Chefões dos mares

Não é só a regata de volta ao mundo Volvo Ocean Race que vem sendo ameaçada por piratas. A ação desses saqueadores marítimos representa um negócio em expansão que afeta esportes e transportes marítimos nos cinco continentes e rende milhões de dólares por ano

Por Denise Mota


CANGAÇO MARÍTMO: Na costa nordeste da Somália, pirata armado
mantém-se em vigília

A NOTÍCIA DEIXOU OS NAVEGADORES ainda mais receosos: para evitar ataques de piratas, a Volvo Ocean Race 2011-2012, a maior e mais renomada regata de volta ao mundo, teve de redesenhar as rotas do segundo e terceiro trechos do desafio, que começou em outubro e deve terminar em julho. Devido à ação de bandidos na costa africana, o trecho que os velejadores percorreriam da Cidade do Cabo, na África do Sul, até Abu Dhabi, na península Arábica, foi cortado da competição. Em vez disso, a organização do evento decidiu transportar as embarcações em um navio maior de um porto secreto do leste da África até os Emirados Árabes, de onde prosseguiriam a competição.

Exagero? Excesso de cuidado? Nem um pouco. Nos últimos tempos, a ação de barcos criminosos interceptando navios de carga e até veleiros de turistas tem sido cada vez mais freqüente – não apenas na costa africana, mas em diversas regiões do mundo. Para aqueles que pensavam que pirataria era coisa do passado, a realidade é clara: com a situação caótica de países como a Somália e a proliferação de armas em mãos ilegais, os mares se tornaram a última fronteira para roubos e sequestros.

Na verdade, a ação de piratas nunca desapareceu completamente do mapa. De saqueadores vikings do século 17 aos atuais magrelos ladrões somalis que infernizam a vida de capitães no chamado Chifre da África (região no nordeste do continente africano que abrange Somália, Quênia, Uganda, Etiópia e Djibuti), os oceanos sempre foram palco para foras-da-lei. O advento de leis e tratados internacionais antipirataria conseguiu barrar somente em parte a multiplicação desenfreada de ataques marítimos. Porém os oceanos refletem o que se passa em terra firme: onde existem miséria e Estados falidos, há piratas à espreita.

Veja o caso da Somália: a partir do colapso do governo central, em 1991, a pesca ilegal expandiu-se nas águas do país, ricas em atum – peixe cobiçadíssimo em terras endinheiradas. Como consequência, e devido ao fluxo absurdo de armas que infestaram o continente durante os conflitos locais do período da Guerra Fria, aos poucos esses pescadores foram exigindo, de forma violenta, “pedágios” aos barcos que apareciam por ali. Rapidamente o “negócio” deslanchou. Só em 2008, foram registrados mais de 120 ataques de piratas no golfo de Aden, que separa o Djibuti do Iêmen – número então recorde. Nesse mesmo ano, em setembro, os piratas somalis assustaram ainda mais o mundo ao atacar um navio ucraniano carregado de tanques e armamentos militares. Após quatro meses de agonia, a embarcação foi liberada quando um resgate de US$ 3,2 milhões foi enviado de paraquedas. Os piratas só deixaram o barco em fevereiro de 2009.


VÍTIMA: Imagem do navio norte-americano Maersk Alabama atacado por
piratas em abril de 2009 na costa da Somália

Desde então, os incidentes não diminuíram – pelo contrário. Em fevereiro de 2011, piratas somalis mataram quatro norte-americanos que velejavam de iate na região. De uns tempos para cá os criminosos somalis também têm atacado navios em águas distantes de sua costa. As investidas geralmente se caracterizam por ações agressivas ao norte, leste e sul da costa da Somália, mas já se espalham para as águas do Quênia, da Tanzânia, das ilhas Seychelles, de Moçambique e até mesmo do oeste da Índia e das Maldivas. Segundo reportagem do New York Times, piratas africanos costumam pedir resgates que chegam a US$ 2 milhões. Acredita-se que, só na Somália, eles já tenham embolsado mais de US$ 100 milhões – uma soma para lá de robusta em uma das regiões mais miseráveis do planeta.

