Em meio à longa e exaustiva luta contra o alcoolismo, W. HODDING CARTER decidiu dar um pontapé inicial em sua recuperação com um sério desafio físico: uma viagem de mochila pelas 100-Mile Wilderness do Maine, um dos trechos mais remotos e desafiadores da AT, a Appalachian Trail. Sua tentativa inicial foi um fracasso total, mas foi o primeiro passo para a jornada de cura que ele seguirá pelo resto da vida.

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Muitas pessoas se divorciaram durante os anos da COVID-19, e muitas se perderam em seus vícios. Como sempre quero ser o melhor em tudo, fiz as duas coisas. À medida que a pandemia avançava pelos EUA nos primeiros seis meses de 2020, minhas três filhas adultas, um dos namorados delas, minha sobrinha e meu filho, que estava no último ano do ensino médio, estavam todos morando comigo e minha esposa, Lisa, em nossa casa em Camden, Maine. Costuravamos máscaras, treinavamos no porão, cozinhavamos refeições elaboradas que às vezes ocupavam o dia todo, fazíamos pão de fermentação natural melhor do que 95% de vocês, jogávamos palavras cruzadas e Boggle e nos envolvíamos em grandes discussões durante episódios de Jeopardy! Como estávamos escondidos em segurança no centro da costa do Maine, era um acampamento de verão que nunca acabava, além de uma festa em casa. Talvez inspirados por essa atmosfera, também bebemos. Alguns de nós mais do que outros — bem, eu principalmente, e bem mais. Eu bebia drinks sofisticados à noite com meus filhos e também bebia sozinho à tarde, de uma garrafa escondida na garagem. A pandemia foi a desculpa perfeita para aumentar o meu costumeiro consumo diário de bebidas.

Lisa ocasionalmente sugeria que eu fizesse uma pausa, principalmente depois de me pegar tomando um gole de gim ou cheirando a álcool no começo da tarde. Eu, porém, não estava preocupado. Não bebia de manhã. Eu estava bem. Mais importante, na minha opinião, beber ou não era uma opção que eu ainda controlava. Mas com o passar dos meses e a minha festa particular continuando, aquele primeiro gole do dia começou a acontecer cada vez mais cedo. Em junho, eu estava bebendo antes do meio-dia, e até eu sabia que tinha que fazer alguma coisa. Não era incontrolável, eu dizia a mim mesmo. Eu só precisava parar por um tempo e decidi fazer isso com a ajuda de uma aventura ao ar livre. Estabelecer uma tarefa física impossível, entrar em forma e conseguir realizar: era assim que eu operava há décadas.

O 100-Mile Wilderness não é a seção mais difícil dos 3.525 quilômetros da AT – Appalachian Trail, ou Trilha dos Apalaches, em português – , mas é a mais remota. Em meio às densas florestas do centro do Maine, nos Estados Unidos, com sete picos se erguendo acima da floresta, a trilha me atraiu durante anos. Meu plano era elegante em sua simplicidade: carregando todo o meu equipamento e comida, eu começaria na cidade de Monson e caminharia pelos dez dias recomendados, terminando minha jornada no topo do extremo norte da AT — Monte Katahdin, que fica ao norte do 100-Mile Wilderness — adicionando assim um pico, aproximadamente 16 quilômetros, e talvez um dia extra. O que poderia dar errado?

Encomendei um mapa e, devo admitir, foi o máximo da minha preparação. Não fiz uma lista de coisas para levar e nem pensei muito em como me alimentaria. Em vez de percorrer quilômetros nas inúmeras trilhas de caminhada na região onde moro, imprudentemente decidi que me lamentar bêbado com meu saco de pancadas no porão era tudo o que eu precisava.

“O que você vai comer?” minha filha mais nova, Helen, de 22 anos, perguntou dois dias antes de eu partir. “Você não quer mais refeições liofilizadas? Posso ajudar a escolher. Você vai precisar todos os dias.”

“Olha como eu estou gordo!” Eu me gabava, dando tapinhas na minha barriga inchada. “Posso passar o período todo vivendo disso.” Tenho 1,85 m e normalmente peso cerca de 80 kg. Na época, quando eu bebia mil calorias a mais de bebida alcoólica por dia, eu chegava a quase 95.

Helen não riu.

