogã para evacuar aviões em emergências. Bithi ficou roncando num canto em um surpreendente tom de barítono. Mais tarde, Geoff, que estava do lado de fora falando em um telefone satelital, entrou na sala. “Aconteceu uma fatalidade enorme”, disse, anunciando que o Talibã havia matado a tiros dez membros de uma equipe médica, incluindo seis norte-americanos, perto da fronteira nordeste com o Tajiquistão. Às vezes a gente esquecia que as montanhas serradas e os jardins de macieiras que passavam pelas janelas do microonibus ficavam no Afeganistão, mas naquela hora os perigos voltaram a ser lembrados. Ninguém dormiu bem.

Acordamos cedo e seguimos para o oeste. Veículos militares soviéticos enferrujavam em campos abertos; cães pastores de olhos amarelos perseguiam o microonibus. Paramos para almoçar em uma casa de chá com pôsteres de candidatos parlamentares pregados na parede e Geoff perguntou ao dono, um homem de feições delicadas chamado Jarwald, sobre a estrada à frente. “Em Bala Murghab, o Talibã está lá ou é só badmaash?”, perguntou, usando uma palavra local que quer dizer “bandido”. “Eles não estão nesta província”, respondeu Jarwald. “Perto de Chaghcharan, a segurança é muito boa. Depois disso, vocês podem ter problemas.”

“Esses são seus filhos?”, perguntou Bithi, apontando para um grupo de homens afegãos sentados impassivos, ouvindo nossa conversa. “Não, são meus amigos”, respondeu Jarwald, rindo. Jarwald pertence à etnia hazara e é shiita. Seu povo é maltratado pelos fundamentalistas da etnia pashtun do Talibã, que os consideram hereges. O presidente Hamid Karzai, também pashtun, parece ignorá-los. Jarwald disse que ele apoiaria Karzai se, e somente se, ele asfaltasse a estrada. “Não dá para construir uma estrada a menos que haja segurança e dinheiro”, opinou Geoff. Jarwald conversou com seus amigos por um momento. “Eles querem lutar, já que o governo não nos dá atenção”, disse. “Querem jantar o Talibã” – ele quis dizer, na verdade, “se juntar ao Talibã”. “Qual é seu papel aqui?”, Jarwald perguntou a Geoff. “Eu trago turistas para o Afeganistão”, respondeu ele. Os afegãos disseram algo a Jarwald, e todos eles riram. “Eles estão falando que podemos prender você, assim o governo faz nossas estradas”, disse Jarwald.

Nós rimos nervosos. A conta chegou, e Geoff reclamou dela com o garçom, algo que pareceu bem imprudente naquela hora. Homens como Jarwald eram a principal fonte de informações de Geoff sobre as condições de segurança na região. Embora o site de Geoff diga o contrário, ele não faz nenhuma coleta de informações de verdade – ou seja, dar uma olhada em sites de notícia afegãos ou trocar e-mails com fontes locais – antes de aterrissar no país. Em vez disso, conversava com garçons e motoristas de taxi assim que chegava, seguindo adiante ou recuando dependendo do que diziam. Mas, como a maioria dos afegãos não fala inglês e Geoff fala muito pouco dari ou pashtun, esse processo muitas vezes resultava em um jogo de charadas de eficácia duvidosa.

Seguimos por uma estrada de terra cheia de curvas até o final do dia, quando paramos em Chaghcharan, um vilarejo de comerciantes coberto de poeira em um platô assolado pelo vento. Geoff detestou a cidade e disse que estava cheia de malandros e golpistas. No entardecer, depois de ficar de papo pro ar em uma sala cheia de gente por várias horas, perguntei a Bithi se ela queria sair para dar uma volta a pé. Ela não tinha se mexido muito desde que saímos de Cabul e não estava bebendo ou comendo o bastante. Seguimos por um beco estreito que se abriu em uma larga rua asfaltada. Prédios de tijolos de terra acompanhavam a rua, e as lojinhas estavam quase todas fechadas. Um grupo de jovens estava parado na esquina, nos encarando enquanto passávamos. Não gostei do jeito que olharam para nós, mas Bithi não parecia ter medo. “Já viajei para a Caxemira”, disse ela, apoiando-se no meu braço enquanto caminhávamos. “Uma peregrinação que os indianos fazem para uma montanha chamada Amarnath, que foi onde Shiva compartilhou o segredo da criação com sua esposa, Parvati, mas duas pombas brancas ouviram a conversa e agora são forçadas a renascer sem parar.”

