Refazendo a Longa Marcha

ARQUIVOS GO OUTSIDE
(Reportagem publicada na revista de agosto de 2010)

Refazendo o épico de Mao Zedong, a Longa Marcha de 1934, pelas imensas montanhas nevadas da China, DEAN KING adquire um novo respeito por aqueles poucos sobreviventes – e descobre uma área selvagem e rústica, pronta para as aventuras modernas

Fotos Philipp Engelhorn


PASSATEMPO: Ed Jocelyn, Yang Xiao e Lawrence
Gray esperando um temporal passar no vale Baozuo

RECEBEMOS MENSAGENS TRUNCADAS ANTES DE partir para a Sichuan Dagu Glacier Park, uma recém-estabelecida reserva na província de Sichuan, nas Grandes Montanhas Nevadas. Com aproximadamente o dobro do tamanho do Estado de São Paulo, o quinto maior distrito administrativo da China tem mais de 400 mil quilômetros quadrados e 87 milhões de pessoas (quase a metade da população do Brasil). Sua fronteira ocidental fica à beira do Platô Tibetano, de onde nascem as montanhas do Himalaia, centenas de quilômetros a oeste. Com uma elevação média de 4.500 metros, as Nevadas continuam totalmente selvagens. Nos disseram que bandidos, cachorros loucos e lobos vagam pelo lugar.

Para complicar ainda mais as coisas, o parque fica no Condado de Heishui, um dos mais duramente atingidos pelo terremoto de Wenchuan em 12 de maio de 2008. Heishui, habitado principalmente por povos tibetanos e ainda muito influenciado pelos monastérios dos lamas, havia ficado oficialmente fechado para estrangeiros até 2004. O terremoto fechou temporariamente suas fronteiras mais uma vez e ninguém sabia o estado das estradas e das trilhas.

Para nossa sorte, nosso guia de Beijing, o expatriado anglo-australiano Ed Jocelyn, 41 anos, e seu sócio chinês Yang Xiao, também 41, que escreve para a Outside chinesa, haviam recentemente aberto a Red Rock Trek and Expedition Company para aventuras na China ocidental. Ed, cujas botas têm mais quilometragem chinesa do que Marco Polo e que invadiu a região em 2003, estava otimista com relação ao que nos esperava. Ele apontava para cima, onde, nos assegurava, gatinhas tibetanas dançavam pelos pastos cuidando dos seus rebanhos de iaques, refrescadas pelas três geleiras de dez mil anos de Dagu. Era começo de julho, começo da temporada de chuvas, e na vila de Xia Dagu, a 2.700 metros, as nuvens se penduravam nos pinheiros como erva daninha. Do lado de fora da casa de pedra rachada pelo terremoto onde havíamos passado a noite, Womudo, um tibetano corcunda e cego, nos fez mais um alerta: “Os corpos dos andarilhos da Longa Marcha encontrados em Dagushan foram destroçados por ursos”, disse. Foi isso que mais atiçou meu interesse.


CENÁRIO: O cavaleiro Jiu Jiu e seus parceiros

Eu havia organizado a expedição para essa região remota para esclarecer alguns dos mistérios ao redor da caminhada épica que trouxe Mao Zedong ao poder no Partido Comunista em 1934/35, e que mais tarde se tornou o mito conhecido como a Longa Marcha. Sitiados pelas forças nacionalistas de Chiang Kaishek, apoiadas pelo ocidente, em seu refúgio na província de Jiangxi, no sudeste da China, o inferior Primeiro Exército Vermelho de Mao – em desvantagem com seus 86 mil homens e 30 mulheres – havia dado meia volta e simplesmente desaparecido numa noite de outubro de 1934. O plano deles era reagrupar-se com outras forças comunistas (mais precisamente o segundo e sexto grupos do exército) a 800 quilômetros dali, em Hunan.

Mas os nacionalistas e comandantes militares aliados resistiram bravamente e evitaram que isso acontecesse. Então o Primeiro Exército marchou, lutou e sofreu durante um ano ininterrupto, em uma das mais lentas e brutais marchas militares da história.
Nove meses e surpreendentes 4.800 quilômetros depois de partir, menos de 20 mil arrasados soldados do Primeiro Exército – o resto havia sido perdido para projéteis, bombas, fome e frio – chegaram, se arrastando, às Grandes Montanhas Nevadas.


LEGAL: Penteado das locais de Dagushan

As mulheres haviam sido de grande valia em maneiras cruciais durante a marcha, desde juntar comida e recrutar novos carregadores e soldados, até fazer performances para os locais e as tropas, e organizar equipes de maqueiros para carregar os doentes e os feridos. Três foram deixadas para trás – duas com os maridos feridos e uma para organizar uma milícia local – e 27 continuaram. Durante os dois meses seguintes, no limite da área conhecida como “Teto do Mundo”, os Vermelhos tiveram que encarar altitudes debilitantes, discórdias internas amargas (depois de se juntarem ao Quarto Exército) e charcos mortais não mapeados. Eles resistiram e continuaram para mais uma marcha de 1.600 quilômetros até o norte da província de Shaanxi, onde estabeleceram uma nova base permanente.

Minha missão na China era rever um dos trechos mais perigosos da trilha para um livro que estava escrevendo a respeito das trinta mulheres e sua luta pela sobrevivência. Em 2006, entrevistei a última sobrevivente do Primeiro Exército da Longa Marcha, Wang Quan­yuan, então com 93 anos, cuja jornada havia dado uma reviravolta quando foi capturada pelas tropas do general muçulmano Ma Bufang e forçada a ser uma escrava sexual durante dois anos até fugir.