“Terei arroz suficiente para sete noites, algumas cebolas, alho, pacotes de aveia para o café da manhã, muitas barras de cereais e mix de trilhas, além de três refeições liofilizadas”, continuei, tentando não enrolar as palavras. “Escuta, querida. Preciso voltar à forma. Esta é a melhor maneira que conheço.”

“Ok, pai”, ela respondeu. “Mas eu realmente acho que você deveria viajar com menos bagagem e levar mais alimentos liofilizados. Você está verdadeiramente pronto para isso?”

“Vou ficar bem”, respondi. Claro que ficaria bem! Na faculdade, fui campeão de natação da NCAA DIII. Certa vez comi 135 ostras em 15 minutos. Refiz o caminho da expedição de Lewis e Clark em um barco inflável. Naveguei em um navio viking pelo Ártico. Atravessei os Everglades empurrando uma canoa, varando capim e jacarés por dias e dias.

Acordei à 1 da manhã no dia da minha partida, com meus equipamentos espalhados pelo chão do quarto, e pensei: Talvez essa pequena viagem não seja uma boa ideia. Tomei um gole de uma garrafa de gim. E outro. E mais um. Às duas, eu já tinha colocado tudo na mochila e me sentia muito bem com a situação. Fiquei inconsciente até às seis, quando Lisa e eu começamos a viagem de 2,5 horas até a trilha. Lisa dirigiu.

Àquela altura, nosso relacionamento de quase 30 anos já seguia uma fórmula viável no que diz respeito às minhas aventuras: Eu saía para aventuras malucas, impulsivo, e a Lisa me apoiava, revirava os olhos e segurava as pontas. Por trás dessa rotina, havia um casamento real, com papéis familiares divididos e anos de tensão não resolvida. Estávamos à beira do divórcio, e ainda assim lá estávamos, juntos ainda.

Minha mochila pesava um pouco mais de 22 quilos, e perguntei a ela sobre uma aventura que havíamos feito juntos no passado. “Quando subimos as Smoky Mountains, nossas mochilas não pesavam tudo isso, não é? Eu vou ficar bem, certo?”

“Claro.” Ela não mencionou que tínhamos feito essa caminhada havia 20 anos.

Ilustração: Caroline Tomlinson

Quando chegamos a Monson, percebi que não sabia onde ficava o início da trilha para o trecho de 100 milhas, mas encontramos a trilha propriamente dita.

“É estranho que não haja nenhuma placa de 100 milhas”, eu disse depois de colocar minha mochila nas costas.

“Bem, a placa diz que é a AT e estamos em Monson”, ela disse. “Você vai se divertir muito. Vai ficar tudo bem.” Na verdade, ela só queria que eu saísse do pé dela.

Era uma manhã fria de julho, mas em poucos minutos eu fedia a bebida velha e minha camisa estava encharcada de suor. Pior, caí duas vezes no primeiro quilômetro, por causa dos meus tornozelos bambos, e meus ombros e costas doíam. Mesmo assim, eu ainda ficava maravilhado com as folhas ridiculamente grandes dos bordos listrados, onde eu me apoiava para recuperar o fôlego. É disso que preciso para voltar ao caminho certo, pensei. Eu consigo. Sem problemas! Finalmente, por volta do meio-dia, a caminho atravessou um pequeno estacionamento ao lado de uma rodovia. Este era o verdadeiro início da trilha — o início da rota em direção ao norte através do deserto de 100 milhas.

Comecei 5.300 metros mais cedo.

Abasteci meu cantil de água, comi algumas barrinhas de cereal e conversei com um trio de caminhantes que me disseram que eu estava parecendo um pouco carregado, como uma versão velha e peluda de Cheryl Strayed quando ela saiu pela Trilha da Costa do Pacífico. Trinta minutos depois, cheguei a uma prancha um tanto estreita que cruzava um riacho. Cheguei à metade do caminho quando perdi o equilíbrio, girei 180 graus e caí pelo barranco abaixo. Então, lenta e inexoravelmente, minha mochila me puxou para trás até que eu caísse na água, me debatendo e deitado como uma tartaruga virada.

