Por Maximo Kausch, do Alta Montanha
Quando se escolhe ser guia de montanha, é preciso aprender de tudo um pouco na marra. Mesmo sem querer, várias habilidades acabam sendo aprendidas por necessidade nas grandes altitudes. Chegamos a aprender dezenas de curiosidades sobre neve e gelo, além de muito sobre dinâmica de grupo, pois ficamos lá por até dois meses. Também aprendemos a arrumar aparelhos como computadores, antenas satelitais e geradores. Contudo uma das coisas mais importantes para se aprender tem a ver com emergências médicas. Não é comum que apareçam alguns pacientes com pneumonia, males digestivos ou problemas de altitude. Eu mesmo já tive que fazer coisas bem mais malucas, como extrair dentes, suturar dedos e até mesmo tratar casos extremos de hemorróidas!
Profissionais da medicina, por favor, parem de ler este texto aqui!
A principal questão em emergências médicas em ambientes extremos é o diagnóstico. Diagnosticar um problema pulmonar com um estetoscópio sob vento gelado não é nada fácil. Examinar alguém quando suas próprias mão estão congelando também é de doer. Assim como escutar um coração quando o seu próprio pulso está acima de 100 batimentos por minuto .
Médicos de verdade geralmente estão acostumados a trabalhar em ambientes estéreis, com clima controlado e diversas ferramentas para ajudar no diagnóstico, como o raio-X.
Para nós, no entanto, quando aparece alguém gritando com a perna virada ao contrário o diagnóstico é no "achismo":
— Humm, fratura!
A maioria dos casos vai na intuição mesmo. Vale lembrar que, como não sou médico, meu trabalho é minimizar os danos e estabilizar as vítimas até que elas possam consultar um profissional da saúde. Para esse trabalho é necessária muita improvisação.
Confirmar um caso fica difícil pois às vezes estamos a seis dias do raio-X mais próximo. Em diversas ocasiões procedimentos “extracurriculares” que não aparecem no curso de primeiros socorros devem ser tomados. Na política de “a prioridade é manter o paciente vivo”, acabo cometendo verdadeiras barbeiragens no meu "consultório" ao ar livre.
Lembro que durante uma avalanche que levou sete sherpas no Tibete um time de 12 sherpas, guias e montanhistas experientes — do qual eu fazia parte — subiu para resgatar as vítimas. A 7.100 metros de altitude, encontramos um dos sherpas atingidos pela avalanche. Um dos seus companheiros que não tinha sofrido tantos danos nos contou que ele caiu de lado sobre um rochedo.
Ao levantar a roupa do sherpa para ver o estado de seu peito reparei que o tórax dele estava afundado e roxo em diversas partes do lado direito. Um dos colegas que estava comigo me perguntou o que eu achava.
— Hum, fratura"
— Quantas costelas será que ele quebrou?
— Hum, várias!
Depois de um diagnóstico tão preciso como esse, era hora de "consertar" o paciente. Faço questão de lembrar aqui que a 20ºC negativos não é uma boa idéia expor o peito de um paciente para contar costelas quebradas. Reparamos que uma região do meio do tórax do sherpa se contraía e expandia quando ele respirava. Isso parecia causar insuficiência respiratória no coitado.
Demos oxigênio para ele e usamos ferramentas extremamente "especializadas" para consertar esse tipo de fratura: bambu e fita sylver tape! O remendo ficou ótimo, e só trocamos dois dias depois, quando o sherpa conseguiu chegar são e salvo à base da montanha.
O pior de ficar se aventurando com casos médicos em montanha é certamente quando muitas pessoas presentes ali acreditam que você é médico. Numa ocasião no Paquistão, alguns carregadores acharam que eu era um médico por ajudar diversos outros carregadores com problemas de altitude. Numa manhã enquanto descíamos da montanha, uma verdadeira fila de pelo menos dez carregadores formou-se diante da minha barraca.
Ainda com sono, tive que tratar de diversos casos de diferentes doenças de altitude. A maioria deles tinha dores de cabeça causadas pelo pouco conhecimento que tinham sobre aclimatação. Um deles parecia ter um princípio de edema pulmonar e outro tinha cegueira temporária causada pela neve. A falta de recursos me fez ter que economizar o pouco que tinha no estojo de primeiros socorros — para a maioria receitei ibuprofeno e água. Na maioria dos casos, isso agia como placebo pois se tratava de pessoas com pouquíssimo conhecimento médico.
O caso que mais me chamou a atenção foi com certeza o de um jovem carregador ruivo. Eu já estava com o ibuprofeno pronto na mão quando ele me disse ter dor no pé. Confiante no meu conhecimento em medicina, fui examinar o pé do paciente.
Ao levantar a calça do seu shalwar, que é a roupa tradicional paquistanesa, observei profundos cortes no tornozelo do carregador. Os cortes formavam uma espécie tampa e movê-la revelou o osso do pobre paquistanês. A primeira reação foi lançar a pílula de ibuprofeno há vários metros de distância! Lavei a ferida com um soro improvisado e verifiquei a circulação de sangue na tampa que cobria o osso. A ferida estava suja de terra e deu um trabalhão para limpar. Juntei a tampa com o resto do pé do carregador com fita adesiva e dei uma forte dose de antibióticos orais, pois era só o que eu tinha.
