Todos os anos, baleias-jubarte partem da Antártida e viajam pela costa brasileira para se reproduzir e criar seus filhotes. Em uma travessia oceânica de sete dias, de Porto Seguro até Angra dos Reis, nossa repórter viu de perto esses animais e mergulhou no universo da vela e da conservação marinha
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Era perto das sete da manhã quando os gritos animados começaram lá em cima. Abri os olhos ainda deitada na minha cabine e conferi o horário: eu tinha mais algumas horas de sono antes do meu turno de vigia começar. Mas os berros continuaram e não resisti ao entusiasmo da tripulação. Subi as escadas e vi que todos se amontoavam na proa do veleiro, olhando de um lado para o outro, apontando cada hora para uma direção diferente. Um barulho novo surgiu, os gritos cessaram e todos pediram silêncio – e então eu entendi a euforia daquela manhã. Uma baleia-jubarte nadava a dois metros de distância do nosso barco e emitia seu canto. Vi, de pertinho, sua nadadeira dorsal fora d’água enquanto ela percorria a lateral da embarcação. Os segundos prendendo a respiração foram sucedidos por comemorações e abraços da equipe.
Ver baleias não era novidade para ninguém ali. Estávamos velejando há quatro dias e já tínhamos visto pelo menos algumas dezenas desses animais, mas sempre de longe. Ali – em alto-mar próximos à foz do Rio Doce, na altura de Linhares, no Espírito Santo –, porém, a observação atingiu outro patamar e ninguém conteve a emoção. Mais duas jubartes rodearam o veleiro tão de perto que era possível reparar até nas cracas das suas nadadeiras. O protocolo de segurança, que consistia em deixar o motor do barco neutro e não nos aproximar dos animais quando eles eram avistados, foi feito, mas, dessa vez, eles decidiram chegar perto, como quem fica curioso com uma nova companhia.
O ápice do avistamento das jubartes aconteceu no meio da nossa jornada, uma travessia de Porto Seguro (BA) até Angra dos Reis (RJ), que somaria 593,3 milhas náuticas (aproximadamente 1.100 km) navegadas em um veleiro da Brasil Yacht Charter (BYC). O catamarã de 42 pés foi, por uma semana, a casa de uma tripulação de oito pessoas na expedição organizada pelo Nas Marés, uma organização dedicada à conservação do oceano, com base no Rio de Janeiro, junto à BYC.
Seguindo a rota das jubartes, o objetivo da travessia era, além de fazer uma imersão em técnicas de navegação e vela, discutir e colocar em prática temas de conservação e sustentabilidade. Para isso, Juliana Poncioni, velejadora, criadora da Nas Marés e co-capitã da travessia, apresentou o conceito do “Planeta Barco”, o ambiente ideal para aquela tripulação e aquela viagem. A capitã era a experiente Renata Liu, skipper de veleiros privados e uma das fundadoras do ElaVela, que promove cursos e clínicas de vela com vivências a bordo e navegação oceânica para mulheres.
A maior parte da tripulação era familiarizada com o mundo da vela e estava ali para se aperfeiçoar e ganhar mais autonomia em suas próprias aventuras no oceano. Mas eu não. Nunca havia velejado na minha vida e minha ligação com o mar não era das maiores. Quando recebi o convite do Nas Marés para a viagem, no entanto, Juliana, uma carioca bem-humorada, me falou que tudo o que eu precisava para lidar com os contratempos que a travessia poderia – e provavelmente iria – apresentar era de “disposição para aventura”: frente fria, ventos, mar agitado e enjoo. Isso eu tinha. Topei na hora. A não familiaridade com o veleiro me conduziu ao lugar de observadora e, ali, em alto mar, me colocou à disposição para apenas absorver e aprender, de coração aberto.
Antes de zarpar, Juliana me deu uma aula de introdução à vela e à navegação. Fixei alguns termos que ouviria e tarefas que faria nos próximos sete dias enquanto os mais experientes tomariam frente das manobras e manutenções mais exigentes. O grupo também conversou sobre os cuidados necessários para cuidar do “Planeta Barco” e para que nossa viagem fosse mais sustentável. Na hora de fazer as compras para a travessia, por exemplo, já havíamos escolhido produtos com a menor quantidade de embalagens possível, para reduzir a geração de resíduos em alto mar. Também demos preferência para protetor solar e outros cosméticos feitos de materiais que não agridem o oceano. Na reunião antes da saída, também discutimos o cuidado com água potável, combustível (apesar de estarmos em um veleiro, também utilizamos motor para deslocamento em alguns trechos) e alimentos, que precisariam ser cuidadosamente distribuídos ao longo dos próximos sete dias. Com os cuidados com o “Planeta Barco” em dia, partimos.
