A série ‘Ruptura’ vai fazer você reavaliar o seu compromisso com a corrida

Por Mallory Arnold*

Foto: Reprodução / RUN.

Nas últimas semanas, eu apostaria meu último gel de carboidrato que alguém já te perguntou: “Você assiste Ruptura?” E se você disse não ou piscou confuso, tenho certeza de que não sou a primeira pessoa que vai te dizer que essa série é incrível.

Para os não familiarizados, Ruptura (Severance, em inglês), que estreou em 2022, se passa em uma era futurista onde uma empresa chamada Lumon Industries desenvolveu uma biotecnologia que permite que seus funcionários “separem” seus cérebros em duas personalidades: seu eu profissional e seu eu pessoal.

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As pessoas submetidas à “ruptura” passam por um procedimento médico que implanta um dispositivo no cérebro, fazendo com que esqueçam tudo sobre o mundo exterior assim que pisam no prédio do trabalho. Da mesma forma, ao saírem do escritório, todas as memórias do expediente desaparecem. Em teoria, existem “duas” versões de você: uma que trabalha e outra que não.

Depois de anos de expectativa, o primeiro episódio da segunda temporada estreou em janeiro. E, na verdade, é só nisso que tenho pensado ultimamente.

O brilhantismo da série está no fato de abordar temas como equilíbrio entre vida pessoal e profissional, cultura corporativa, expressão política e o significado da memória e da comunidade. A série faz você refletir sobre como seria a vida se tivesse a opção de passar pelo procedimento de ruptura. Você nunca mais sentiria o estresse ou o cansaço do trabalho e poderia focar apenas na sua vida pessoal. Por outro lado, tecnicamente criaria uma versão completamente separada de si mesmo que não sabe nada sobre sua vida fora do trabalho — apenas as quatro paredes do seu cubículo.

Enquanto assisto à segunda temporada, episódio por episódio a cada semana, começo a me perguntar como a ruptura se aplicaria a outras áreas da minha vida — como a corrida.

Você separaria seu eu corredor?

E se, assim que eu calçasse meus tênis de corrida, minha versão separada assumisse e fizesse todo o trabalho duro? Digamos que, em um dia frio, eu não estivesse com vontade de encarar um treino puxado. Se eu tivesse um “eu corredor” separado, não precisaria sentir o vento gelado no rosto, subir ladeiras torturantes ou aguentar quilômetros em ritmo de prova. Eu simplesmente sairia de casa com meus tênis e, num piscar de olhos, estaria de volta para o lanche pós-corrida. Eu colheria os benefícios de ganhar resistência e melhorar meu desempenho para provas e rotas divertidas — sem precisar sofrer nas partes difíceis do treinamento.

O cenário fictício é tentador. “Mas correr deveria ser divertido!”, você pode dizer. “Se você não gosta, então não corra!” Sim, sim, eu concordo. Mas se você já treinou para uma prova, sabe que há dias em que gostaria de ter escolhido um hobby mais fácil.

Aqui estão alguns momentos em que eu gostaria de estar separada:

– Quando meu despertador toca às 5 da manhã para minha corrida matinal e eu estou confortavelmente deitada, dormindo no lado frio do travesseiro;

– Quando estou correndo debaixo de uma chuva torrencial tão forte que fico ofegando com a boca aberta como um peixe.

– Quando preciso subir uma ladeira que me obriga a correr em câmera lenta.

– Quando fico sem água durante uma corrida sob um sol escaldante.

– Quando o calor e a umidade são tão intensos que preciso arrancar, uma por uma, as mosquinhas grudadas no meu rosto.

Acontece que o motivo pelo qual as pessoas suportam desafios difíceis e pouco prazerosos pode ser explicado pelo Paradoxo do Esforço, uma teoria conceituada pelo psicólogo Michael Inzlicht, da Universidade de Toronto. O paradoxo sugere que o esforço pode ser ao mesmo tempo custoso e valioso. Embora nossa genética nos empurre a priorizar a sobrevivência acima de tudo (o que geralmente não exige escalar montanhas ou correr longas distâncias), os seres humanos evoluíram para, às vezes, escolher a dificuldade em vez da facilidade.

