Em Hveragerdi, na Islândia, não há cemitérios, porque há tanta energia hidrotérmica no solo que os corpos seriam cozidos. Eles também cultivam muitos tomates cereja aqui, em estufas aquecidas geotermicamente, reluzindo um brilho âmbar quente que avistamos nas encostas em nossa primeira cavalgada nas manhãs frias e escuras de janeiro. Os islandeses têm muito orgulho de seus produtos de estufa, cultivados neste vale, que fica uma hora a sudoeste de Reykjavík e recebe significativamente (e relativamente) mais sol. A alface e o tomate ganham rótulos especiais nos cardápios e nos supermercados com a bandeira da Islândia e são, de fato, deliciosos.
Nesta manhã recebemos alertas de vendaval pelo terceiro dia consecutivo: vento constante de 70 quilômetros por hora, com rajadas de 96 quilômetros por hora. (Na Islândia, eles medem o vento em metros por segundo. Os números convertidos: 20,1 com rajadas de 26,8, não soam tão mal.) Os cavalos ficam imóveis a noite toda apesar deste vento e suportam o granizo, neve e chuva que vêm do mar em ondas atmosféricas. Mas agora estão aqui, abaixo de nós, nos dando tudo de si, sua força, sua coragem, sua lealdade – e nós abaixando a cabeça contra o vento e o granizo, cavalgando por caminhos congelados em direção à montanha.
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Os cavalos usam ferraduras de metal com tachas, para evitar que escorreguem no gelo. Parece mágica que eles não escorreguem, tropecem ou caiam quebrando a nós e a eles mesmos, especialmente considerando quantos de nós caíram para trás no gelo do estacionamento só tentando caminhar da casa de hóspedes até o celeiro. Anna, nossa guia alemã, alta, forte e linda com suas botas e macacão masculino, seu cabelo loiro grosso preso em um nó no topo da cabeça, é a amazona que todas queríamos ser. Ela nos reúne, diz que sim, que apesar do vendaval e da previsão de piora (80 km/h, com rajadas de 120), precisamos selar os cavalos e nos preparar para partir.
As outras nove mulheres que se inscreveram para esta semana são alemãs; seis alunas de vinte e poucos anos de adestramento competitivo, uma policial de Berlim que está perto de 40 anos e duas velhas amigas que podem estar se aproximando da minha idade (61) e que cavalgam juntas em um país diferente todos os anos. Sem demora, nem mesmo contato visual, pegamos nossas selas, cabeçadas, limpadores de casco e raspadeiras e partimos para procurar nossos cavalos no escuro.
Hoje vou montar a Salka, égua que já foi campeã de equitação com cinco andaduras no picadeiro fechado. Ela é mandona e corajosa, o cavalo mais feroz e afinado que já tive o prazer de montar. Estou na escola e ela é a professora, o que me convém perfeitamente. Minhas funções são manter meu assento calmo e silencioso, minhas mãos um pouco mais altas do que estou acostumada, e pedir novamente com minhas pernas o tölt, marcha lateral de quatro batidas, pela qual os islandeses são famosos. Quando percebo que seu andar está ficando um pouco mais veloz, tenho que fazer uma série de meias paradas rápidas (nenhuma longa o suficiente para começar uma briga, que ela vai vencer) toda vez que ela ameaça escapar.
Depois de uma hora de cavalgada, estou coberta de um gelo tão espesso que, quando dobro os braços, ouço as mangas estalando. Meu capacete está completamente incrustado de gelo e pesa um quilo a mais. Tenho que apertar meus olhos quase fechando, porque não suporto as agulhas de granizo que continuam chegando. Se fosse para ser um dia de sol, ele estaria nascendo agora.
Não importa o tempo, Salka não perde o passo, galoparia para sempre se eu deixasse. A certa altura, em uma reta de cascalho misturado com gelo, Anna grita por cima do ombro: “Hora da velocidade!” Quando os cavalos à minha frente começam a galopar, eu não podia fazer nada além de fechar os olhos, pressionar com as pernas e confiar nas ferraduras cravejadas e no coração verdadeiro de Salka. Depois da cavalgada, Anna nos olha, diz que gosta da maneira como consigo acalmar Salka depois de uma longa corrida, e a temperatura externa torna-se irrelevante porque todo o meu corpo se aquece eletricamente pelo orgulho.
Vim para a Islândia porque há dois anos eu estava tão doente com a COVID longa que não conseguia sair para caminhar, ler um livro ou ficar acordada até a hora de preparar um jantar decente. Minha acupunturista me disse que nunca havia sentido sinais renais tão fracos em uma pessoa que não estivesse no hospital, à beira da morte.
Ela me mandou voltar para casa e buscar uma razão para viver, e eu escolhi cavalos islandeses. Fiz minha inscrição para uma viagem de sete dias pelas terras altas da Islândia até um lugar chamado Landmannalaugar, e marquei a data exatamente dali a um ano, imaginando que até lá eu estaria quase recuperada ou morta. Esta viagem atual para a Islândia é a terceira da minha lista de razões para viver, e o que eu quero, mais do que tudo na minha vida, é ser forte o suficiente e sensível o suficiente para montar bem esses cavalos.