Os quatro quilômetros seguintes podem ser resumidos assim: Caí mais três vezes, uma delas me agarrando com todas as minhas forças a um arbusto de olmo bem posicionado, com meu corpo pendurado sobre um precipício de três metros. Quando cheguei a um abrigo na trilha, por volta das 16h30, eu já tinha percorrido pouco mais de 10 quilômetros. Estava coberto de escoriações, sujeira e sangue, e minhas pernas tremiam incontrolavelmente. Eu tinha uma necessidade enorme de ir ao banheiro.

Tudo ficará bem, eu disse a mim mesmo. Estou com diarreia porque exagerei e minha mochila está muito pesada. Joguei cerca de dois quilos de cebolas na floresta.

Cansado demais para cozinhar, me enfiei no meu saco de dormir bem antes do pôr do sol. Foi então que os tremores leves se transformaram em espasmos violentos. Até mesmo levantar minha lanterna de cabeça do chão do abrigo foi difícil, porque meu braço se movia espasmódicamente. Eu estava cansado demais para ler, mas precisei da lâmpada para cambalear até o banheiro externo. Repetidamente. A noite toda.

Por volta da 1 da manhã, tive que encarar a realidade. Dor de estômago, dores, tremores e espasmos musculares — todos eram sintomas clássicos de abstinência. Eu não tinha ideia de que estava bebendo o suficiente para ter essa reação, e imediatamente me xinguei por não ter levado meio litro de gim. Eu poderia ter usado isso para diminuir os sintomas. Claro, eu teria engolido tudo, então talvez fosse melhor sofrer.

Enquanto me debatia como um peixe no asfalto, sentindo arrependimento e autopiedade, decidi que, não importava o que acontecesse, eu faria o melhor que pudesse. A caminhada seria minha desintoxicação. Eu ficaria sóbrio e continuaria assim. (Mais tarde, os médicos me disseram que, no meu nível de dependência, a desintoxicação seria melhor se feita em um hospital, e tive sorte de não ter sofrido um derrame.)

Não dormi a noite toda.

Por acaso havia sinal de celular e, de manhã, informei à minha família que não estava me sentindo muito bem. Eu disse a eles que provavelmente tinha bebido água contaminada. Eu precisaria de um reabastecimento 48 quilômetros depois, em um cruzamento com uma estrada de exploração madeireira, porque planejava jogar ainda mais comida fora. Eu disse a eles que levaria pelo menos três dias para chegar ao ponto de entrega.

Isso acabou se revelando uma ilusão. A diarreia e os tremores continuaram durante o segundo dia e noite, e tudo que consegui foi beber um pouco de água.

Quando saí do meu saco de dormir na terceira manhã, meu estômago já estava melhor e eu conseguia andar sem sentir como se estivesse em um terremoto. Arrumei meu equipamento lentamente, abandonei cerca de mais dois quilos de comida. Aqueci um pouco de água e comi metade de um café da manhã liofilizado. Isso me deixou exausto, então sentei na beirada do abrigo, reunindo forças por mais ou menos uma hora, até que a latrina me chamou.

Quando finalmente parti, andei uns 360 metros antes de desistir. Mandei uma mensagem para Lisa dizendo que estava muito fraco por causa da “intoxicação alimentar”.

“Não pare. Você vai se arrepender depois”, ela insistiu. Foi quando eu contei a ela que estava em crise de abstinência. Ela disse que me encontraria em cinco horas.

Não me lembro de quantas vezes caí no caminho de volta para o começo da trilha, mas lembro de rastejar de quatro. E eu definitivamente me lembro dos gemidos e dos altos e estrondosos berros. Os caminhantes que passavam em direção ao norte olhavam para mim com medo e pena. Eu era um conto de advertência vivo e pulsante — inchado, sobrecarregado, suado, velho e quebrado.

Claramente, sou um viciado. Não é uma grande surpresa, considerando que eu ainda era criança quando fiquei bêbado pela primeira vez. Aparentemente, encontrei copos com sobras de drinks old-fashioned no final de uma das festas dos meus pais em Greenville, Mississippi, na década de 1960. Tomei todos e comecei a fazer paradas de mão e cambalhotas. Isso sempre foi contado como uma história engraçada.