Elas, a protagonistas
A escolha do trajeto, seguindo a rota das baleias-jubarte, foi também em função dos ideais de conservação e sustentabilidade do Nas Marés. “A gente só cuida do que a gente conhece”, me falou Juliana em uma conversa quando ainda estávamos em terra, em Porto Seguro. Segundo ela, as expedições da sua empresa – que também leva clientes para avistar baleias no Rio de Janeiro e realiza projetos sociais em escolas cariocas – tem o objetivo de aproximar as pessoas do oceano para gerar consciência sobre a sua preservação. Um bom exemplo dessa lógica é o Projeto Tamar, que se popularizou nas quatro últimas décadas no Brasil, despertou o interesse da população sobre a preservação das tartarugas marinhas e, hoje, chega a proteger 30 mil ninhos e dois milhões de filhotes desses animais ao ano.
No caso das jubartes, o Brasil também tem progredido. Depois de 37 anos da proibição da caça a baleias, o avistamento da espécie por aqui só aumenta. Na temporada de 2023, o Viva Instituto Verde Azul, projeto dedicado ao estudo e preservação dos animais marinhos, registrou a passagem de 1.172 jubartes pelo país. As quase quatro décadas de proibição da caça também deram origem a diversas ONGs e projetos de conservação desses cetáceos. O Projeto Baleia Jubarte, por exemplo, surgiu em 1988, justamente com o aumento do interesse em estudar e preservar as baleias que passaram a frequentar o litoral brasileiro após a proibição da caça. O Projeto atua em quatro áreas principais: Pesquisa, Educação Ambiental, Políticas Públicas e Turismo Responsável.
De acordo com a pesquisa “Proteção das Baleias-jubarte: um estudo sobre o status normativo de conservação no Brasil”, publicado em julho deste ano na revista Sociedade Científica, estima-se que as baleias-jubarte brasileiras, atualmente em recuperação após as décadas de caça predatória, tenham uma população próxima de 20.000 animais, em comparação com aproximadamente 1.000 em 1988, quando o Projeto Baleia Jubarte teve início.
Os estudos e observações da espécie por aqui acontecem quando, todos os anos, as baleias-jubarte percorrem cerca de 4 mil km desde as águas geladas da Antártida até as regiões tropicais do Oceano Atlântico, onde encontram o ambiente ideal para se reproduzirem. O motivo de passarem por aqui é crucial para a sobrevivência da espécie: as águas quentes e calmas do litoral brasileiro oferecem as condições perfeitas para o nascimento e a criação dos filhotes, como explica Rafael de Carvalho, coordenador do Maqua, o Laboratório de Mamíferos Aquáticos e Bioindicadores da UERJ. Diferente das águas frias do sul, que podem ainda ter predadores como orcas e tubarões, a costa brasileira serve de refúgio seguro para as jubartes durante a temporada de reprodução, que vai de julho a novembro.
O principal destino da espécie é o Banco de Abrolhos, um arquipélago localizado no sul da Bahia, conhecido pela enorme biodiversidade e águas rasas. Ali, os filhotes nascem e passam seus primeiros meses ao lado das mães. Os recém-nascidos precisam ganhar força e peso para, meses depois, enfrentarem a longa viagem de volta às águas antárticas, onde encontrarão abundância de alimento durante o verão austral.
Mas a rota das jubartes não se restringe ao litoral baiano. Conforme se deslocam, elas podem ser avistadas ao longo de toda a costa brasileira, especialmente no norte do estado do Espírito Santo, além do Rio de Janeiro e São Paulo, afirma Rafael. Em regiões como Arraial do Cabo (RJ) e Ilhabela (SP), grupos de baleias são frequentemente vistos nadando próximos à costa.
