As Cholitas escaladoras, mulheres indígenas aymaras bolivianas, se preparam para o grande desafio de suas vidas: escalar o Everest, a maior montanha do mundo.
A história do grupo foi contada em 2018 no documentário “Cholitas”, de Pablo Iraburu e Jaime Murciego, que ganhou diversos prêmios em festivais internacionais ao retratar uma expedição do grupo ao Aconcágua, a maior montanha da América do Sul.
Agora, lideradas por Cecilia Llusco, as escaladoras bolivianas querem escrever um novo e importante capítulo nesta trajetória inspiradora.
Recentemente, as irmãs Llusco conversaram com a repórter Cristina Correa Siade, do site Ladera Sur, sobre o sonho de chegar ao topo do Everest.
É o último dia do setembro mais quente que La Paz já experimentou, o relógio marca meia-noite. Turistas e guias ajustam os últimos detalhes para subir por uma trilha marcada que atravessa o grande glaciar durante a noite. À frente está Cecilia Llusco, com sua saia colorida sobre as calças técnicas e crampons.
Em vez de uma mochila, ela carrega a tradicional bolsa, o que não atrapalha seu passo e o carinho com que encoraja Juliana, a carioca que ela guia até o cume do Huayna Potosí, a 6.088 metros acima do nível do mar, a montanha mais visitada da capital boliviana. Por volta das 6 horas da manhã, alcançamos o cume e tiramos fotos para comemorar. Na descida, Ju pede a Cecilia que pose para as fotos: “Você é um filme!”, diz com seu sotaque brasileiro.
Sim, a vida de Cecilia é um filme, e uma parte dela pode ser vista no documentário “Cholitas”, de Pablo Iraburu e Jaime Murciego. Lá também aparece Lidia (50), a mais velha do grupo de escaladoras aymara que partiu com a ideia de levá-las ao cume do Aconcágua, de 6.962 metros.
E agora esse filme terá um novo capítulo que as levará a tentar o cume mais cobiçado do mundo, graças à gestão de Senobia, a mais jovem das irmãs Llusco.
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Cecilia Llusco: não tenho medo
Cecilia nasceu em Chucura, uma localidade próxima a Illampu na região de La Paz. “Meu pai foi um dos primeiros guias de trekking, através dele conheci esse trabalho. Quando eu tinha 6 anos, viemos morar em El Alto. Aos 8 anos, fui pela primeira vez ao acampamento base do Huayna Potosí e não queria mais voltar para a cidade. Meu pai me dizia ‘você é muito jovem e não tem equipamento, mas um dia realizará seu sonho’. Aos 14 anos, comecei a ir ao acampamento alto como carregadora. Foi lá na montanha que conheci meu marido, Eloy. Ele me propôs ser cozinheira de alta montanha. Foi lá que conheci outras cholitas que subiam como carregadoras e cozinheiras, e nos perguntamos ‘por que não podemos chegar ao topo?’.”
Em 17 de dezembro de 2015, junto com outras dez mulheres aymara, Cecilia alcançou pela primeira vez o cume do Huayna Potosí, a montanha que ela admirava quando criança. “Naquele momento, dissemos: ‘não vamos ficar aqui, vamos continuar escalando montanhas’, porque adoramos estar tão alto que quase podemos tocar o céu e nos sentirmos livres. É como voar entre as nuvens. Então, nos propusemos a fazer outros picos de seis mil metros na Bolívia.”
Elas subiram o Acotango (6.052 metros), Illimani (6.438 metros), Parinacota (6.380 metros), Pomerape (6.282 metros) e Sajama (6.542 metros). Esses primeiros cumes foram autofinanciados, então algumas das cholitas às vezes não podiam participar das expedições. Elas se organizaram e registraram o nome “cholitas escaladoras”. Atualmente, são 14 mulheres fazendo parte desse grupo. No entanto, também surgiram outros dois grupos de cholitas escaladoras que nasceram do original, incluindo o de Elena Quispe, que visitou o Chile em outubro.
