De vento em pipa

Dois belgas misturam esqui e kitesurf para bater o recorde mundial de distância percorrida na Antártica sem nenhum apoio ou veículo motorizado

Por Mario Mele


ZERO QUILÔMETRO: Sam (esq.) e Dixie posam para foto logo no início da expedição

O QUE VOCÊ FARIA se estivesse isolado no Polo Sul e, depois de ter batido um recorde mundial, só tivesse a seu lado o parceiro de expedição para dividir a felicidade? Diante dessa situação, o belga Dixie Dansercoer não teve dúvida: abriu a mochila, pegou o telefone satelital que levava consigo e discou para a esposa, Julie Brown, na Bélgica. “Você gostaria de dormir com um recordista mundial?”, perguntou após ouvir o “alô” dela.

Fazia 70 dias que Dixie estava em uma área remota e bem longe da família. Ele só não pensou, é verdade, que deveria poupar a bateria do telefone para uma emergência. O sol fraco dos últimos dias, por conta de nevascas que chegavam a levantar dunas de neve na Antártica, não estava dando conta de abastecer seus carregadores solares. Mas a ansiedade em contar à mãe dos quatro filhos sobre o maior desafio que já vencera em
50 anos de vida falou mais alto.

Ao seu lado no meio da imensidão branca estava o parceiro Sam Deltour, um estudante de medicina belga 25 anos mais novo. Sam também é um experiente competidor de corridas de trenó puxado por cachorros. Esta era a primeira expedição polar de Sam, e o jovem não escondia a felicidade em completar 4.824 quilômetros pela Antártica. Junto com Dixie, ele se tornou dono de um feito histórico: a distância mais longa que alguém já percorreu no continente gelado sem apoio e sem veículo motorizado. Há seis anos o recorde pertencia ao norueguês Rune Gjeldnes, que completou 4.804 quilômetros em 90 dias na mesma região. Em 2006, a comemoração de Rune foi acender um cigarro. Só que os belgas detestam fumar. Então, enquanto Dixie falava com a mulher, Sam ficou apenas sentado com as mãos na cabeça, procurando entender o significado de ter o nome cravado entre os recordistas polares.

A cerimônia toda de celebração durou menos de cinco minutos. Dixie desligou o telefone, Sam se levantou e ambos se lembraram que ainda estavam no meio do nada – e cercado por perigos extremos. A imensidão branca ainda duraria mais algumas semanas, já que eles pretendiam, depois de bater o recorde, completar o trajeto de volta até o ponto de partida. Resignados, preparam algo para comer e foram descansar para os esforços dos dias seguintes.

A ANTARTIC ICE EXPEDITION teve início no dia 7 de novembro de 2011, de um ponto próximo à base russa na Antártica. O plano inicial era fazer um círculo passando pelo Pólo Sul e retornar ao ponto inicial. Em pouco mais da metade do caminho, bateram o recorde mundial.

Com a expedição, os dois aventureiros lançaram-se em uma ambiciosa jornada que acabaria ampliando os limites da capacidade de locomoção pelo vento numa expedição polar. Em vez de arrastarem os trenós com a força das pernas, eles decidiram utilizar pipas bem parecidas às de kitesurf. Nos pés, calçaram esquis, para deslizarem com mais facilidade. “Quando você passa entre 10 e 12 horas na neve, esquis funcionam melhor do que uma prancha de snowboard, por exemplo, por causa da posição do corpo”, explica Dixie, pelo mesmo telefone satelital (agora com a bateria cheia) com o qual, quatro dias antes, ligou para mulher para noticiar o feito.

O uso da pipa não deixou, no entanto, a situação tão mais fácil assim para a dupla. Prevendo isso, eles começaram em 2010 um árduo trabalho de fortalecimento de alguns músculos específicos das pernas, que seriam usados diariamente na Antártica. Os dois também sabiam que mais importante do que estar fisicamente forte, é preparar o lado mental. “Ser psicologicamente durão é fundamental para quem enfrentará os castigos da natureza durante meses, e terá ainda que usar a criatividade em muitos momentos para solucionar problemas complexos”, resume Dixie. Sam complementa: “Tudo na Antártica é agressivo – o vento, o frio, a chuva, o sol –, e é difícil manter-se calmo em meio a tanta adversidade. Muitas vezes, parece que você não está indo para lugar nenhum, e mesmo assim tem que sair do saco de dormir, abandonar a barraca, encarar o frio e seguir em frente.” Quando conversamos por telefone, Sam não tinha problemas em admitir que já sonhava em voltar para casa. “Quero rever minha namorada e comer um bom prato de espaguete com uma carne suculenta.”