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Ao longo da travessia, seguindo o caminho da costa baiana até a carioca, começamos a avistar jubartes no segundo dia, na chegada em Abrolhos, quando assistimos aos saltos desses mamíferos depois que as lindas ilhas apontaram no horizonte pelo amanhecer. Passamos um dia e uma noite no arquipélago e, seguindo viagem, vimos dezenas de baleias até o fim da passagem pela costa do Espírito Santo. Apesar de frequentes, os avistamentos não se tornaram banais em momento algum. Cada salto, cada borrifo, cada canto de uma baleia-jubarte causava êxtase em toda a tripulação. Um entusiasmo que criava, cada vez mais, uma conexão daqueles oito tripulantes com a vida marinha.
Não à toa, o turismo de avistamento de baleias tem crescido não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Segundo Selma Samiko Miyazaki, analista ambiental do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Aquáticos (CMA) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a Comissão Internacional de Baleia (IWC), da qual o Brasil faz parte, reconhece, desde 1975, a importância econômica e educacional da observação de baleias, o que pode representar uma importante ferramenta de conservação para a espécie.
“Promover essa conexão com o ambiente natural das baleias tem a capacidade de gerar emoções e reflexões que podem ir além da sensibilização diante desse animal, como também inspirar novos defensores da vida aquática”, afirma a médica veterinária. Para que isso realmente aconteça e para que todos os envolvidos se beneficiem dessa atividade, no entanto, ela deve ser realizada de forma responsável e cuidadosa, promovendo “perpetuidade, trazendo benefícios econômicos e sociais para as comunidades locais e, principalmente, para as populações de baleias em seus ecossistemas, as quais enfrentam inúmeras pressões causadas direta e indiretamente pelas atividades do homem pelo mundo”, completa Selma.
O paraíso de Abrolhos
A parada no Arquipélago de Abrolhos foi, sem dúvidas, o auge da travessia. Além do óbvio espetáculo natural, um cenário que parece ter saído de um filme, a biodiversidade conservada daquelas ilhas é de emocionar – e alimenta a esperança de que mais regiões brasileiras sejam protegidas da mesma maneira. Abrolhos foi o primeiro Parque Nacional Marinho do Brasil, criado em 1983. Desde então, 87.943 hectares desta Unidade de Conservação (UC) ajudam a proteger a região com a maior biodiversidade marinha do Brasil e do Atlântico Sul, de acordo com o ICMBIO. A região também abriga o maior banco de recifes de corais do Atlântico Sul, além de cinco ilhas vulcânicas – Santa Bárbara, Siriba, Redonda, Sueste e Guarita – que se destacam como pontos de biodiversidade tanto em terra quanto no mar.
Nas décadas que se seguiram à criação do parque, diversas iniciativas de conservação e pesquisa científica foram estabelecidas em Abrolhos. O controle sobre a pesca e o turismo foi intensificado, permitindo que a biodiversidade local florescesse em um ambiente cada vez mais protegido. Hoje, Abrolhos é uma área crucial para a preservação da fauna marinha brasileira e uma das regiões mais estudadas por biólogos marinhos. Quando desembarcamos no arquipélago, somente após autorização do ICMBIO, ouvimos uma palestra obrigatória para todos os visitantes sobre os cuidados a se ter no parque, principalmente no que diz respeito à não perturbação de animais. A atividade turística no arquipélago é limitada, e apenas a Ilha Siriba permite desembarque, onde fizemos uma trilha acompanhados de guarda-parques.
Também visitamos a Ilha de Santa Bárbara, a única que não está sob a gestão do ICMBIO, já que pertence à marinha brasileira. Assistimos ao pôr do sol do farol de Abrolhos e, junto a um mergulho e às dezenas de vezes que apreciamos as baleias nas águas rasas do arquipélago, produzimos algumas das melhores memórias daquela travessia ali naquele paraíso do sul baiano.
Para além das baleias, o oceano
Apesar de imponentes e de terem causado o arrebatamento da tripulação, as jubartes foram apenas parte dos grandes ensinamentos da travessia. “Estar no mar é uma imersão extrema na percepção da nossa falta de controle”, disse a nossa co-capitã e velejadora quando começamos a enfrentar um vento contra no quinto dia de travessia que tornou a navegação desconfortável.
