A primeira pessoa a percorrer o Caminho da Mata Atlântica, a maior trilha de longo percurso da América Latina, é uma mulher. A jovem argentina Julieta Santamaria, de 26 anos, concluiu sua jornada que começou há 15 meses, no Parque Estadual do Desengano, no Rio de Janeiro.
A ideia de percorrer o Caminho da Mata Atlântica surgiu de forma despretensiosa, em Ilhabela, onde ela morava e trabalhava. Esse desafio pessoal envolveu meses de preparo físico e de técnicas de segurança para encarar a aventura. Como pioneira, claramente, todos os percalços só poderiam ser descobertos vivendo a experiência.
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Apesar de 15 meses de projeto, foram 195 dias caminhando pela trilha. E passou por centenas de pessoas, florestas, cachoeiras e animais ao longo do trajeto. Não havia pressa. A cada quilômetro e dia avançado, novas pessoas e ideias surgiam. “Não é só caminhar, não é só ter pressa para chegar ao final. É se conectar com as pessoas pelo caminho”, conta, horas depois de ter concluído o percurso, no Rio Grande do Sul.
Encontrei Julieta nos quilômetros finais de sua caminhada, no dia 7 de junho de 2025, no meio do Parque Nacional Aparados da Serra, onde também termina o Caminho da Mata Atlântica — o CMA.
Ela chegou acompanhada pelos coordenadores dos núcleos regionais e o coordenador do CMA e também por amigos que a acompanharam pelas trilhas no Rio de Janeiro, Paraná e São Paulo. Julieta chegou com um sorriso no rosto e muitos abraços a esperando.
Exatamente assim como ela começou e se manteve durante todos esses meses. Pelas suas redes sociais, pudemos acompanhar momentos solitários, o encontro assustador com javalis selvagens, dias de chuva e caminhadas na estrada.
A cada passagem, algumas reflexões:
“O projeto começou como um desafio pessoal, porque eu ia ter que fazer muitas coisas que não eram comuns na minha vida, como acampar e passar dias inteiros caminhando — de oito a dez horas só caminhando. Então, tudo começou como um desafio pessoal, querendo entender, querendo me conectar com a natureza.
À medida que fui avançando nos primeiros quilômetros, comecei a entender o que era o Caminho da Mata Atlântica. Participei de alguns projetos, como de plantio e regeneração florestal, e fui me encantando com tudo o que eles fazem, especialmente com a ideia de criar um corredor de biodiversidade ao longo dos cinco estados pelos quais passa o Caminho.”
Julieta também acompanhou projetos de monitoramento de fauna. A Mata Atlântica é um hotspot de biodiversidade, o que significa que é altamente biodiversa e, ao mesmo tempo, bastante ameaçada. Portanto, encontrar animais pelo trajeto era uma alegria garantida.
“O que mais me faz feliz, quando estou caminhando na floresta, é ver uma pegada de algum felino. Ou então, encontrar animais como anta, cachorro-do-mato, muriqui do sul, cateto, javali, cervo ou veado. Fico muito feliz de saber que esses animais estão por aí.”
Nessa caminhada, o papel das redes sociais foi fundamental para engajar a sociedade e comunicar a importância da conservação. “É minha ferramenta de trabalho e meu jeito de aproximar as pessoas do que estou vivendo.”
Foi um projeto pessoal, iniciado sem financiamento algum. “Saí com uma mochila e um sonho”, Julieta me conta enquanto caminha pelos quilômetros finais.
Com uma mochila de 15 quilos, ela percorreu, em média, 20 km por dia, carregando roupas, saco de dormir e barraca.
Nos trechos finais, em Santa Catarina, ela planejou melhor a alimentação, carregando o equivalente a sete dias de comida, caso precisasse acampar na Serra Geral catarinense, um dos trechos finais. “Eu organizava a mochila de acordo com o trecho que iria percorrer. Por isso, o planejamento e o conhecimento do terreno eram tão importantes — saber se havia alguma venda no caminho para carregar menos peso de comida, e assim por diante”, explica Julieta.
O preparo físico começou em 2023, quando ela decidiu fazer a trilha completa. Mesmo sem experiência anterior parecida, Julieta improvisou com muita criatividade, simulando as situações que poderia enfrentar ao longo do percurso.
“Me preparei de novembro de 2023 até fevereiro de 2024. E eu fazia qualquer coisa que me desse resistência. Saía para correr na praia, nadava, pegava minha mochila nos dias de folga, quando não trabalhava, e caminhava 25 km com ela. Fazia bate e volta em trilhas, trilhas longas de cerca de 30 km. Tudo o que me fortalecia. Acho que isso me ajudou a não me machucar. Nos 4.000 km, por exemplo, não me machuquei em nenhum momento.”
Ao ser questionada sobre a possibilidade de ainda se encantar com o mundo, Julieta traz um pensamento lindo:
“Gosto muito de fazer trilha sozinha, porque posso encontrar muitos animais. Sempre encontrei algum deles sozinha: cobra, anta, muriqui, muitos animais em perigo de extinção. Tive o privilégio de encontrá-los, e é incrível saber que eles estão aí. Também conheci muitas pessoas que são guardiãs da natureza, que reflorestaram áreas completamente desmatadas. Pessoas com senso de comunidade, que se importam com os outros e não esperam nada em troca. Então, ainda podemos nos encantar com a natureza, com o mundo em que vivemos.”
Julieta destaca que o que mais precisou durante a caminhada foi acreditar nas pessoas.