Ela continuou falando enquanto cruzávamos vários homens trabalhando na estrada. Tinha ficado escuro, o vento lançava terra no ar. Sugeri que voltássemos para a casa de chá. Cruzamos a rua e passamos por um sujeito de pele escura com um turbante vermelho. Eu disse “Salaam”, mas ele só nos encarou. Mais à frente, alguns jovens estavam sentados na esquina. Três meninos sujos com túnicas manchadas nos seguiam, um deles segurando uma pistola de plástico. Bithi ficou quieta por um momento, e perguntei se ela tinha medo de morrer. Ela tinha passado por uma cirurgia cardíaca seis meses antes, uma cirurgia no joelho antes disso, e estava tomava 20 pílulas por dia. Seu corpo havia se tornado um tipo de prisão. “Se Deus me dissesse que vou morrer amanhã, ficaria feliz”, confessou.


SEGURO?: Guardas em posto de controle local

NA TARDE SEGUINTE passamos por vários bloqueios do Talibã. O último deixou Geoff bem abalado, assim como todo mundo no carro. Valerie começou a dar gritinhos sempre que topávamos com um buraco na estrada. Cameron estava com os nervos à flor da pele. Mais cedo, no minarete de Jam, uma torre de uns 65 metros de altura coberta por elaboradas escritas e localizada perto do rio Hari, ele tinha perdido a paciência com o motorista que pegou sua garrafa de plástico de água vazia. “Você não pode ir pegando as coisas das pessoas!”, gritou. Foi o pior momento das relações entre o Ocidente e o Afeganistão, e tinha cara de mau presságio.

Algumas horas depois, estávamos bebendo um chá verde oleoso em uma cidadezinha alguns quilômetros depois dos bloqueios do Talibã, e o grupo parecia prestes a se amotinar. Geoff queria continuar a viagem mais uma noite, mas o resto do pessoal preferia seguir direto para Heart, uma cidade grande perto da fronteira com o Irã. Era uma longa distância, mas lá haveria camas, refeições sem cordeiros e, com sorte, menos talibãs. Geoff subiu no microonibus e ficou resmungando.

Conforme seguíamos viagem, os morros foram se achatando. As tendas negras em forma de domo dos nômades acompanhavam a estrada. Uma corrente de ar que parecia saída de um forno aberto – os afegãos a chamam de o “vento de 120 dias” – castigava nosso veículo. Cameron, Sue e Peter tinham começado uma animada e semigeriátrica conversa sobre doenças, mas sugeri que nosso primeiro encontro com o Talibã pedia um debate mais profundo. “Não gostei muito da estrada ou dos bloqueios”, disse Sue. “O resto foi adorável. Se meus pais estivessem vivos, eles iriam querer ter vindo comigo.”

Chegamos em Herat no cair da noite. Era uma cidade cosmopolita com lojas de rua que vendiam de vestidos de veludo vermelho a celulares falsificados. Pela manhã, passeamos no Complexo Musalla, uma série de minaretes, mesquitas e madrassas (escolas de religião) do século 15 devastados ao longo do tempo pela dinamite dos britânicos, a artilharia dos soviéticos e pelos terremotos. Um minarete se mantinha em pé graças a um bloco de ferro e escoras trazidas de Cabul e instaladas por uma equipe da Unesco da qual fazia parte o mesmo italiano que estabilizou a Torre de Pisa há alguns anos. Geoff, que tinha uma queda por tapetes afegãos, acrescentou mais um à já extensa coleção que vinha reunindo desde que saíramos de Cabul. Visitamos o Gazar Gah, um santuário sufi onde os homens oravam em tapetes vermelhos sob uma árvore. Os homens passavam por um lado da árvore, as mulheres pelo outro. Os afegãos olharam feio para Peter quando ele passou pelo lado errado. Éramos infiéis em um local sagrado muçulmano, e por isso coloquei 100 afghanis na caixinha de doações.

Mais tarde, no jantar, Geoff parecia preocupado. O plano era ir para o norte no dia seguinte, saindo de Herat para Mazar-e Sharif, passando por uma cidade chamada Maimana. Tratava-se de uma cidade considerada segura, mas ao sul dela ficava Bala Murghab, cheia de rebeldes e bandidos. No ano passado, o exército tinha mandado o grupo de Geoff voltar. A polícia local também fez Paul Clammer, escritor dos guias Lonely Planet, dormir no quartel depois que o Talibã atacou um funcionário de uma ONG. “Eles foram muito gentis, fizeram chá para mim”, contou-me Paul. “À meia-noite, fui acordado pelo som de metralhadoras, e o céu se iluminou com balas traçantes.”