CRIMES EM ALTO-MAR não são exclusividade da Somália e da costa leste da África. De acordo com registros do International Maritime Bureau (IMB) – organização que monitora crimes de pirataria em todo o mundo – de janeiro até 1º de dezembro de 2011 nada menos que 409 ataques e 41 sequestros foram realizados nos oceanos do mundo todo. A grande maioria, claro, acontece no golfo do Aden: neste ano, os ataques ali somaram mais de 230 ocorrências, com 26 sequestros, 450 reféns e 15 mortos. Até 1º de dezembro, dez navios e 172 reféns permaneciam sob controle de piratas somalis.


É GUERRA: Piratas nas Filipinas

Desde 1992, o IMB mantém um centro de observação de atividades de pirataria que funciona 24 horas e tem base em Kuala Lumpur, na Malásia. A entidade reúne informações sobre ataques ou tentativas de assalto a embarcações e repassa esses relatórios às autoridades responsáveis pelo policiamento marítimo no país em questão e também aos barcos que estão transitando na mesma área. O IMB trabalha ainda para melhorar as condições de segurança nos navios e para capacitar trabalhadores da indústria marítima a se precaver contra investidas desse tipo. “Mais do que de um bom arsenal de armas ou condições geográficas propícias, a pirataria hoje é resultado da incapacidade de repressão ao crime e de desestruturas socioeconômicas nos países em que ocorre”, explica Cyrus Mody, gerente do IMB.

Mesmo com armamento contemporâneo, especialmente o popular fuzil russo AK-47, os piratas da atualidade conservam características de seus antepassados criminosos. “Os ataques de hoje mantêm grande similaridade com as ações perpetradas nos séculos 17 e 18. Envolvem quase sempre a captura de grandes embarcações em águas internacionais por grupos armados de indivíduos privados”, diz Leandro Domingues Duran, especialista em história marítima e doutor em arqueologia subaquática. Autor do livro A Construção da Pirataria (editora Annablume), o historiador enfatiza a necessidade de entendermos a ascensão da pirataria dentro de um contexto de exclusão social e econômica. “As antigas disputas pelo direito das reservas pesqueiras já não são mais o principal mote das ações desses grupos. O aspecto econômico assumiu a primazia das intenções.”


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OS PIRATAS CONTEMPORÂNEOS, especialmente os somalis, costumam agir com pistolas automáticas e lança-granadas-foguete. Também chegam a utilizar “naves-mãe” – embarcações sequestradas que lançam no mar botes ou barcos menores com a finalidade de roubar e dominar navios em trânsito – para realizar ataques a grandes distâncias da costa.

Conhecedores dos ventos e das técnicas de navegação, os piratas planejam seus ataques de acordo com os ciclos da natureza. Devido à traiçoeira ventania trazida pelas monções do Sudeste, que ocorrem de junho a setembro, os ataques na costa leste africana costumam diminuir nesse período, já que os bandidos buscam águas mais calmas – os destinos mais freqüentes são o sul do Mar Vermelho, o canal de Moçambique e a Índia. “Muitos ataques foram registrados a mais de mil milhas náuticas [1.852 quilômetros] da costa somali”, informa o IMB. As monções causam a diminuição de ocorrências, mas não sua extinção, enfatiza a organização. “Recentemente foram registrados dois incidentes em que piratas somalis tentaram atacar navios durante condições climáticas de vento com escala 7, o equivalente a ondas entre 4 e 5,5 metros de altura”, conta Cyrus.

Outras águas perigosas na África são as da Nigéria – maior produtor de petróleo do continente –, do Benin, da Guiné e de Camarões. Na lista de áreas perigosas, também estão Bangladesh, Índia (especialmente a região de Kerala, no sul), Indonésia, Malásia, estreito de Singapura e Vietnã.

