Morte no K2

Ontem (6/2/2012) o site Russian Climb anunciou a morte do montanhista Vitaly Gorelik, que fazia parte da expedição russa que, pela primeira vez, tentava chegar ao cume do K2 no inverno. Com isso, a equipe que era formada por nove alpinistas decidiu colocar ponto final na escalada – pelo menos durante essa temporada.


FIQUE EM PAZ: Vitaly Gorelik (1967 – 2012)

Há mais de um mês na montanha, Vitaly morreu de insuficiência cardíaca depois de pegar pneumonia. Os esforços do médico da expedição, Serguey Bychkovsky, não foram suficientes para reverter a situação de Vitaly, que morreu no acampamento base. Com os parceiros de expedição Valery Shamalo e Nickolay Totmjanin, Vitaly havia chegado aos 7.200 metros de altitude pela face sudeste, e retornaram ao campo base no dia 2 de fevereiro por conta do mau tempo. Vitaly já apresentava congelamento nas duas mãos.

Serguey, o médico, havia pedido resgate, mas o helicóptero não conseguiu se aproximar por conta do tempo ruim.

Na edição de janeiro, a revista Go Outside publicou uma entrevista com Nikolai Totmianin. Era dezembro de 2011, e a equipe russa estava no Paquistão, prestes a se aproximar do K2. Leia abaixo a entrevista na íntegra.

FRIO NA ESPINHA

Como se não bastassem os riscos de chegar ao cume do traiçoeiro K2, no Paquistão, nove escaladores russos decidem subir a montanha na pior época do ano: o inverno


EM 2007: Expedição russa dá os últimos passos antes de pisar no cume do K2 no verão

Por Mario Mele

O italiano Reinhold Messner
, o primeiro ser humano a chegar ao cume dos 14 picos com mais de oito mil metros de altitude do mundo, não se conteve ao pisar pela primeira vez no topo do K2, em 1979: “Esta montanha é obra de artista”. Messner se encantou com o segundo maior arranha-céu natural do planeta, de 8.611 metros e formato de pirâmide, que se ergue imponente sobre a cordilheira de Karakoram, no norte do Paquistão. Pelas inúmeras dificuldades técnicas que apresenta, o K2 é uma das ascensões mais difíceis do mundo e já custou a vida de mais de 77 escaladores desde 1954 – o que torna a conquista de seu cume uma das maiores recompensas que um montanhista pode ter.
Desde Reinhold Messner, inúmeras expedições foram bem sucedidas na tentativa de chegar ao topo do K2. E um novo desafio passou a povoar o imaginário dos montanhistas: chegar a esse cume no inverno, a época mais perigosa para esse esporte. Muitos tentaram, mas até hoje ninguém conseguiu. Por dois invernos (1987/1988 e 2003/2004), expedições polonesas fracassaram – a primeira atingiu os 7.300 metros e, a segunda, 7.650 metros.
Uma nova tentativa está sendo feita neste começo de ano por nove experientes escaladores russos que decidiram unir forças para se tornarem os primeiros seres da história a atingir o ponto culminante do K2 durante a estação fria. A notícia, divulgada em dezembro, agitou o universo da escalada, tanto pela dificuldade da empreitada como pelo alto calibre dos nomes envolvidos na equipe, que tem até março para cumprir seu objetivo. Será uma tarefa de titãs.
De uns tempos para cá, escaladas invernais tornaram-se uma espécie de Santo Graal do montanhismo: muitos escaladores buscam o grande prêmio de fincar o próprio nome no panteão dos imortais do esporte. Os mais recentes dessa lista são o norte-americano Cory Richards, o italiano Simone Moro e o cazaque Denis Urubko, que obtiveram sucesso no Gasherbrum II, montanha que também fica no Karakoram, em fevereiro de 2011. Neste inverno, Simone e Denis estão no Himalaia, encarando os 8.125 metros do Nanga Parbat, no Paquistão.
Mas nada tem chamado mais a atenção do meio especializado que a expedição russa ao K2. Para virarem lenda, os nove escaladores terão que superar o ambiente mais desacolhedor de suas vidas – temperaturas de 50ºC negativos, rajadas descomunalmente geladas, whiteouts de arrepiar.
Em dezembro, até o fechamento desta edição, a equipe estava no Paquistão, esperando apenas a entrada do inverno para iniciarem os trabalhos. Foi nessa época que um deles, o experiente Nikolai Totmianin, falou com a Go Outside.
GO OUTSIDE: Quais os grandes riscos de uma escalada invernal ao K2, uma das montanhas mais temidas do mundo?
Nikolai Totmianin: Será uma escalada extremamente fria, com a possibilidade de ventar muito. O importante é não olharmos o termômetro. Por um lado, dá curiosidade de saber quantos graus está fazendo. Por outro, nosso psicológico pode ficar abalado ao notarmos que estamos num ambiente a 50ºC negativos. Levaremos um termômetro, porém a intenção é deixá-lo no terceiro acampamento base, e checarmos novamente a temperatura somente durante a descida. O mais importante é não tê-lo à disposição durante a escalada final, para não corrermos o risco de sucumbir. É fácil se desanimar em grandes altitudes. Temos que estar atentos a tudo que vem da montanha, da natureza e de nós mesmos. E não poderemos contar com ajuda externa em caso de uma emergência. Não haverá outros times no K2 nessa época, e a única maneira de chegarem até nós seria de helicóptero. Isto é, se o tempo estiver bom. Portanto, a única esperança estará sempre em nós mesmos. Entenda: escalar o K2 é apenas uma das tarefas; outra, bem diferente, é sair vivo de lá.