Agora, Geoff disse à mesa, precisávamos decidir se queríamos passar por isso. Ele vinha tentando contratar um motorista a tarde toda, mas ninguém topou. “Acho que é seguro ir pra lá, mas eles falaram que Bala Murghab é um lugar perigoso demais, cheio de malandros, bandidos, contrabandistas e talibãs. Estou frustrado.”

Geoff nos deu duas opções. Ele tinha arranjado um motorista disposto a nos levar a uma cidade ao sul de Bala Murghab, mas de lá precisaríamos contratar outro para chegar em Maimana. Talvez acabássemos tendo sorte. Ou acabássemos mortos. O trecho mais perigoso da estrada tinha uns 70 quilômetros e era o que os afegãos às vezes chamam de yagistan, ou terra sem lei. Provavelmente conseguiríamos, mas a decisão tinha que ser consciente. Ou, disse Geoff, poderíamos pegar uma ponte aérea até Cabul, e depois outra para Mazar-e Sharif, e passar por cima dos perigos do Afeganistão com o poder de um cartão de crédito. “Acho que prefiro essa opção. Todo mundo está falando que as outras saídas não são uma boa ideia”, disse Sue.

“Acho que devemos seguir o fluxo do país em que estamos”, opinou Cameron. Ele parecia relaxado e feliz. “Por mim, tudo bem”, continuou Peter, voltando sua atenção para uma espanhola bonitinha que tinha se juntado a nós para o jantar. “Eu até iria lá dar uma olhada”, disse Geoff. “Mas se o povo local está falando que o risco é grande demais, então seria irresponsabilidade nossa fazer isso.”


CENA URBANA: Trânsito em Cabul


LEI DO ISLÃ: Mulheres de burca em Hazrat Ali

OPTAMOS PELO AVIÃO. Em Mazar-e Sharif, que parecia (e era) uma cidade de fronteira, logo localizamos um bar para estrangeiros de reputação duvidosa que servia cerveja Tuborg a US$ 4 a latinha, trazida ilegalmente do Uzbequistão. Uma TV grande mostrava cenas da CNN. Em outra mesa, um loiro com cara de cansado, um ocidental com a cabeça raspada e um agente particular de segurança maori de cabelo oleoso e tatuagens nos antebraços bebiam, soltavam nuvens de fumaça de cigarro e conversavam sobre um projeto de ajuda humanitária. Nosso grupo tinha perdido dois membros: Kent pegou um avião de volta à Tailândia para cuidar de seus dois hotéis. E a câmera da Valerie tinha sido roubada em Herat, e ela voltou para Saskatoon sem se despedir de ninguém.

Geoff contratou dois táxis na manhã seguinte e fomos para Haji Piyada, a mesquita mais antiga do Afeganistão, agora protegida por uma estrutura que parecia uma garagem. O zelador do prédio, um cara de pernas tortas com uma longa cicatriz no queixo, estava agachado no chão de terra. Dois policiais afegãos sentavam-se sob um barracão ao lado de um riacho. Um campo de maconha crescia ali perto. Caminhamos em silêncio pela mesquita, e perguntei a Bithi o que ela estava achando da viagem. “Terroristas surgem e saem de cena o tempo todo”, respondeu ela. “Não deixa de ser uma aventura ver um talibã por perto.” Perguntei o que ela diria se encontrasse com um. “Al-Salaam Alaykum”, respondeu, com um sorriso meio malvado. É uma saudação islâmica que quer dizer: “Que a Paz esteja convosco”.

Um dos policiais aproximou-se de Bithi e conversou com ela em hindi. Tinha uma aparência jovem e usava uma echarpe com seu uniforme verde. “Ele disse que a intenção dos talibãs é matar qualquer um”, traduziu ela. “Querem desfrutar do orgulho de já terem matado alguém. E estão bem perto daqui, uns dez ou quinze quilômetros.”

Na manhã seguinte, Geoff contratou um microonibus caindo aos pedaços para nos levar para o oeste, mais precisamente para Andkhoy, uma cidade perto da fronteira com o Turcomenistão. Nosso motorista era um uzbeque chamado Abdullah, que bebia chá preto e fumava cigarros vagabundos durante o mês sagrado do Hamadan – o que me fez confiar nele. Geoff nunca pisara em Andkhoy, mas tinha ouvido falar que lá havia bons tapetes. Depois seguiríamos para uma cidadezinha chamada Daulatabad, e voltaríamos a Mazar-e Sharif passando pelo deserto de Dasht-e Leili. Esta seria a última e potencialmente pior parte da viagem. Uma motorista de táxi caolho alertou Geoff que Daulatabad estava cheia de talibãs.