Solidariedade — acreditar nas pessoas
A ajuda veio de todos os lugares, desde o primeiro dia. Sempre tive portas abertas na casa de desconhecidos, além do apoio de grupos de trilheiros e trilheiras ao longo dos cinco estados, e até de seguidores nas redes sociais. Nunca me faltou comida, equipamento ou qualquer coisa. Pelo Instagram, as pessoas me perguntavam como eu estava, se precisava de alguma coisa, se podia andar.
Quando minhas botas se estragaram, consegui umas novas; quando elas estragaram de novo, consegui outras. Uma amiga fez uma trilha comigo e viu que minha mochila estava em péssimo estado. Eu percorri quatro mil quilômetros com uma mochila de um modelo mais barato, mas já estava acostumada. Fizeram uma vaquinha para comprar uma mochila mais técnica. A loja Mundo Aventura, do Paraná, enviou-me uma série de roupas para o inverno. Depois que passei pelo Petar, já com dois mil quilômetros percorridos, recebi um rastreador satelital da SPOT Brasil. Sem contar que, no meu primeiro dia, o carioca Washington Terra, após me conhecer na estrada, passou a me ajudar financeiramente ao longo da jornada.
Rede de apoio
Desde o início da caminhada, Julieta passou a ser acompanhada de perto pelo coordenador-geral do Caminho da Mata Atlântica, Chico Schnoor.
Com o tempo, foi-se criando uma rede de voluntários ao longo do percurso que apoiaram Julieta. O Caminho da Mata Atlântica está mapeado em quase sua totalidade, com uma lista de parceiros cadastrados pelo site, incluindo chalés, restaurantes, campings e guias. Todos recebem os caminhantes que se identificam com o Caminho e oferecem alguma ajuda, seja descontos ou outros benefícios.
O feito da caminhante argentina também contribuiu para testar a rede conectada do Caminho da Mata Atlântica, como conta o coordenador-geral da trilha, Chico Schnoor:
“Muitos dos atuais parceiros e voluntários do Caminho são pessoas que, desde o início, acreditaram nesse grande sonho de consolidar a maior mega trilha da América Latina. A Julieta, em sua caminhada, representava a concretização dessa jornada. Como coordenador, falava com ela toda semana para saber de seus planos e apoiar em dificuldades. A partir dos pontos que ela me passava, acionava a cadeia de serviços de turismo, voluntários e parceiros do Caminho nos próximos trechos. Todos ficavam muito felizes e orgulhosos de receber a primeira caminhante a percorrer a trilha. Isso gerou uma sinergia e um elo entre todos, fortalecendo ainda mais essa grande iniciativa. Muitos trechos que tinham poucas opções de parceiros receberam Julieta e cadastraram novos apoiadores, tornando cada vez mais rica e completa as opções de suporte para aqueles que quiserem percorrer o Caminho na sua totalidade ou em trechos específicos.”
A aventura de Julieta extrapolou o sonho pessoal para se tornar o sonho de muitos. Assim que chegou ao Parque Nacional Aparados da Serra, no Rio Grande do Sul, no trecho final de sua jornada, Julieta passou o bastão da caminhada para o catarinense Rodrigo Ferreira, de 37 anos, que também iniciou o desafio de completar os mais de quatro mil quilômetros do Caminho da Mata Atlântica, desta vez, do sul para o norte. A expectativa é chegar ao Parque Estadual do Desengano, no Rio de Janeiro.
Nos passos finais, Julieta Santamaria recebeu uma placa reconhecendo seu feito das mãos da irmã e mãe que vieram diretamente da Argentina para esperá-la.
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O texto:
O Instituto Caminho da Mata Atlântica, em nome de todos os voluntários, parabeniza Julieta Jazmin Santamaria por ser a primeira pessoa a percorrer os mais de 4.000 km do Caminho da Mata Atlântica, desde o Parque Estadual do Desengano, no Rio de Janeiro, até o Parque Nacional de Aparados da Serra, no Rio Grande do Sul.
Sua jornada e conquista serão referência e inspiração pela conservação e para as trilheiras e trilheiros no Brasil.
As pessoas no coração da mata e a mata no coração das pessoas.
07 de junho de 2025.
Parabéns, Juli! Por ter encantado e inspirado tantas pessoas pelo seu caminho.
Parafraseando o lema do Caminho da Mata Atlântica, a partir de agora será: “As pessoas no coração da mata e a mata e Julieta no coração das pessoas.”
Sobre o Caminho da Mata Atlântica
O Caminho da Mata Atlântica é uma trilha de mais de 4 mil km que percorre toda a Serra do Mar e um trecho da Serra Geral, entre os estados do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. A trilha tem seu limite norte no Parque Estadual do Desengano (RJ) e se estende até os cânions do Parque Nacional dos Aparados da Serra (RS).
Inspirada na Appalachian Trail norte americana, a trilha cruza mais de 130 áreas protegidas, diversas comunidades tradicionais e terras indígenas e une trilhas históricas, como o Caminho do Itupava (PR), os Caminhos do Mar (SP), o Caminho de Mambucaba (SP/RJ) e as travessia Petrópolis-Teresópolis e Lumiar-Sana (RJ). Serpenteando por montanhas e praias, a trilha passa também pelas paisagens da Ilha de Santa Catarina (SC), Ilha do Mel (PR), Ilhabela (SP) e Ilha Grande (RJ).
O Caminho da Mata Atlântica é muito mais do que uma trilha, é uma iniciativa que integra o montanhismo e o ecoturismo para promover desenvolvimento local e conservação da biodiversidade em um dos biomas mais ameaçados do mundo.