Embora o mar não tenha fronteiras, o surf sempre foi um ambiente repleto de barreiras para as mulheres. Por décadas, elas foram boicotadas nas competições de ondas consideradas perigosas como Teahupo’o, no Tahiti, palco que sediou os Jogos Olímpicos de Paris 2024. Apenas em 2022, após 16 anos de exclusão, elas ganharam a oportunidade de retornar aos eventos nesse pico icônico, um avanço significativo que seguiu a equiparação das premiações em dinheiro entre homens e mulheres na elite do surf, estabelecida somente em 2019.
Nesse contexto de resistência e transformação, a medalha de prata conquistada pela surfista de 28 anos, Tatiana Weston-Webb, em Paris é muito mais do que um feito inédito para o surf feminino brasileiro. A gaúcha, que cresceu no Havaí e antes mesmo das Olimpíadas foi a primeira mulher a conseguir uma nota 10 em Teahupo’o, é uma prova de que as mulheres têm capacidade, coragem e habilidade para mandar muito bem nas ondas mais desafiadoras do mundo.
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Nascida em Porto Alegre, Tatiana se mudou ainda bebê para Kauai, a quarta maior ilha do Havaí. Foi ali que, influenciada pelos pais surfistas, mergulhou de cabeça no universo do surf. “Quando peguei minha primeira onda, senti uma conexão imediata, algo que nunca mais quis deixar de lado,” relembra com carinho.
O início de sua trajetória não foi fácil. A ilha onde cresceu apresentava ótimas condições para o surf, mas oferecia pouco em termos de competições. “Foi bem difícil conseguir patrocínio e ter uma base boa. Além disso, não podemos filmar o surf em Kauai, só em O’ahu, uma outra ilha, onde normalmente acontecem todos os eventos esportivos”, explica.
Competindo sob a bandeira do Havaí, a surfista já havia se destacado no cenário mundial. Ela conquistou o título de campeã do WQS (antiga divisão de acesso do Circuito Mundial da WSL) em 2015, o que lhe garantiu uma vaga na elite do surf. Mas quando o surf foi incluído nos Jogos Olímpicos pela primeira vez em Tóquio 2020, Tati, até então havaiana, recebeu o convite do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) para defender a bandeira verde e amarela.
Apesar de não ter avançado nas disputas das oitavas de final, ficou a oportunidade de representar seu país natal, além da chance de consolidar sua identidade. “A decisão foi natural porque eu sou brasileira, meu coração é brasiliero, e escolher representar o nosso país foi uma decisão que mudou minha vida”, revela.
Competir pelo Brasil trouxe uma nova dimensão à sua carreira, e as conquistas no esporte foram só crescendo. Em 2021, Tati alcançou seu melhor desempenho ao se tornar vice-campeã mundial, perdendo o título para a havaiana Carissa Moore. No ano passado, a brasileira também garantiu o título de campeã panamericana em Santiago, no Chile, ao superar a canadense Sanoa Dempfle-Olin na final. Com mais experiência e confiança, a surfista, que havia brilhado meses antes na etapa do mundial em Teahupo’o com uma nota 10 histórica, se preparou intensamente para Paris. Ela sabia que precisava estar em sua melhor forma física e mental para competir no maior evento esportivo do mundo.
O resultado desse esforço foi a medalha de prata em um percurso que passou por grandes desafios junto às adversárias. Após cair para a repescagem na primeira fase, Tati venceu Candelaria Resano, da Guatemala, e ganhou força. Nas oitavas de final, ela enfrentou e venceu a favorita Caitlin Simmers, atual campeã mundial. Nas quartas, superou a espanhola Nadia Erostarbe e, na semifinal, a costarriquenha Brisa Hennessy. Por fim, Tati enfrentou a campeã do mundo de 2023, Caroline Marks, dos Estados Unidos, e acabou ficando com a prata por uma diferença de 0,17 pontos.
A cor da medalha de Tati, entretanto, brilha com um significado especial, que vai além da vitória pessoal. Simboliza a maior conquista para o surf feminino brasileiro e pode ser o impulso que a categoria precisava para ganhar ainda mais fôlego. O Brasil já se estabeleceu como uma potência global no masculino, com Italo Ferreira conquistando medalha de ouro em Tóquio e uma série de títulos mundiais: três de Gabriel Medina, dois de Filipe Toledo, um de Italo e um de Adriano de Souza.
No Circuito Mundial de Surf de 2024, que se encerrou em setembro, Tatiana Weston-Webb também fez bonito ao terminar a temporada como a terceira melhor surfista do mundo. Ela garantiu uma vaga no WSL Finals, evento que reúne apenas os cinco melhores do ranking de cada gênero para decidir o título mundial em um único dia. No evento decisivo, realizado em Lower Trestles, na Califórnia, Tati chegou como a quinta colocada e teve um desempenho notável ao superar a australiana Molly Picklum e, em seguida, a costarriquenha Brisa Hennessy. Na semifinal, entretanto, ela foi derrotada nos minutos finais por sua algoz olímpica Caroline Marks.
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A histórica conquista nos Jogos Olímpicos de Paris somada à excelente performance da surfista gaúcha no mundial convoca o Brasil a olhar com atenção para o surf feminino, reconhecendo o seu verdadeiro valor e potência. “Com mais investimentos em infraestrutura, patrocínios e oportunidades para as meninas desde cedo, o esporte vai continuar evoluindo no nosso país”, opina Tati. “Estamos quebrando barreiras e mostrando que o nível técnico das mulheres é altíssimo”.
Essa jornada, marcada por esforço, resiliência e uma paixão inabalável, levou Tatiana Weston-Webb a um patamar tão alto que pode acender os faróis do surf feminino por aqui. “Eu desejo que mais mulheres alcancem esse lugar e que nosso espaço no esporte cresça cada vez mais. Que elas sigam perseguindo seus sonhos, porque com bastante trabalho e dedicação tudo é possível. Mas acima de tudo, que elas sempre se divirtam surfando”, completa.
O futuro vem aí e a medalha de Tati será sempre louvada como um marco na história do esporte brasileiro. A torcida é para que suas conquistas inspirem uma onda de oportunidades e abra portas para futuras gerações de campeãs.
*Trecho da reportagem “A Receita de um campeão”, publicada na edição 183 da Go Outside.