Minha acupunturista me disse que ela nunca havia sentido sinais renais tão fracos em uma pessoa que não estivesse no hospital, à beira da morte. Ela me mandou voltar para casa e buscar uma razão para viver, e eu escolhi cavalos islandeses.
Os vikings introduziram esses animais compactos e atarracados na Islândia no século X, e os islandeses têm protegido a integridade e a saúde deles desde então. No ano de 982, o antigo parlamento Althing aprovou leis – ainda em vigor – impedindo a importação de qualquer outro cavalo para a Islândia, tão determinados estavam a não diluir as qualidades da raça que amavam. Para mitigar a transmissão de doenças, nenhuma sela ou cabresto usados, nem luvas sujas ou botas de montaria podem entrar no país, e se um cavalo da Islândia for para a Europa para competir, como muitos fazem todos os anos, não pode voltar para casa.
Além de performar em duas andaduras adicionais, o tölt (marcha lateral de quatro batidas, com aceleração explosiva e velocidade) e o flying pace (uma marcha alongada do tölt), ambas bastante suaves, essa raça islandesa é mais confortável que o cavalo usual em todas as outras andaduras por ser curto de lombo e por sua tendência a se manter compacto, movendo-se de cabeça erguida com sua peculiar firme aderência ao solo. Eles vivem livres por alguns períodos no ano, em manadas de até várias centenas. São cavalos que não tiveram a natureza selvagem arrancada deles. Os islandeses aprenderam a trabalhar em conjunto com esses dons naturais e, por mil anos, selecionaram os cavalos intratáveis e perigosos das manadas, o que tornou a raça ainda mais amigável, cooperativa e objetiva.
Muitos celeiros na Islândia levam os visitantes para galopes pelo campo no verão, mas o inverno é feito para treinar, para aprimorar tanto o cavalo quanto o cavaleiro, então vim para uma semana de aulas em ambientes fechados, seguida por esta semana de cavalgada com o clima que a natureza oferecer.
Dez dias atrás, quando cheguei ao celeiro da aula, a primeira coisa que uma égua chamada Elding fez foi me dar um coice, um golpe rápido na minha coxa logo acima do joelho, que deixou uma réplica perfeita de sua ferradura cravejada na minha carne. Na hora do impacto pensei que poderia ter fraturado o fêmur.
Tropecei para trás até cair sentada em um banco perto da porta do quarto de sela, sem pensar no fato de que era o mesmo fêmur que meu pai irritado quebrou quando eu tinha quatro anos, me jogando do outro lado da sala em uma peça de mobília. Quanta força deve ser necessária para quebrar um fêmur de quatro anos? Quanto para quebrar o de uma mulher que chegou aos 61 anos? Levantei-me e afastei-me como um rebatedor atingido por um arremesso, sabendo que a próxima coisa que eu tinha que fazer era pedir a Elding para levantar as quatro patas para que eu pudesse limpar seus cascos.
Elding e eu passamos uma semana confiando, andando e cedendo. Estávamos em dupla, porque ela precisava ser trabalhada e eu precisava ainda mais. Considerei um progresso quando, na terceira manhã, ela não ficou ativamente descontente em me ver. Melhorei meus comandos de tölt e trote, e na execução das curvas, principalmente à esquerda.
Muitos dos meus amigos em casa dizem: “Sou do Team Gelding”, o que significa que eles preferem a boa natureza mais confiável de um potro que foi castrado (gelded) em tenra idade e criado para ser um cavalo de lazer, em comparação com uma égua que passou pela vida com todos os seus hormônios e seus humores intactos. Eu nunca disse: “Estou no Team Gelding”, porque não sou o tipo de pessoa que escolhe algum time. Aos 22 anos ganhei uma insubordinada égua Morgan chamada Savannah que, se eu não fosse jovem e sortuda, poderia ter me matado nas vezes em que ela me arremessou na madeira de um obstáculo de salto ou um cerca de arame farpado. Desde então, montei e cuidei apenas de cavalos castrados.
Não posso pedir a uma égua como Salka que me ame ou mesmo que confie em mim, não completamente. Quero que ela confie em mim apenas o suficiente para que possamos ir rápido juntas, mas nunca tanto que seu espírito destemido seja fiel a qualquer coisa, exceto a si mesma
Na Islândia, recebi égua após égua e aprendi várias coisas. Por exemplo, quando duas éguas fortes e líderes de tropa estão prontas para seguir adiante, as duas se provocam e se estimulam até que a tropa toda esteja em velocidade formando o movimento da manada. Além disso, enquanto os castrados exibem sua natureza às vezes hesitante, ficando assustados com um cisne saindo do rio ou um saco plástico que voou em um vendaval e se prendeu inusitadamente a uma cerca, sempre há uma égua, em algum lugar na manada, revirando os olhos.
