O céu sem limite

Protagonistas de imagens insanas em que atravessam desfiladeiros e arranha-céus sobre fitas de nylon, dois franceses viram hit na internet com o filme I Believe I Can Fly. A pedido de nossos leitores no Facebook, entrevistamos os caras para saber por que eles amam tanto o perigo

Por Maria Clara Vergueiro


EQUILIBRISTA: Julien Millot fazendo highline
com corda de segurança

EM 2008, QUANDO OS FRANCESES TANCRÈDE MELET E JULIEN MILLOT se conheceram, os dois escaladores e malabaristas dos ares de cara programaram uma sessão de highline (prática na qual a pessoa se equilibra sobre um cabo ou fita a muitos metros do chão). Sem saber, estavam selando uma parceria para lá de frutífera. Desde então, a dupla não parou mais de pensar em projetos que combinam seus esportes preferidos aos interesses profissionais de cada um. “Interação e disputa são a chave do nosso progresso: cada vez que um de nós amplia seus limites, o outro corre para alcançar a evolução. Sempre que um está pensando em uma nova façanha, o outro sente a mesma motivação para ir além. É raro achar uma parceria assim”, diz Tancrède, que, ao lado de Julien, tem atraído fama mundial e ajudado a popularizar as práticas ligadas ao highline (rebatizado por eles de skyline).

As façanhas da dupla francesa envolvem jogos de equilíbrio, concentração, saltos no vazio e muita coragem. Como equilibristas de circo em uma corda bamba, eles atravessam desfiladeiros caminhando sobre uma fita de pouquíssimos centímetros de largura. Na maior parte das vezes, um cabo amarrado na cintura os prende à fita, para garantir uma segunda chance caso percam o equilíbrio. Em situações extremas, nem isso: os ousados “artistas” desafiam as leis da natureza e seguem sem segurança, cruzando a linha que liga duas enormes formações rochosas ou até dois arranha-céus de uma grande cidade.




SIM, EU POSSO VOAR: Cenas do filme I Believe I Can Fly

Tanta sintonia entre os dois amigos, que estrearam juntos no highline há quatro anos, chamou a atenção do diretor francês Sébastien Montaz-Rosset, à frente do filme I Believe I Can Fly, projeto concluído em novembro do ano passado cujo trailer ganhou milhares de acessos no Youtube e deu fama aos rapazes, graças à força das mídias sociais e da venda pela internet. A produção rodou o mundo, mostrando o grupo de amigos de Tancrède e Julien se jogando de precipícios, fazendo base jump, plantando bananeira à beira de paredões rochosos, andando sobre fitas e cabos sem parecer notar o rio caudaloso a dezenas de metros abaixo.

Mais que estripulias outdoor de uma turma de malucos, o filme revelou o estilo alegre e desprendido de quem topa se arriscar, desde que cercado de belas paisagens e bons amigos. “Conheço Tancrède e Julien há tempos, então decidi acompanhar e filmar o que eles faziam por aí. Nenhuma das cenas que registramos foi rodada especificamente para o filme. Elas aconteceriam de qualquer jeito, estando eu lá com uma câmera na mão ou não”, conta o diretor, que colecionou ousadas travessias da dupla em Paris, Chamonix, Verdon (todas na França) e na Noruega. Sébastien precisou de muita técnica para registrar as cenas extremas sem interferir na performance dos atletas – e sem morrer. “Tentei ser bem discreto, para que eles nem sentissem que eu estava lá”, conta Seb, como é mais conhecido. “Não houve nenhuma intenção da minha parte em transmitir qualquer mensagem ou conceito, apenas de mostrar esse universo tão particular dos highliners e levar o expectador para lá, ao lado deles”, diz o diretor, que começou a captar imagens de aventuras outdoor por causa de seu amor pelas montanhas e tem em I Believe I Can Fly seu principal filme até agora.