Eu estava no ensino médio quando comecei a beber de verdade, mas não fazia isso com frequência, porque era nadador competitivo. Ainda assim, quase toda vez que a bebida tocava meus lábios, eu bebia até vomitar ou desmaiar. Na faculdade, tive inúmeros apagões, inclusive uma vez em que fiquei tão bêbado que meus amigos me amarraram na cama. Continuei nessa linha no Corpo da Paz — incluindo algumas noites de bebedeira com um agente da KGB, o que quase me colocou em grandes problemas — e durante um breve primeiro casamento, quando tinha quase trinta anos, em Nova York. No inverno de 1991-92, uma amiga — cansada depois que eu, bêbado, despejei cerveja em seu risoto para ajudar a “melhorar o sabor” e arruinar seu jantar — praticamente exigiu que eu procurasse ajuda.

Estragar um risoto não é um sinal de alerta típico, mas eu sabia que algo estava errado havia muito tempo. Meus dois avôs morreram de complicações relacionadas ao alcoolismo, meus pais tinham problemas com álcool e uma das minhas irmãs era alcoólatra desde a adolescência.

Em janeiro de 1992, comecei um programa intensivo de recuperação ambulatorial de oito meses. Graças a três dias por semana de terapia de grupo para homens, comecei lentamente a lidar com meus sentimentos mais desconfortáveis — tipo, todos eles. Minha esposa e eu, casados havia apenas 18 meses, nos separamos. Superficialmente, isso aconteceu porque ela tinha encontrado outra pessoa, mas eu sabia que era porque era impossível conviver comigo: hipersensível, ciumento, arrogante e determinado a estar certo em qualquer discussão. E eu precisava de toda a atenção dela para me sentir bem comigo mesmo.

Ilustração: Caroline Tomlinson

Resumindo, eu tinha muito o que falar. Não foi fácil, mas consegui depois de ver todos os outros homens — um carpinteiro, um historiador de arte, um banqueiro, alguns atores famosos e um comediante — abrirem seus corações diante de mim. A maioria dos viciados têm traumas enterrados que tentam automedicar. Por mais que eu quisesse ser diferente nesse aspecto, não era. Para entender as fontes do seu trauma, você precisa descascar as camadas. Uma das minhas era assim: Cresci em uma família que era desprezada pela maioria dos brancos no Mississippi e em todo o Sul, porque tanto meu avô quanto meu pai foram editores do Delta Democrat-Times e escreviam editoriais visionários sobre injustiça racial a partir da década de 1940.

O ódio direcionado a nós não era nada comparado ao que os negros eram obrigados a suportar naquela época, mas minha família era alvo de frequentes ameaças de morte e sequestro, além de intermináveis telefonemas agressivos. Os homens da família Carter dirigiam com armas debaixo do banco e, em meados dos anos 60, minha mãe supostamente confrontou, com uma espingarda, um grupo de adolescentes que pretendiam armar e queimar uma cruz em nosso gramado. Embora eu fosse uma criança bastante alheia, cresci com uma mentalidade de estado de sítio.

E aqui está outra camada: em 1973, quando eu tinha 11 anos, um homem entrou em nossa casa e manteve minha mãe como refém sob a mira de uma arma. Sem imaginar, deixei-o entrar pela porta da frente. Ele a levou para a sala de estar e mandou nós, crianças, para nossos quartos. De alguma forma, minha mãe ligou para um amigo da família, que veio e conseguiu desarmar o homem mostrando um distintivo honorário da polícia. Ninguém ficou ferido e logo o intruso foi parar em Whitfield, uma instituição mental estadual. Uma semana depois, um vizinho me mostrou a casa, me instruiu a trancar todas as janelas e portas e me disse que quando meu pai estivesse fora — o que acontecia com frequência porque ele tinha uma amante — eu era o homem da casa. Havia um total de 23 janelas e portas, e desde então eu as verificava todas as noites. Também comecei a dormir com uma espingarda debaixo da cama. Eu era apenas um menino assustado fingindo ser durão, e até hoje tenho pesadelos frequentes sobre ser atacado, atacar outros ou fugir para salvar minha vida.

Alguns anos mais tarde, meu pai deixou minha mãe, e fui mandado para um internato só para meninos em Nova Jersey. Um dia, depois de um semestre chorando sozinho no meu dormitório, chorando para o meu diretor, chorando quando outros garotos eram maus comigo e fazendo ligações semanais implorando para meu pai voltar com minha mãe, decidi abruptamente que não queria mais chorar. A partir de então, eu não demonstraria nem sentiria tristeza, medo ou mesmo raiva. Qualquer coisa considerada fraqueza eu escondia do mundo — e de mim mesmo.