FASE DE TESTE: Pipa no ar e esquis nos pés

Naquele momento, os belgas já tinham passado por situações duríssimas. Logo nos primeiros dias da expedição, tiveram um progresso desajeitado. Estavam a 3 mil metros de altitude, expostos a temperaturas inferiores a 28ºC negativos. As condições por lá permaneceram ruins por tanto tempo que, dez dias depois, decidiram que o melhor seria apelar para o resgate aéreo e esperar o tempo melhorar para recomeçar de outro lugar. Em 23 de novembro, um dia depois de aterrissarem no novo ponto de partida, fizeram 31 quilômetros na Antártica em apenas 2h45min. A distância percorrida foi maior do que a da semana inteira na primeira tentativa. “Ao contrário do Ártico, onde se está constantemente sobre o oceano, e as condições podem mudar a qualquer momento, na Antártica você sabe exatamente a hora certa de progredir”, explica Dixie, que carrega no currículo mais de três décadas como aventureiro.

Durante os anos 1990, o hoje chefão da expedição Antarctic Ice escalou o Mont Blanc, na Europa, e o monte Fuji, no Japão, até descobrir o kitesurf em 1995. Seu envolvimento com esportes a vela surgiu ainda antes disso. Em 1987, Dixie foi campeão nacional de windsurf na modalidade wave. E, na década seguinte, ele e Alain Hubert (talvez o explorador belga mais conhecido da atualidade) cruzaram 700 quilômetros na Groelândia ajudados por uma pipa. “Havia pouco conhecimento sobre o potencial de um kite”, lembra. Em 1997, Dixie e Alain novamente comprovaram a eficiência desse equipamento como meio de transporte numa travessia polar ao rodarem 4 mil quilômetros na Antártica. E dali a dez anos a dupla concluiria outra travessia, de 1.800 quilômetros em 106 dias, entre a Sibéria e a Groelândia – era a segunda vez que tentavam aquilo.


FRIA PARCERIA: Dixie e Sam olham a imensidão branca; ao lado
Sam soltando a pipa

NESTA MAIS RECENTE PASSAGEM pela Antártica, Dixie estendeu de vez os limites de distância. Ele e Sam deram uma longa volta em sentido antihorário – acreditaram que dessa forma seriam favorecidos pelos ventos –, passando pelo Polo Sul e batendo em quase 200 quilômetros a marca de Rune Gjeldnes.

Depois de 74 dias no gelo e uma distância total de 5.013 quilômetros (média diária de 68 quilômetros), Dixie e Sam se depararam novamente com péssimas condições de tempo e deram a expedição por encerrada. Afinal, eles já haviam chegado ao Polo e batido o recorde com louvor. “Uma aventura deve ser entendida como um convite feito pela mãe natureza. Isso quer dizer que você não está no controle e que enfrentará tempestades. É importante saber os estragos que elas fazem. É enriquecedor”, diz Dixie.

Em sua entrevista por telefone, o experiente explorador belga filosofa sobre o futuro de empreitadas como a sua: “Acho que aventuras de se perder de vista realmente são uma tendência, nós mesmos mostramos que isso é realidade. O que me entristece, no entanto, é ver que uma série de expedições motorizadas vem ganhando espaço, e isso não tem a menor graça.”

Na temporada em que se comemoram 100 anos que o homem pisou no Polo Sul pela primeira vez – no caso, o norueguês Roald Amundsen –, choveram expedições à Antártica, e algumas marcas inéditas foram estabelecidas. Mas Dixie acredita que, tão importante quanto ser lembrado por um recorde, é poder dizer que a sociedade moderna vive numa espécie de casulo, com a falsa impressão de que é capaz de gerenciar tudo – quando, na verdade, a natureza ainda impera, acima de tudo. De volta à civilização, Dixie e Sam trabalham na produção de um documentário 3D – o primeiro nesse formato sobre a Antártica –, que esperam lançar até setembro deste ano. Será uma forma de deixar clara essa mensagem.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2012)