A maior revelação do meu tempo aqui, talvez, é que enquanto os castrados querem principalmente agradar, as éguas querem educar. E eu vim para a Islândia, cheguei aos meus sessenta anos, pronta, mais do que tudo, para ser educada. Estou começando a suspeitar que, além de cavalos, as éguas islandesas são bruxas – o melhor e mais intrépido tipo de bruxa – e se eu aprender a montá-las nesse espaço entre o apoio e a rendição, elas podem me prender, podem me deixar tocar a essência selvagem que ainda vive no centro da existência, ou se não tocá-la, ficar próxima o suficiente dela, para senti-la trabalhar em mim, para me lembrar o que já fomos e ainda talvez sejamos.
Em casa, no Colorado, tenho um cavalo castrado de 20 anos que me ama, que descansa seu cabeção no meu ombro, que me deixa percorrer o pasto montando à pelo, que relincha um bom-dia pelas manhãs de neve quando levo cenouras e maçãs para ele. Com as éguas não é assim. Não posso pedir a uma égua como Salka que me ame ou mesmo que confie em mim, não completamente, porque para confiar completamente em mim ela teria que abrir mão de algo que não pode se dar ao luxo de perder. Eu quero que ela confie em mim apenas o suficiente para que possamos ir rápido juntas, mas nunca tanto que seu espírito destemido seja fiel a qualquer coisa, exceto a si mesma.
É a última cavalgada no último dia das minhas duas semanas na Islândia e, pela primeira vez, o céu não está lançando neve ou granizo. O sol até apareceu, baixo no céu do sul sobre o Atlântico, atravessando a camada marinha, iluminando os campos ainda congelados.
Anna está na frente, como sempre, em um daqueles castrados que agradam as pessoas. Ela se vira e diz: “É o último dia. Desta vez o tempo está cooperando, então temos uma oportunidade de velocidade!” Na segunda posição está Gàra, outra poderosa égua montada pela policial de Berlim. Salka e eu cavalgamos ao lado delas desde que saímos do celeiro.
Logo atrás de nós estão as seis rainhas alemãs de adestramento, todas com assentos melhores do que o da policial ou do que o meu, mas que não poderão montar Salka hoje, ou até mesmo Gàra, porque adestramento significa ter controle, e montar essas éguas significa colaboração. Acabamos de entrar em uma longa reta de cascalho, congelada, mas não exatamente sólida, um dos melhores pisos que vimos durante esta semana dos piores pisos que já experimentei na minha vida.
“Não sei qual é a velocidade máxima deste cara,” diz Anna, indicando o cavalo que ela está montando. “Talvez você tenha que dar a volta.” A policial e eu trocamos um rápido olhar: a primeira regra de todo celeiro na Islândia é que, em hipótese alguma, você deve passar o guia. Partimos em um cânter (galope reunido), que depois de apenas dois galões se transforma em galope. Gàra começa a rodear o cavalo de Anna e Salka começa a fazer o mesmo com Gàra. Gàra começa a desafiar o cavalo de Anna e Salka começa a desafiar Gàra.
Anna se vira na sela, os olhos brilhando. “Deixe-a ir,” diz, para mim ou ambas, mas não importa porque as éguas a ouviram. Gàra dispara à frente com tanto entusiasmo que pega a policial de surpresa. Ela aperta ligeiramente as rédeas e vejo Gàra olhar para trás. Sério, humana? Mas Gàra cede e reduz ligeiramente a marcha. É quando Salka vê a brecha e a pega. Será que considero apertar as rédeas um pouquinho? Rejeito a ideia imediatamente, se é que considerei. De repente, não há nada além de duas orelhas e um topete entre mim e todo o céu da Islândia.
Galopei rapidamente muitas vezes na minha vida. A cavalo, em esquis, descendo rios de águas bravas, em trenós de madeira puxados por uma equipe de cães felizes. É possível que eu tenha andado tão rápido em algum veículo sem motor quanto naquele dia em Salka. Mas não com 61 anos de idade. Não depois de mais de um ano de exaustão que destruiu minha identidade, não em algum tipo de comunhão imperfeita com uma bruxa muito boa da variedade equina.
Nós voamos. Perco a noção do chão – aquela superfície gelada com a qual passei a semana inteira me preocupando de repente parece que não está mais abaixo de nós. Se houvesse palavras para isso, aqui é onde eu lançaria algumas na página: comunhão, êxtase, ausência de peso, alegria. Mas um dos objetivos definidores da minha vida de escritora tem sido buscar momentos tão enlevados que a linguagem não é capaz de alcançar. Aqui estou eu de novo, contra todas as probabilidades. Aqui estamos, juntas. Eu e Salka, dois seres tornam-se um, subindo. Em dois quilômetros haverá uma curva fechada à direita e terei que desacelerar Salka antes dela. Em dois galopes, ou dois anos, ou vinte, morrerei, como todos nós um dia. Mas não agora. Neste momento, entramos temporariamente no céu, todos os azuis, prateados e dourados dele. Lá está o sol sobre o Atlântico Norte, ardente, cintilante. Nos desafiando para ver a que distância conseguimos chegar.
*Pam Houston mora no Colorado perto da cabeceira do Rio Grande e é autora de vários livros, incluindo Deep Creek: Finding Hope in the High Country.