Em 2018, surgiu o projeto de escalar a montanha mais alta da América e, com isso, o documentário que as filmou no Aconcágua. “Viajei muito graças ao filme. Também comecei a guiar. Nunca pensei que daria entrevistas, só pensava que queria subir as montanhas”, confessa essa corajosa cholita que até subiu até os 5.500 metros no Illimani quando estava grávida de 8 meses. Não é de surpreender que seus dois filhos (18 e 20 anos) também sejam alpinistas e um deles leve também com orgulho sua saia até a montanha.
“Nosso maior sonho é ir ao Nepal, temos esse projeto para 2024. Iremos à montanha mais alta do mundo para levar nossa cultura e nossas saias coloridas. Sinto orgulho de não perder a cultura da saia, aymara, indígena, das minhas raízes. Nunca vou perdê-la, não vou tirá-la. Quando plantávamos batatas, eu a subia, e faço o mesmo quando tenho que escalar no gelo. Claro, já usei crampons em muitas saias”, diz com um riso contagioso.
Doña Lidia: a pioneira
Foi Lidia Huayllas quem teve a ideia de desafiar suas companheiras em dezembro de 2015: “Podemos escalar, vamos ver como é o cume”, instigou com a autoridade que seus cinquenta anos lhe davam, “no começo as companheiras não acreditavam. Quatro de nós começamos e, quando as outras viram que subimos, se juntaram. Para o Acotango, éramos 16.”
Assim, com suas longas tranças e sua saia de cholita paceña, ela fez história: “Vamos subir de saia!, assim como estamos. E até coloquei o nome, ‘vamos ser as cholitas escaladoras’, disse. Foi muito emocionante e por isso nos tornamos conhecidas com nossa cultura, não perdemos essa identidade.” Naquele momento inicial, antes do primeiro cume, Doña Lidia, como as outras escaladoras a chamam, sabia o quão importante era levar com orgulho sua vestimenta indígena até o topo.
A saia é o maior símbolo do mestiçamento nas culturas andinas bolivianas, segundo o antropólogo Freddy Maidana. O traje, que tem uma versão diferente em cada região, foi adotado pelas mulheres indígenas durante a colonização, quando foram forçadas a abandonar seus trajes originais em troca de saias com anáguas e botas com salto. Esse traje foi adaptado pelas indígenas e se tornou ao longo dos anos um símbolo identitário, que teve um ressurgimento na primeira década do novo milênio, em parte devido à chegada de Evo Morales ao poder em 2006, que nomeou três ministras com saia em seu gabinete, juntamente com a promulgação, em 2010, da lei contra o racismo e qualquer forma de discriminação. “Agora a saia está na moda, até as mulheres ‘de vestido’ querem usá-la”, disse Zenobia Huiza (44), proprietária da loja de saias em La Ramada, em um artigo publicado no El País, com o título “A revolução das cholas” (2015), que afirmava que o traje tradicional das indígenas bolivianas passou de representar um estigma para ser um traço de reivindicação étnica.
“Na Bolívia, a saia está mais em uso do que o vestido. Uma cholita está bem vestida, usa suas joias, um chapéu, uma boa postura, sua manta. A cholita paceña custa muito dinheiro, e não podemos esquecer que ela representa sua herança Aymara”, comenta Lidia, que chega a essa conversa depois de terminar suas aulas para aprender a escrever em sua língua materna, porque “todos nos ensinaram a falar, mas não a escrever, e precisamos disso”. Não é de surpreender que existam passarelas para essa moda e que ela tenha sido incluída na semana de moda de Nova York em 2016. Além disso, a premiada pesquisa “Chola paceña: ícone da moda”, de Valeria Salinas, comprova que desde o início do século XXI em La Paz há uma crescente indústria da moda cholita. A isso se somam grupos de cholitas lutadoras e skatistas que até têm seu próprio documentário no Youtube.
Se você cruzar com Lidia na rua com seu chapéu de meia aba, é difícil imaginá-la como uma atleta de alta montanha; no entanto, quando ela coloca os crampons e o piolet, é capaz de subir qualquer montanha que se proponha. “As cholitas têm uma condição especial, estamos preparadas, aclimatadas. Vivemos a 4200 metros, nossos pulmões estão desenvolvidos”, acredita esta alpinista nascida e criada em El Alto, que completou 58 anos e lembra com nostalgia de sua primeira escalada: “subi com botas velhas, crampons desgastados e amarrados com arame, não tínhamos jaquetas técnicas. Foi uma verdadeira aventura.”