Como o lendário conterrâneo Philippe Petit, que em 1974 atravessou em um cabo de aço as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, os dois rapazes tiveram a oportunidade de curtir uma grande metrópole do alto. Otimizando o tempo que Tancrède teria que “gastar” trabalhando em Paris, a dupla aproveitou para passear pela ponte imaginária que liga outras as duas torres Mercuriales. As imagens deles fazendo highline a 130 metros do chão, com direito a diversas manobras ignorando os ventos fortes, também estão em I Believe I Can Fly.

A produção foi disponibilizada para download (a cinco euros) na internet no dia 11 de novembro de 2011, às 11h da manhã, para sugerir alguma superstição cabalística dos rapazes. Mas é tudo brincadeira. Sério mesmo foram os milhares de acessos que I Believe I Can Fly conseguiu angariar – um volume que impressionou os próprios envolvidos no projeto.


FILMA EU: Sébastien, diretor de I Believe I Can Fly

TAL SUCESSO NÃO IMPLICOU em grandes mudanças na vida de Julien e Tancrède, “a não ser o fato de que agora muitas pessoas nos reconhecem na rua ou nas montanhas”, emenda Julien, nascido na região central da França. Já Tancrède cresceu no norte do mesmo país, passeando com cordas nos ombros, que depois ele amarrava na cintura para brincar de se pendurar com o pai em paredes rochosas perto de casa. “Quando era estudante e redescobri a escalada, me deparei com um mundo incrível de equipamentos. Que revelação!”, relembra Tancrède. “Comecei a escalar com um amigo, no sul da França”, conta Julien. “Vi que era possível escalar quase qualquer rocha, sem ninguém se importar com você ou te dizer o que fazer. E assim descobri a liberdade que a escalada proporciona”, define.

Quando começaram a escalar perto de casa, nenhum dos dois amigos conhecia ou imaginava quem poderia ter sido o primeiro destemido aventureiro a brincar sobre “cordas bambas” esticadas a quilômetros de altura. Um registro histórico mostra o norte-americano Scott Balcom, autor da primeira travessia de highline, realizada no Parque Nacional de Yosemite, na Califórnia, em julho de 1985. O ponto escolhido por Scott foi o Lost Arrow Spire, formação rochosa semelhante a uma seta e que anos depois se tornaria um clássico do highline.

Já naquela época, Scott conectou-se à fita por uma corda amarrada na cintura, para fazer a segurança. Hoje, o número de highlines freesolo – sem equipamento de segurança – é pequeno, se comparado à quantidade de praticantes. Tancrède e Julien fazem parte do seleto e insano grupo que, de vez em quando, ousa fazer as travessias mortais sem qualquer proteção. A aventura, do ponto de vista deles, não tem nada de inconsequente. “Quando se faz um freesolo, a ideia não é morrer”, brinca Julien, “mas se sentir totalmente livre, controlando a mente e o corpo, numa espécie de transe”. “Se as condições não são apropriadas, não fazemos”, completa.

O choque que as travessias de highline provocam nas pessoas, emenda Tancrède, vem do hábito social que temos de condenar o que é arriscado. “Assumir riscos é algo quase proibido. As pessoas não possuem muita autoconfiança, e isso tem muito a ver com a educação que recebem. Geralmente, se um adulto vê uma criança escalando uma estante, o impulso é reprimi-la e não ficar atento para ver até onde ela consegue ir”, diz o francês.

Administrar o medo é parte do jogo. “Podemos nos machucar como qualquer pessoa. A diferença é que nossas escolhas nos fazem enfrentar o medo todos os dias. No fim das contas, aprendemos que ele é só uma informação vinda dos nossos instintos, nos dizendo para manter o foco naquilo que estamos fazendo”, resume Tancrède, que está curtindo um inesperado momento de celebridade, com a agenda de 2012 já fechada com workshops, exibições, participações em programas de TV, viagens e um segundo filme dirigido pelo amigo Sébastien. “Queremos diversificar ainda mais, extrapolando os limites do highline e do base jump, entrando na escalada e no paraglider, por exemplo. Quando mais habilidades se tem, mais se pode combinar as coisas de um jeito diferente”, conta Julien.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2012)