Mandamos o carregador continuar descendo sem carga. Ele, no entanto, se negou pois precisava do dinheiro. Pagamos a ele o resto da jornada de descida e o enviamos sem carga para um médico localizado a quatro dias dali. Vi-o partir mancando sobre o gelo do glaciar Baltoro, o maior glaciar do mundo. Tive quase certeza de que ele perderia o pé. Jamais soube o que aconteceu.
Outro caso que sempre lembro foi uma das minhas experiências como dentista em altitudes extremas. Tratava-se do meu cozinheiro numa expedição no Tibete em outono de 2010. Chong reclamava de uma dor profunda e contínua em um dente. Ele não conseguia dormir ou comer e tinha dificuldades mesmo para beber água. Ao examinar a boca e pedir para ele apontar onde doía, vi que seu penúltimo molar superior esquerdo estava basicamente podre. Um profundo buraco de cor escura que mais parecia levar a um abismo talvez fosse a causa da dor:
— Hum, cárie.
Após diagnosticado, era hora de tratar. Todos sabiam do óbvio, porém fui eu que comunicou os companheiros de expedição sobre o tratamento: extração de molar!
Chong é um rapaz extremamente amigável e, apesar de não fazer ideia do que estava sendo dito, sempre sorria quando alguém falava com ele em inglês.
— Chong, você não faz ideia do que vou ter que fazer com você. Vai doer muito, disse a ele.
O pobre cozinheiro sorriu e disse “Chong” fazendo um sinal de joia. Por algum motivo, desconfio que ele não entendeu nada do que disse. Um alicate me foi passado, e o sorriso de Chong foi substituído por cara de preocupação.
Prescrevi 500 mg de Tramadol, um poderoso analgésico que chega a ser alucinógeno dependendo da dose. Usando um barato whisky chinês para esterilizar os objetos, preparei o instrumental sobre um barril.
Chong começou a sorrir novamente meia hora após ingerir as drogas, pois provavelmente estava feliz em ver um unicórnio pela primeira vez na vida graças às alucinações do Tramadol.
Comecei alavancando o dente afetado com uma pequena chave de fenda. Uma seringa com whisky era usada para lavar o buraco, e aos poucos consegui separar a gengiva e a estrutura óssea do dente. Empurrei o dente diversas vezes contra a boca de Chong para amolecer a estrutura. Mais tarde chegou a hora esperada de usar o alicate. Tive que usar gaze para que o alicate ficasse no lugar e não escorregasse. Torci e puxei o dente ao mesmo tempo. Surpreendentemente não tive que fazer tanta força. Finalmente Chong estava livre da dor.
Apesar de rudimentar e arriscado, isso livrou Chong de fazer uma viagem de 900 quilômetros até Lhasa para encontrar um dentista — que de qualquer forma iria extrair seu dente. Chong ficou muito agradecido e continuou sorrindo. Duas semanas depois ele me pediu mais um pouco de Tramadol.
Tive muitos casos tristes, outros curiosos… O mais engraçado ocorreu com um cliente norte-americano a mais de 5.000 metros de altitude. Era a terceira semana de expedição e já tinha tido três pacientes diferentes, dois deles com infecção pulmonar e outro com infecção no trato respiratório superior. Ao se aproximar, meu cliente disse se tratar de algo desconfortável. Pensando em uma dor de cabeça ou algo parecido, soube então que ele tinha hemorróidas e não sabia o que fazer. Foi horrível para mim ter que examinar o homem em sua barraca. Imagino que foi pior ainda para ele. Tive que ver o quanto de edema ele tinha e o estado da hemorragia.
Para diminuir o edema, usei o que mais temos de abundante em montanhas: gelo. Enchi uma luva com água e coloquei no freezer, localizado do lado de fora da barraca. Após 20 minutos a luva já tinha congelado. Retirei a luva e fiquei com uma mão de gelo. Quebrei um dos dedos e dei para o paciente:
— Você sabe o que vai fazer com isso, né? Ainda tenho mais quatro dedos de gelo.
Além de melhorar a limpeza do local, isso ajuda a diminuir o edema. Além disso preparei um creme misturando um creme antibiótico e dexametazona oral (antiinflamatório). O tratamento pareceu ter funcionado, e ele parou de reclamar.
Quanto mais eu aprendo sobre medicina mais percebo que não sei nada e quão complexo o corpo humano é. Em montanhas, temos que tomar decisões rápidas e usar a intuição. Isso muitas vezes acaba até salvando a vida do paciente e rendendo uma boa história mais tarde.
Além das barbeiragens médicas, com certeza uma das habilidades que mais desenvolvemos nesse tipo de trabalho é a psicologia. Mas isso seria um capítulo à parte… O site Alta Montanha é um espaço virtual inteiramente dedicado ao tema do montanhismo. Para visitá-lo, clique aqui.
DE OLHO NO DOUTOR: Suturando a 5000 metros
AJUDINHA: Suturando tibetano a 5.300 metros
DENTISTA: Restauração molar a 7.300 metros
BOCÃO: Tratando uma infecção de trato superior