Perto do fim do meu tratamento ambulatorial, conheci e me apaixonei por Lisa enquanto comíamos morangos silvestres juntos no quintal de um amigo em comum. Eu estava felizmente sóbrio e, depois que nos casamos em 1995, passamos os dez anos seguintes construindo uma vida. Passamos a maior parte do tempo com e para nossos quatro filhos. Em vez de ascender na vida profissional, fizemos caminhadas com eles em colinas locais, promovemos corrida de graveto em riachos e seguramos suas mãos enquanto adormeciam. Lisa conseguiu criar uma carreira jurídica sólida enquanto eu escrevia.

Também deixei lentamente meu velho amigo álcool voltar a fazer parte da minha vida. O trabalho que fiz na reabilitação certamente ajudou a manter meu vício sob controle, mas foi o papel de pai — mais precisamente, não querer ser o tipo de pai que foi o meu — que realmente me manteve na linha. Mesmo assim, eventualmente passei por dias, às vezes semanas, em que voltei a beber.

Embora nossos filhos tenham prosperado durante esse período (todos os pais prejudicam seus filhos, e não tenho ilusões de que não fiz o mesmo), nosso casamento fracassou. Lisa e eu nos separamos em 2004, e nós dois saímos com outras pessoas. Voltamos cerca de um ano depois e trabalhamos duro para nos reconciliar, mas, olhando para trás, nosso casamento nunca mais foi o mesmo. Eu não tinha certeza se deveríamos continuar juntos, mas, não querendo seguir os passos do meu pai, fiquei de boca fechada. Parecia a melhor coisa a fazer pelos nossos filhos.

Em vez de conversar com minha companheira sobre como eu realmente me sentia, continuei bebendo, às vezes misturando com analgésicos vendidos sob prescrição. Por um tempo surpreendentemente longo, a maior parte de uma década, eu “apenas” bebia compulsivamente e não me considerava um alcoólatra. Muito lentamente, porém, minha dependência se tornou habitual. Em 2015, eu bebia meia garrafa de vinho por dia, quatro ou cinco vezes por semana — e ocasionalmente muito mais. Em 2017, enquanto eu trabalhava em um artigo para esta revista — um que envolvia refazer a tentativa de Benedict Arnold de saquear Quebec para o Exército Continental — comecei a tomar doses noturnas de rum com meus companheiros aventureiros (no espírito da pesquisa histórica, eu disse a mim mesmo). Eu também tive um caso com uma amiga, assim como meu pai teve. Lisa e eu superamos isso — sem conversar o suficiente e sem terapia — e eu continuei bebendo. Todos os dias e, eventualmente, durante a pandemia, o dia todo.

Quando Lisa chegou ao estacionamento da trilha para me pegar, eu estava caído contra uma árvore, exausto, mas também animado com novos planos. Agora que eu estava quase desintoxicado, eu disse a ela que iria treinar e atacar a trilha novamente em alguns meses. Eu ficaria sóbrio, melhoraria minha conduta e me vingaria na trilha — tudo de uma só vez. Agora eu estava no tipo de jornada quixotesca que minha mente conseguia compreender. Sempre fui movido por objetivos, e agora não seria diferente. Tudo o que eu precisava fazer era voltar à forma e minha vida seguiria o mesmo caminho.

Comecei a fazer caminhadas cinco ou seis vezes por semana. No começo, comecei com cinco quilos na mochila; depois de cerca de um mês, eu conseguia percorrer a mesma distância em menos tempo, carregando quinze quilos. Sabendo que precisava de mais do que treinamento físico, também procurei um terapeuta. Eu ia mudar tudo. Então, no final de agosto, escorreguei em uma pedra e torci o tornozelo direito. Um médico do pronto-socorro ordenou que eu ficasse em repouso, com o tornozelo elevado e com gelo. Depois de cinco dias, eu ainda estava usando muletas para me locomover, então não conseguiria conquistar o 100-Mile Wilderness tão cedo. Lembro de que, certa tarde, de repente, senti vontade de comer batatas fritas e fui mancando até o mercado local. Sem pensar duas vezes, coloquei duas garrafas de vinho. Seria muito mais fácil ficar parado com um pouco de agitação, disse a mim mesmo.