Depois do filme e do reconhecimento que tiveram após sua estreia, Lidia tornou-se subprefeita de El Alto e sente que sua maior conquista é deixar um legado para as novas gerações, para que mais mulheres com saia se aventurem no montanhismo. “Digo a todas as mulheres que sempre há machismo, mas gostaria de dizer a todas as mulheres que precisamos realizar nossos sonhos. Já demos o passo e vamos provar que as mulheres podem alcançar os cumes que nos propomos. Agora meu sonho é ir ao Everest com minhas companheiras”, conta.
Senobia Llusco: Para nós, a montanha é uma pessoa
Senobia Llusco seguiu os passos de sua irmã, primeiro sendo carregadora e aos 16 anos já era cozinheira de alta montanha. “Carregávamos cerca de 25 quilos por viagem. Uma vez cheguei a carregar mais de 50 quilos até o acampamento alto de Huayna Potosí, a 5.200 metros. Nos pagavam um boliviano por quilo, naquele dia fizemos o percurso três vezes e ficamos felizes, mas isso não era sempre”, relata sobre os tempos em que ansiava por subir ao cume de um Huayna que exibia um manto de neve até o acampamento base e até permitia esquiar. “É triste quando você viu como era antes. Quando eu era pequena, o glaciar chegava até o acampamento base, agora a neve está acabando, o que é muito triste para nós”, comenta.
Em 2017, Senobia viajou com sua irmã para Ausangate, onde trabalharam com a National Geographic na instalação de uma estação meteorológica. Antes de subir ao Nevado de 6.384 metros, fizeram o ritual para pedir permissão ao achachila, a divindade aymara que vive nas montanhas. Ela colocou folhas de coca e uma garrafinha de álcool em um pequeno altar, enquanto queimava pau-santo e recitava uma oração aymara. “A montanha é como uma pessoa para nós. Sempre fomos agradecidas aos achachiles. Levamos sua coca, álcool, para que não haja incidentes nem cansaço”, diz a mais jovem das irmãs Llusco, sobre a veneração de seu povo a essas divindades.
Graças a um dos cientistas responsáveis pela expedição ao Ausangate, elas agora estão buscando financiamento para chegar ao cume do Everest. “Já tivemos uma primeira reunião e temos a ideia de convidar também mulheres do Tibet. Agora estamos na fase de encontrar o financiamento para consolidar isso e fazer um filme. Inicialmente, planejávamos fazer isso em 2023, mas por questões financeiras, agora estamos planejando para 2024”, explica.
Para Senobia, alcançar o Everest representa a coroação da jornada que as cholitas escaladoras iniciaram há oito anos. No entanto, a sensação de liberdade ao chegar ao cume muitas vezes é ofuscada pela falta de apoio e discriminação que enfrentaram de seus colegas guias. “Não permitimos ser humilhadas. Às vezes nos perguntam por que queremos competir com os homens e pensam que não deveríamos subir, que as mulheres devem ficar na cozinha. Diziam: ‘Por que essas sujas vieram do campo?’ Há tanto egoísmo na Bolívia…”, diz ela.
“Queremos ser conhecidas, reconhecidas também, queremos mostrar que as mulheres aymaras são fortes. Por isso, vamos à montanha mais alta do mundo”, declara a irmã mais nova das Llusco, pois sabe que está representando a cultura aymara em seu esforço para levar as polleras ao Himalaia. Por isso, não desistirá até conseguir. “Muitas das primeiras cholitas desanimaram porque os custos são altos. Muitas vezes conseguimos equipamento com nossos maridos guias ou com estrangeiros que nos doam, mas não é fácil conseguir apoio”, confessa essa alpinista de 32 anos e assegura que sua paixão por escalar superará todos esses obstáculos: “quando vou à montanha, todos os problemas são esquecidos, flutuo sobre um céu maravilhoso e me sinto aliviada. Nunca vou desistir”, conclui.
Veja abaixo o trailer de “Cholitas”, de 2020.