Perguntei a Inzlicht quais seriam as repercussões de “separar” a si mesmo para, por exemplo, um ciclo de treinamento para maratona.

“Embora possa parecer tentador pular o treinamento exaustivo e apenas desfrutar do estado de prontidão para a prova, nossa pesquisa sugere que isso provavelmente diminuiria a experiência como um todo”, diz Inzlicht. “Descobrimos que o esforço, apesar de ser aversivo no momento, é uma fonte crucial de significado e satisfação.”

Ele explica que estudos comportamentais mostram que as pessoas valorizam mais suas conquistas quando elas exigem esforço significativo. Aquela onda de emoção que sentimos ao cruzar a linha de chegada pode não ser tão intensa se não tivéssemos passado meses treinando para chegar lá.

“Removendo a experiência do esforço, podemos estar removendo o que torna as conquistas verdadeiramente significativas”, diz Inzlicht. “A própria luta se torna parte da história e da identidade.”

Isso me lembra do famoso Teste do Marshmallow, um estudo conduzido pelo psicólogo Walter Mischel em 1970. No experimento, Mischel colocava um marshmallow na frente de uma criança em idade pré-escolar e dizia que, se ela esperasse para comê-lo, ganharia um segundo marshmallow depois. Os resultados mostraram que mais crianças estavam dispostas a esperar mais tempo (a opção mais difícil) para obter uma recompensa maior. Da mesma forma, corredores estão dispostos a suportar os momentos difíceis do treinamento porque a sensação de cruzar a linha de chegada é extremamente gratificante.

O estudo também revelou que as crianças que resistiram ao marshmallow tinham maior tendência a serem pacientes no futuro e estavam mais preparadas para lidar com os aspectos difíceis da vida. O mesmo pode ser dito sobre aqueles que enfrentam os desafios da corrida. Pesquisas mostram que corredores (especialmente ultramaratonistas) possuem níveis mais altos de autoeficácia em comparação com aqueles que não correm, o que impacta significativamente sua motivação, comprometimento e autocontrole. Estudos também indicam que, devido à sua resistência mental, esses corredores possuem estratégias mais eficazes de regulação emocional, melhores mecanismos para lidar com o estresse e níveis reduzidos de ansiedade.

Para mim, o aspecto mais marcante dessa pesquisa é que, na maioria das vezes, corredores não nascem com essa resiliência mental extra—ela é desenvolvida através da repetição constante de superar desafios, como acordar antes do amanhecer, correr debaixo de chuva e neve, e enfrentar subidas assustadoramente íngremes.

Se eu me separasse, talvez não tivesse a mesma força mental que tenho hoje. A mesma mentalidade que me ajudou a enfrentar problemas fora da corrida, a lidar com os estresses do dia a dia e a me tornar confiante o suficiente para buscar metas e desafios maiores. Na verdade, paradoxalmente, evitar o sofrimento daqueles dias em que odeio correr poderia, no fim das contas, fazer com que eu amasse menos esse esporte.

É claro que tudo isso é apenas um cenário fictício, e chegar a essa conclusão pode parecer irrelevante. Mas esse exercício mental me faz lembrar da importância de entender por que investimos tanto tempo e energia nesse hobby aparentemente bobo. Nos ajuda a valorizar a corrida mesmo nos dias ruins e nos dá forças para superar os momentos difíceis inevitáveis durante aquela prova para a qual treinamos o ano todo.

Além disso, quem sabe até onde os avanços da biotecnologia podem nos levar? Talvez a separação um dia seja uma opção real. Pelo menos agora, já tomei minha decisão com bastante antecedência.

*RUN Magazine