Continuei bebendo, ainda mais do que antes, e em um dia aleatório de setembro, finalmente disse a Lisa que não estava feliz. Que eu sentia que tínhamos parado de crescer há muito tempo. Nós administrávamos uma boa casa juntos, mas além da administração familiar e das conversas sobre política ou literatura, nós basicamente brigávamos. Dormíamos em camas separadas. Quase não nos beijávamos mais. Eu a amava, mas como uma velha amiga. Eu ainda não tinha dito o que eu realmente queria.

Finalmente, em novembro, disse a Lisa que precisava me mudar. Foram dias difíceis. Tivemos uma briga aos berros depois do jantar, nos abraçamos, brigamos mais um pouco e dissemos coisas das quais ambos nos arrependemos. Por fim, concordamos que eu esperaria até depois do Natal, já que nossos filhos ainda estavam em casa por causa da COVID-19. Quando contamos a eles, suas respostas variaram de “OK, pai, se você acha que é melhor assim” a “Isto significa que vão se divorciar?” Eles não pareceram surpresos.

Mudei-me para um apartamento a cerca de oito quilômetros de casa e comecei a sair com uma mulher chamada Monica. Obviamente era o momento errado para começar algo novo, mas eu gostava demais dela para fingir o contrário. Enquanto isso, meu consumo de bebida piorou. Fiquei freguês dos postos de gasolina locais que vendiam bebidas alcoólicas, revezando minhas compras para evitar que alguém soubesse com que frequência e quanto eu estava consumindo. Muitas vezes eu bebia duas ou três doses pela manhã e depois “caía no sono novamente”. Eu não beberia pelo resto do dia para poder dar o treino de natação na escola no final da tarde. Então eu voltava correndo para meu apartamento e começava de novo.

Os poucos amigos dos quais eu não tinha me afastado completamente ficaram preocupados. Minha resposta foi mentir e me esforçar muito para ser um idiota hipócrita.

“Você não entende”, eu reclamei uma noite para Monica depois de discutirmos sobre bebida. “Sou como um herói trágico saído de Shakespeare. Você tem que cair. Faça a mesma coisa repetidamente e, quando for tarde demais, sacuda a poeira e continue no caminho. Posso parar de beber quando quiser. Eu simplesmente não quero.”

Eu pensava que era tão inteligente — e tão certo.

“Tanto faz, Hodding”, ela disse. “Não há nada de heroico em cair no mesmo buraco repetidamente. É só estúpido.”

Ilustração: Caroline Tomlinson

Uma noite no início de maio de 2021, minha filha Eliza e meu filho, Angus, vieram jantar. Eu estava cambaleando antes deles chegarem e esqueci de preparar o jantar. A única coisa que eu sempre fiz, quase todos os dias da vida deles, foi preparar refeições divertidas e com eles. Comecei a chorar e disse que não estava bem. Assustados e sem saber o que fazer, eles me pediram para voltar para casa naquela noite. Naturalmente que coloquei vodca escondida na minha bolsa e fiquei deitado em um ou outro quarto dos meus filhos pelo dia e meio seguinte, bebendo, até que Lisa entrou furtivamente e disse que eu tinha que voltar para casa ou para o hospital.

Lisa me levou ao hospital. Lembro-me de ameaçar pular do carro em um semáforo no caminho, mas ela me ajudou a chegar lá e, finalmente, em 6 de maio de 2021, comecei o processo de desintoxicação médica, recebendo soro na veia e medicamentos calmantes. Passar pela desintoxicação em um hospital era muito melhor do que fazê-la em um abrigo na AT, mas também era bastante público. De repente, não consegui mais fingir que não tinha um problema.

Depois de cinco dias, voltei para a casa que dividia com Lisa, morando em um antigo galinheiro que transformamos em casa de hóspedes. Tive três recaídas nos seis meses seguintes. Na primeira, eu estava na Carolina do Norte, onde fui visitar meu pai moribundo; apesar de garantir a todos que estava bem, imediatamente mergulhei em seu armário de bebidas. Quando voltei para o Maine depois da visita, meus filhos me encontraram desmaiado no carro, em frente ao apartamento da minha filha Helen em Portland. O segundo retrocesso aconteceu em 15 de setembro, o dia em que Lisa e eu finalizamos nosso divórcio. Fomos juntos até o tribunal e choramos juntos depois de termos que responder à pergunta do juiz: “Você concorda que seu casamento está irreparavelmente comprometido?” Fomos para casa juntos e arrumamos algumas das minhas coisas. Quando me mudei, nove meses antes, deixei quase tudo para trás.