O continente americano não costuma sofrer muitos assaltos, e os mares brasileiros ainda estão fora da rota principal dos corsários. Mas os portos de Santos e o de Vila do Conde (Pará) são dois pontos do território nacional onde o IMB recomenda cautela aos navegantes, por conta de ataques ocorridos especialmente contra embarcações ancoradas. Foi na ilha de Marajó, por exemplo, que o navegador alemão Albrecht Engelbach foi assassinado em 2004. Ele havia começado havia 20 dias uma expedição em que pretendia atravessar o mundo sozinho a bordo de um caiaque. Os assaltantes usaram uma lancha para o assalto, matando-o com um tiro no pescoço quando ele remava pelo rio Mutuquara, na divisa do Pará com o Amapá.

De acordo com o levantamento feito pela consultoria política e econômica Geopoliticy com base nos relatórios anuais do IMB, o Sudeste Asiático foi alvo de 2.043 ataques entre 1991 e 2010; a África vem em segundo lugar, com 1.579 ocorrências. As Américas ocupam a quarta posição, com 578 casos. Mesmo assim, algumas áreas merecem cuidados. O IMB indica que os pontos americanos e caribenhos mais prováveis para ações de piratas hoje são o porto peruano de Callao, o venezuelano La Cruz e Port-au-Prince, capital do Haiti.

Ainda que a África não supere o Sudeste Asiático no total de ocorrências nestes últimos 20 anos, desde 2007 a quantia de investidas nas águas do continente supera amplamente as da Ásia. No ano passado, por exemplo, foram 259 casos africanos, contra 70 asiáticos. A série histórica montada pela consultoria mostra que a Indonésia é a campeã de ataques: 1.231, entre 1991 e 2010. O Brasil registrou 136 no mesmo período.


FORA DA LEI: Navio americano passa ao lado de barco pirata em chamas,
no Golfo Gaden, em 2010; (a baixo) soldado francês captura somali suspeito
de ataques pirata

A RENDA MÉDIA ANUAL DE UM PIRATA varia entre US$ 33 mil e US$ 79 mil, de acordo com o estudo The Economics of Piracy, publicado neste ano pela Geopolicity, tendo por base de pesquisa o universo somali. Comparado com a renda média de seus conterrâneos, esse valor representa um ganho que chega a ser 157 vezes maior do que o de um trabalhador legal do país. Em uma “carreira” de cinco anos, um pirata pode ganhar entre US$ 168.630 e US$ 394.200. No melhor emprego a que poderia aspirar no mercado de trabalho oficial (o que a consultora chama de “a melhor alternativa seguinte”), não receberia mais do que um total de US$ 14.500 – trabalhando a vida inteira. Segundo cálculos da consultora, no ano passado a pirataria custou entre US$ 4,9 bilhões e US$ 8,3 bilhões à comunidade internacional. O relatório indica que o número de piratas originários da Somália deve crescer à razão de 400 por ano e dobrar, com relação aos números atuais, até 2016.

A “cadeia de valor da pirataria” envolve várias etapas e distintos atores, dentro e fora de seus países de origem. Trata-se de um negócio que conta com agentes de perfis diferenciados, desde simples pescadores a autoridades governamentais coniventes. Segundo a Geopoliticy, o pirata padrão tem em torno de 25 anos e se mantém na atividade por um período que oscila entre três e cinco anos.

Piratas bem-sucedidos têm se tornado celebridades nas regiões a que pertencem, ao estilo dos narcotraficantes em favelas mundo afora. Relato publicado no ano passado pelo jornalista Jeffrey Gettleman, correspondente do New York Times na África, descreve de que forma o capitão pirata Abshir Boyah, oriundo da cidade de Eyl – considerada a capital somali da pirataria –, era saudado com admiração pela população, chegando a ser chamado de “primo” por um comandante da polícia. “Os casamentos de piratas são solenidades altamente elaboradas, que duram dois ou três dias, com conjuntos musicais (e noivas) trazidos de outros países em comboios de moderníssimos veículos 4 x 4”, escreveu o jornalista. “Nessas regiões, toda a economia local gira em torno do sequestro de navios, com centenas de homens, mulheres e crianças empregados como vigilantes, guardas, atendentes, cozinheiros, auxiliares de convés, mecânicos e até garçons para servir chá.” Qualquer semelhança com os morros cariocas não é mera coincidência. Quando a pobreza, a fome e a desigualdade social atingem um povo, quem veleja por mares mais abastados também sai perdendo.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2012)