Nos arredores de Mazar, ao lado da estrada, havia um cemitério de tanques russos T-62 e lançadores de foguetes Katyusha. Bodes descansavam à sombra de um gasoduto. À direita, a estrada levada para Qala-e Jangi, uma grande fortaleza militar do século 19 e local de um levante de prisioneiros liderado pelo Talibã que durou sete dias em novembro de 2001. Peter e eu tentamos sem sucesso subornar o guarda para nos deixar entrar, mas fomos encaminhados para Jeff e Stan, dois policiais do Texas que estavam ajudando a polícia do Afeganistão em uma base militar próxima.

“Caaaara”, disse Stan, com um olhar preocupado, quando contei a ele que éramos turistas. “Tomem cuidado. Esta porra aqui é praticamente o Velho Oeste”, susurrou Jeff, enquanto escrevia nossos nomes no verso de um cartão de visitas com seu nome, para o caso de algo sair errado conosco.

Ao meio-dia, fomos para Daulatabad, uma vilazinha com ruas arborizadas engarrafadas por carroças puxadas por mulas e riquixás de três rodas com pinturas meio psicodélicas. Abdullah estacionou em uma rua estreita. O plano era fazer uma rápida exploração pela cidade e voltar ao ônibus. Segui Geoff, Sue, Peter e Cameron para um mercado com barracas cheias de tecidos, sapatos e pedaços de panos. Um garoto guiava uma caravana de camelos pela rua. Outro menino riu da minha roupa típica shalwar kameez e me chamou de farangi, “forasteiro”. Acompanhei Geoff por um beco até um pátio cheio de pedaços de lenha. Homens afegãos que estavam agachados no chão se viraram e nos encararam. “Acho melhor voltarmos”, disse Geoff, depois de passar quase correndo pelo pátio.

De volta no ônibus, uma multidão tinha se juntado ao redor do veículo, e Abdullah discutia com vários homens sobre nossa rota pelo deserto. “Perigoso demais, Talibã”, um deles disse. Geoff tinha sentado no banco do passageiro e se virou para olhar para nós. “Quem está a fim de atravessar o deserto? Abdullah diz que não vai ser problema para ele, mas pode ser para a gente”, perguntou. “Vamos voltar para Andkhoy, então”, opinou Peter. “Eu queria encontrar tapetes raros, mas parece que ninguém sabe onde eles estão”, resmungou Geoff, infeliz por ter de bater em retirada mais uma vez.

Do ponto de vista estratégico, nossa viagem de férias começou a parecer uma incursão militar – entrar e sair em ritmo acelerado –, o que era ao mesmo tempo excitante e decepcionante. Estávamos tentando ser turistas em um lugar que não tinha espaço para esse tipo de coisa. Um comerciante com quem se puxa conversa podia ser um informante do Talibã. Você podia entrar em uma ruazinha lateral e nunca mais ser visto de novo. Era o paradoxo central da viagem de Geoff: estávamos no Afeganistão, mas o país ainda parecia estar fora de nosso alcance.


INFÂNCIA: Gartoa afegã em Bamiyan

NO MEU ÚLTIMO DIA no Afeganistão, comi no café da manhã ovos com pão e chá fraco no hotel Spinzar, em Cabul. Geoff e eu estávamos de saída para Ghazni, uma cidade notoriamente perigosa em uma estrada notoriamente perigosa entre Cabul e Kandahar. Em julho de 2007, o Talibã sequestrou 23 voluntários sul-coreanos nessa estrada, dos quais dois foram executados. No mês anterior a nossa chegada, dois marinheiros dos Estados Unidos foram encontrados mortos no mesmo local, depois de uma saída de carro misteriosa e sem autorização.

O roteiro de Geoff incluía, no final, uma viagem opcional de meio dia até Ghazni, mas ele a cancelou por causa dos riscos à segurança. Eu queria ver mais do país e ele concordou em me levar, desde que eu o isentasse de qualquer responsabilidade. Era potencialmente uma viagem suicida e sem sentido, porém encontramos um motorista de táxi disposto a fazê-la por 4.000 afghanis, ou cerca de US$ 90. Se fossemos mortos, as pessoas poderiam dizer que recebemos o que estávamos pedindo. Quando pedi que Geoff avaliasse o nível de perigo, ele apenas disse: “Bem alto”.

Serpenteamos pelas ruazinhas de Cabul e passamos por dois cachorros transando, o que considerei um bom presságio. Então deparamos com um monte de pedras no meio da estrada – uma cova –, o que considerei um péssimo presságio. Fiquei sentado abaixado no banco do táxi, vestido com um shalwar kameez e um xale xadrez na cabeça. Geoff sentou-se na frente, com um solidéu branco, roupa preta e uma barba de várias semanas. Na saída da cidade, pediram que encostássemos em um posto de controle da polícia.