Lisa perguntou várias vezes se eu estava de acordo com o divórcio, e eu lhe assegurei que sim. (Foi ideia minha, pensei, então não tive outra opção a não ser aceitar.) Ela foi para uma reunião de trabalho; eu continuei fazendo as malas. Então dirigi até o mercado mais próximo e comprei uma garrafa de uísque. Eu me odiava por querer me divorciar.

Essa recaída durou cerca de duas semanas — os pesquisadores acreditam que recaídas em rápida sucessão geralmente levam a um consumo ainda maior de álcool, por razões que têm a ver com vias neurais. Essa só acabou quando Monica me convenceu a voltar para o hospital. Fiz o detox mais uma vez. Depois que recebi alta, saí do galinheiro e encontrei um novo lugar para ficar e, me sentindo mais abalado dessa vez, comecei a ir ocasionalmente às reuniões dos Alcoólicos Anônimos.

Minha terceira recaída terminou comigo em uma vala a 15 metros da minha garagem e um policial me mandando sair do carro. Assustado e abalado com a acusação de dirigir embriagado, decidi voltar à reabilitação em uma clínica precária na cidade natal de Helen, Portland. Fiz o check-in em 22 de dezembro de 2021 e me submeti a uma rotina rigorosa. Celulares não eram permitidos. Duas camas de solteiro com estrutura de metal, gaveteiros e uma mesa de cabeceira mobiliavam os quartos espartanos. A sala de exercícios tinha uma única esteira. Nossa única atividade ao ar livre consistia em ficar em uma pequena área cercada para fazer pausas para fumar.

O lugar cumpriu sua função. Me quebrou. Finalmente comecei a ver e entender algumas das minhas feridas da adolescência. Também consegui um patrocinador, algo que jurei nunca fazer. Ao fim dos meus 28 dias, fiquei mais algumas semanas por escolha própria. Alguns estudos dizem que menos de 10% das pessoas que vão para a reabilitação permanecem sóbrias. Por fim, desesperadamente, eu queria isso.

Quando saí, não consegui mais fazer as coisas pela metade. Eu ia às reuniões dos AA diariamente. Me matriculei em um programa de recuperação em casa. Aprendi a reconhecer meus ressentimentos e, ocasionalmente, até mesmo evitar agir por causa deles. E comecei a gostar de meditar — bem, às vezes. Principalmente, aprendi a dizer a verdade: para mim mesmo, para minha família e para qualquer outra pessoa que se importasse em ouvir. Foi surpreendentemente libertador.

E sim, decidi tentar novamente o 100-Mile Wilderness. Treinei por cerca de sete meses e parti em meados de agosto de 2022, com minha mochila leve e meu corpo em forma. O mais importante é que eu estava sóbrio. Lisa, de quem ainda sou próximo, não só me levou até o início da trilha correta como também fez metade da caminhada do primeiro dia comigo. Sempre gostamos da natureza juntos, então pareceu uma despedida adequada. Conversamos sobre coisas que deveríamos ter conversado cinco anos antes.

Na minha segunda tentativa, a trilha ainda me arrasou, mas adorei quase todos os passos. Ela é cheia de raízes para tropeçar, pedras irregulares e tábuas de madeira escorregadias, e eu ganhei o apelido de “Sir Falls-alot” [algo como “O Senhor Cai-cai”] da AT. Eu sofria muito dia após dia. Perto do fim, caí com força suficiente para quebrar duas costelas e torcer um joelho. Conheci pessoas que estavam lá por todos os tipos de motivos — desde uma família de cinco pessoas que adotou o homeschooling e fez a trilha inteira, até idosos comemorando a remissão do câncer, ou jovens de vinte e poucos anos em uma aventura de um mês. Foi perfeito.