Existe alguma condição favorável quando se escala no inverno? Por exemplo, o risco de avalanche é menor?
A única vantagem de se escalar no inverno é que, com o ar seco, os congelamentos pelo corpo são mais “toleráveis”. Mesmo assim, quando voltarmos, talvez tenhamos que sofrer durante uns dois meses por conta deles. Escalaremos sem oxigênio suplementar, mas a rota que pegaremos é belíssima e também mais curta – teremos no máximo 24 horas para pisar no cume do K2, calculando a saída do último acampamento. Outro fator conveniente do inverno é que não há diferença de temperatura entre o dia e a noite – faz muito frio sempre. É bem provável que as rochas da via estejam totalmente cobertas de neve e, com isso, possamos cavar abrigos em alguns lugares. Quando sua barraca é constantemente atingida por rajadas de vento, o barulho se torna mais um peso para o psicológico do montanhista. Então, se conseguirmos fazer uma caverna cavando na neve, poderemos relaxar confortavelmente. Além disso, essas covas são quentes. Quando a vela está queimando, pode fazer 0ºC, apesar de lá fora estar 30ºC negativos.

Quais situações esperam encontrar?
No último inverno, chequei as condições de vento constantemente e nenhuma delas indicou menos que 70 km/h. Mesmo assim, houve semanas em que a temperatura oscilou entre -15ºC e -25ºC. No cume bateu -35ºC. Se ventar a uma temperatura de -50ºC, nada poderá nos salvar. Só espero que não chova. Uma condição climática o nosso favor seria sol sem vento e sem nuvem, só com a paisagem silenciosa ao fundo. Isso, porém, significa que as noites serão frias demais, e aí nossa alegria mudaria drasticamente.

Por que sua expedição tem tantos integrantes? É mais seguro ir dessa forma?
Somos em nove e escalaremos em três trios. Não considero muita gente, porque alguém pode adoecer ou ter congelamentos sérios durante a rota. Também não sabemos se haverá muita neve, nem quão trabalhoso a subida será de fato.

O quanto a equipe é experiente em alta montanha?
Todos já enfrentaram duras escaladas desse tipo. Eu já fiz a face sul do Lhotse e do Everest, além do Jannu pela face norte. Na Rússia, subi diversas vezes o monte Pobeda como guia, inclusive no inverno. A biografia dos meus companheiros é parecida, com ascensões ao Lhotse Middle, ao Everest pela face norte e ao K2 pela oeste. Evgeny Vinogradskiy, que tem 65 anos, já escalou o Everest cinco vezes. O único “novato” do time é Vladimir Belous, que já participou de algumas expedições ao Himalaia. Estamos todos tranquilos quanto a isso, porque ele foi indicado por nosso amigo e grande escalador Alexey Bolotov.

Vocês são do tipo que se arriscam para salvar um amigo na alta montanha?
Nesse caso, costumamos trabalhar à beira da capacidade humana. Alexey Bolotov, por exemplo, fez de tudo para resgatar seu colega Iñaki Ochoa no Annapurna: ele arriscou a própria vida, pegou pneumonia e, mesmo assim, chegou tarde demais, sem conseguir tirá-lo de lá com vida. Em 1999, na face sul do Lhotse, resgatamos Vladimir Karatayev, que viveu uma história dramática. Ele sobreviveu, mas perdeu todos os dedos – das mãos e dos pés.

Qual foi o maior preço pago por você para sair vitorioso de uma montanha?
O que realmente custa caro é perder amigos durante a expedição. E cada um de nós já perdeu pessoas muito próximas durante estes anos como montanhistas. Além disso, montanhismo também é um duro teste para nossos familiares, que ficam um bom tempo sem nos ver e passam apuros por nossa causa. É o preço pago pela vitória.

Depois dessa escalada invernal, existirá um desafio ainda maior em suas vidas?
Claro! Há várias paredes com mais de oito mil metros que ainda não foram escaladas no inverno.

Acompanhe as atualizações da expedição russa pelo site k2-winterclimb.ru/eng

(Reportagem publicada originalmente na edição nº 80 da revista Go Outside – janeiro 2012)