“Somos turistas”, falei para o policial, mostrando a câmera de Geoff, que era pequena e rosa e parecia que pertencia a uma menina de 14 anos. “Vocês não devem ficar nesta estrada. É perigoso demais”, disse o policial. Ele falou alguma coisa para o motorista, e achei que ia nos mandar voltar, mas acabou nos deixando passar.

Pegamos a autoestrada Cabul-Kandahar, uma longa e reta rodovia de duas pistas que seguia para o sudoeste por planícies arenosas, aos pés de morros baixos. Dava para sentir a aura protetora da cidade, por mais tênue que fosse, despedindo-se de nós. Um homem de roupa preta e turbante estava de pé sob um outdoor, de olho no tráfego. Um helicóptero militar passou sobre nós. O motorista parecia nervoso e começou a dirigir bem devagar. Ele apontou para trás e disse: “Cabul, Cabul”. Geoff o ignorou e apontou o dedo para frente, dizendo: “Ghazni, Ghazni”. Então o motorista encostou e parou. “Isso não é nada bom”, reclamou Geoff, olhando em volta ansioso.

O motorista abriu o capô, saiu e mexeu no motor. O sol estava quase diretamente em cima das nossas cabeças, e o carro pelava. Um minuto se arrastou, depois mais um. Carros passavam por nós. Uma base da polícia afegã podia ser vista ao lado da estrada, algumas centenas de metros à frente. Fiquei me perguntando se iriam nos confundir com rebeldes e começar a atirar. Estava furioso com o motorista por parar ali, arriscando nossas vidas.

O cara entrou de volta no táxi e virou a chave, mas o motor engasgou. Virou de novo, o carro deu um pulo para a frente, e o motor engasgou de novo. Disse algo ininteligível, exceto pela palavra “talibã”. Suspeitei que ele estava fingindo que havia um problema no motor. Estávamos transformando-o em um alvo, e ele queria se livrar de nós. “Caramba!”, gritou Geoff. “Ele é um babaca, um imbecil. E não vai receber nada também. A gente está a 50 quilômetros de Ghazni. Ele não deveria ter trazido a gente até aqui se achava que seria muito perigoso.”

Era muito arriscado ficar parado na estrada, então sugeri que voltássemos. Geoff se rendeu. O motor do táxi pegou depois de mais algumas tentativas e demos a volta na estrada, em direção a Cabul. Até que o motorista desacelerou de repente. Olhei para cima e vi uma nuvem de fumaça branca algumas centenas de metros à frente que parecia ser uma explosão de bomba caseira ou uma mina terrestre, embora não houvesse barulho. Os carros ao redor diminuíram a velocidade até quase pararem, e seguimos pela autoestrada em um comboio hesitante. Nosso motorista começou a roer a gola do seu shalwar kameez.

Perto da fumaça, havia um bode morte caído na estrada, com suas entranhas espalhadas pelo asfalto. Um minuto depois, três SUVs cheios de homens carregando AK-47s e um lançador de foguetes deram meia-volta na nossa frente e aceleraram. Uma pequena unidade da polícia afegã estava mais na frente, com suas AK-47s preparadas. Eles tinham uma metralhadora montada em uma picape apontada direto para nós. Estávamos nos metendo em algo caótico e mortal. Eu não queria morrer em um taxi afegão naquela estrada. Não éramos mais turistas.

Passamos rápido pelo bloqueio e, depois de alguns quilômetros, o motorista parecia mais relaxado. O motor do carro funcionava bem, e logo nos aproximamos do muro de terra caindo aos pedaços que cercava a cidade. Pipas brancas feitas de sacos de plástico enchiam o céu. Em um arco vermelho sobre a estrada, podia ser lida a palavra “benvindos”.

Geoff estava quieto e olhava pela janela. Em uma rotatória, um comboio enorme de veículos pesados blindados passou ruidosamente, apertando os microonibus e velhas vans locais. Eu estava com dor de cabeça e azia. Queria sair da estrada, embarcar em um 707 e deixar o Afeganistão para trás. Saímos do táxi perto do hotel Spinzar, e Geoff pagou ao motorista 1.000 afghanis. Ele reclamou, agitando as notas no ar com ar indignado, e cheguei a pensar que Geoff daria um soco nele. Entreguei a ele mais algumas notas de cem, mas não parecia ser nem de perto o bastante. Que dura a vida no Afeganistão. E que bom que dali a pouco eu voltaria para casa.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2012)