Meu momento de revelação chegou no oitavo dia. Às 14h30 daquela tarde, parei em Hurd Brook, o último acampamento na região selvagem. Eu tinha percorrido confortavelmente 13 quilômetros e só teria que  outros quatro na manhã seguinte para terminar minha jornada. Estendi minha rede entre dois cedros imponentes e segui o riacho até Hurd Pond, um lago marrom-tanino represado por árvores caídas espremidas entre enormes pedras. Eu escalei alguns cedros mortos e sentei em uma pedra escaldante ao sol. A água murmurava através de centenas de canais separados até o riacho atrás de mim. O ar estava parado e eu fiquei ali sentado, ouvindo e observando. Lembrei-me de como uma vez fiz beliches interligados com postes de cedro para meus filhos e agora, cercado por cedros, pensei neles. Lágrimas pesadas escorriam pelo meu rosto. Fiquei triste pelo que os fiz passar, mas ao mesmo tempo estava chorando porque sabia que, pela primeira vez, eu estava melhor. Eu continuaria tentando fazer melhor. Por eles. Por mim.

Libélulas voavam baixo sobre a superfície do lago e depois subiam em arco sobre nenúfares espalhados como pistas de pouso. Pelo canto do olho, reconheci outro padrão de voo familiar na costa norte. Um martim-pescador, meu pássaro favorito. Adoro o foco absoluto deles e o desrespeito total aos efeitos da gravidade. Eu não via nenhum há anos, mas reconhecia um em qualquer lugar: o bater forte e rápido das asas; o planeio curto; outro bater brusco; e então o pairar concentrado, pronto para mergulhar. Não sei quanto tempo observei, mas muito depois, quando voltei correndo para o acampamento, percebi que havia caminhado 155,5 quilômetros para chegar a esse momento preciso, a esse estado de graça.

Foi um final adequado para minha caminhada — ou pelo menos para aquela parte dela. Não caí em nenhum buraco o dia todo e, melhor ainda, não achava mais que cair no mesmo buraco repetidamente fosse uma escolha de vida sensata. Embora eu não estivesse de forma alguma curado, finalmente me sentia confortável em minha recuperação. Durante meses e meses depois disso, eu realmente acreditei que estava fora de perigo. Eu me sentia bem zen, mesmo quando todos os meus  e toda a pressão estavam sobre mim. E quando eu não estava me sentindo bem, eu entendia o porquê. Quando meu pai morreu ano passado, eu não bebi.

Mas então, semana após semana, um momento irritante após o outro, minha mente incansável foi me desgastando lentamente. Meu escudo de recuperação começou a parecer muito menos seguro. Percebi que eu era — não, ainda sou — o homem de 61 anos, batalhador diário, digitando isso. E às vezes, por algumas horas, às vezes dia após dia, eu volto a pensar em beber. Eu sigo atuando, na maioria das vezes com Monica, porque ainda tenho esses buracos que precisam ser preenchidos, e quando estou passando por momentos difíceis, quero que ela os preencha. Eu tive acessos de raiva vergonhosos simplesmente porque ela não tinha fotos minhas no celular. Já reclamei de outras pessoas em minhas reuniões de recuperação, comparando-as a religiosos irracionais. Já fantasiei sobre beber tantas vezes no meio de noites sem dormir que às vezes há uma parte de mim que pensa que eu deveria simplesmente mandar ver. Por alguns momentos sombrios, tudo o que quero fazer é beber. Preciso beber. Toda a felicidade que eu sempre quis será minha e eu simplesmente beber.

Mas aí me lembro de momentos nauseantes da minha vida de bebedeira, ou simplesmente me lembro da versão mais horrível de mim. E eu lembro a mim mesmo que sou bom o suficiente. Supero a dor e, de alguma forma, dia após dia, não compro aquela garrafa. Às vezes, corro até a trilha mais próxima. Vou a uma reunião e falo sobre a confusão que está girando na minha cabeça. Vou contar à Monica o que estou pensando e tentar ouvir o máximo que puder. Também há, ainda bem, os dias bons, às vezes uma semana inteira seguida, em que beber é a última coisa que eu faria. Naqueles momentos abençoados, eu simplesmente vivo minha vida no presente, como fiz naquela tarde no lago observando o martim-pescador. Estou feliz. E estou sóbrio. E finalmente estou aqui para todos que amo. 

 

*W. Hodding Carter é editor colaborador da Outside USA e autor de vários livros, incluindo Off the Deep End [Fora do Fundo do Poço] e A Viking Voyage [Viagem Viking]. Esta matéria foi originalmente publicada na edição 183 da Go Outside.