Juliana já havia avisado que, com o balanço do veleiro neste momento, tudo ficaria mais complicado. Dormir nas camas, dentro das cabines lá embaixo, seria inviável; cozinhar exigiria malabarismos e o enjoo e ânsias poderiam vir com tudo, além do frio. Passamos a dormir nos sofás ao lado da cozinha e no chão com nossos sacos de dormir. As refeições se tornaram mais sucintas: almoços que nos primeiros dias foram de risotto à strogonoff, se tornaram lanches no estilo “cada um por si”, feitos com o esforço de se equilibrar sem deixar nada se estatelar no chão.
Fora as tarefas práticas da rotina e da manutenção do veleiro, cada tripulante tinha ainda a missão de lidar com as emoções internas a cada dia de travessia. A ausência de controle também se reflete no que se passa na mente, principalmente em um cenário em que precisamos estar sempre alertas e gera cansaço, com privação de sono. Isso porque nos dividimos em dois grupos para fazer vigias, já que o veleiro nunca pode ficar sem supervisão. Cada grupo tinha quatro horas de sono e, em seguida, quatro horas para cuidar do “Planeta Barco”: checar combustível, água, preparar refeições, cuidar dos resíduos, fazer as manobras e demais técnicas de navegação necessárias de acordo com o vento e as ondas e, durante a noite, vigiar o horizonte para que possíveis obstáculos mar afora, como redes de pesca, pequenos barcos e até baleias, não passem despercebidos. Tudo isso na combinação de sol, frio, vento e mar bravo.
O oceano é essa mistura que pode ser um tanto desagradável mas, com certeza, faz bons marinheiros. O clichê da resiliência se desenrolou incontáveis vezes naquele catamarã: quando a balsa do veleiro estourou e alguns cabos ficaram presos na hélice no segundo dia de travessia e a capitã precisou ficar horas mergulhando para consertar; quando pegamos dias de vento contra e mar ruim e atrasamos a viagem; quando acordei doente; quando a Juliana acordou pra baixo; quando tivemos falha no motor direito e não sabíamos se seria possível seguir viagem.
Os sustos que exigiram essa força, porém, ficaram quase que esquecidos perto dos incríveis momentos de puro entusiasmo presenteados pela travessia e pelo mar. O sono copioso ao acordar às 02h00 para a vigia da madrugada era rapidamente substituído pelo fascínio ao subir para o leme e ver o céu estrelado mais lindo da minha vida. Longe da costa, nenhuma luz artificial ofuscava o brilho das estrelas em alto mar. O show de estrelas cadentes era o cenário das conversas e jogos do grupo, que rapidamente se conectou e passou turnos e mais turnos trocando experiências e falando da vida, espantando o sono até às 06h00, quando o sol nascia – em mais um espetáculo da natureza – e outro grupo chegava para começar tudo de novo.
Também nos alegramos vendo dezenas de golfinhos acompanhando o veleiro, tartarugas marinhas, nasceres e pôres do sol (com menção honrosa ao anoitecer alaranjado nas encostas de Arraial do Cabo) e, principalmente, vendo uns aos outros em cada “bom dia” e “boa noite” das trocas de turnos. O cuidado da tripulação com o bem-estar de todos se instalou naturalmente, pouco a pouco, como a subida da maré. E esse carinho, junto à conexão com o planeta, é sempre o que fica em cada aventura na natureza, seja em terra ou em mar. Com o “Planeta Barco”, o oceano e os colegas tripulantes, ficou também um pedaço de mim, cada vez mais comprometido com a conservação da vida na Terra.
VAI LÁ
Nas Marés
O Nas Marés é um ecossistema dedicado à conservação do oceano que realiza diversas expedições, desde viagens curtas para avistamento de baleias até travessias oceânicas.
www.nasmares.com.br
@nas_mares
Brasil Yacht Charter (BYC)
A BYC tem serviço de charters privativos em veleiros e catamarãs com ou sem tripulação, com opção de passeios e travessias que passam por Abrolhos.
www.byc.com.br
@brasilyachtcharter
ElaVela Navegação Oceânica
O ElaVela promove cursos e clínicas de vela com vivências a bordo e navegação oceânica para mulheres, com as experientes Renata Liu e Chris Amara.
@elavelatravessias
*Matéria originalmente publicada na edição 183 da Go Outside.