Nos dez dias que se seguiram, guiados por Ed e Xiao, seu assistente Mike Tan, 40, e um duende boiadeiro tibetano Jiacuo, 46, tínhamos a intenção de seguir as pegadas de Mao, subindo Dagushan no mais alto passo da Longa Marcha, e cruzando o ziguezague da divisória continental (entre as bacias do Yangtze e do rio Amarelo) três vezes. Um time de dez cavalos, conduzidos por quatro vaqueiros tibetanos locais levariam nossos equipamentos. Iríamos trocar de equipe no vale do rio Maoergai e cruzar o caodi, trecho de charcos de altitude, onde dezenas de Marchadores haviam desaparecido nos poços escuros que, segundo um soldado do Exército Vermelho, “fedia como xixi de cavalo”.

Viajando comigo havia vários amigos e colegas: Andy Smith, professor de história no ensino médio e fotógrafo de natureza amador; o colega de faculdade Lawrence Gray e o caçador e pescador fanático Gordon Wallace, ambos empresários em férias sabáticas; e Philipp Engelhorn, fotógrafo alemão residente em Hong Kong. Percorreríamos aproximadamente 145 quilômetros, quase o tempo todo acima dos 3 mil metros, num lugar raramente visitado por ocidentais. Isto é, se realmente conseguíssemos chegar lá.

NO SÉCULO VIII, O POETA CHINÊS LI BAI proclamou que era “mais difícil ir a Sichuan do que entrar no paraíso”. Nossa chegada atrasou 14 meses por causa do terremoto de 7,9 graus de Wenchuan, que devastou a região, levando 90 mil vidas e deixando 90 milhões de desabrigados, além de enterrar as estradas de montanha. Finalmente, no começo de julho de 2009, eu cheguei a Chengdu, robusta capital de Sichuan.

Agora dois outros obstáculos haviam se materializado. O 60o aniversário da República Popular da China – a nação comunista que surgiu depois que a revolução foi vencida, em 1949 – estava prestes a ser celebrado, e o governo havia começado a restringir o turismo no Tibete para evitar qualquer incidente político embaraçoso. Enquanto isso, um protesto dos turcos muçulmanos Uighures na província de Xinjiang, 1.600 quilômetros ao norte, havia se tornado violento; pelo menos 197 pessoas haviam morrido e 1.600 ficaram feridas. Os oficiais de segurança entraram em alerta vermelho, verificando documentos nas barreiras da estrada e fechando as fronteiras.

Por sorte, Ed, um estudioso de russo e conhecedor do mandarim que trocara a Rússia pela China há mais de uma década, era mais do que bem informado. Tendo caminhado todos os 6.400 quilômetros da Longa Marcha com seu amigo Andy McEwen em 2002/03, e explorado muitas das trilhas da China ocidental desde então, ele havia aprendido mais do que um par de truques.
No dia em que aterrissamos em Chengdu, ele organizou uma coletiva de imprensa para o maior jornal de Sichuan.

A manchete na manhã seguinte nos chamou de “Os Sete Estrangeiros Amigáveis”. Em nossa exaustiva viagem de três dias de carro pelo interior das Nevadas para chegar a Dagushan, Ed havia usado o recorte de jornal como se fosse um crachá nos postos policiais. Num posto florestal na base de Jiajinshan, montanha mais mortal da Longa Marcha, nossa van foi parada por oficiais uniformizados que nos disseram que a estrada estava fechada há três meses. Ed apresentou seus papéis com o artigo por cima de todos, e foi feita uma exceção. Não só nos permitiram passar, mas também almoçamos no refeitório dos policiais antes de prosseguir. Tratores Bulldozers limpavam a terra e os escombros da estrada à nossa frente enquanto dirigíamos.

O Sichuan Dagu Glacier Park ainda não estava aberto ao público quando chegamos, apesar de já ter um impressionante refúgio no estilo bloco soviético e 40 ônibus novos em folha num estacionamento imenso, prontos a levar os turistas para ver as geleiras. Em busca do passo mais alto por sobre Dagushan, deixamos a vila de Xia Dagu a pé e seguimos montanha acima por uma garganta com samambaias, pinheiros e, às vezes, lama na altura do joelho, daquelas que arrancam as botas. Essa trilha de iaques de carga subia por uma aresta com vários desfiladeiros de arrepiar, e duas vezes tivemos que abrir caminho para dar espaço às caravanas de cavalos carregados de manteiga de iaque. Não muito longe dali havia uma vaca morta – dura, mas intocada pelos ursos.

Chegamos ao pasto de verão a 4.000 metros para o happy hour. As pradarias estavam cheias de iaques, dhoykes – perversos cães mastiff tibetanos, famosos na região – e lindas pastoras de iaques. Uma moça de pele de pêssego e olhos amendoados destemidamente nos convidou a entrar na sua cabana. Agachados embaixo da carne seca de iaque pendurada nos caibros, sentamo-nos ao redor do fogão a lenha, enquanto ela nos servia cumbucas de chá com leite de iaque. “Há uma sensação de liberdade nestas pessoas”, disse Ed. “Não se vê muitas cercas por aqui, e também não se nota o estímulo ao ‘turismo da pobreza’. Os pastores tibetanos podem não ter muito dinheiro vivo, mas têm uma cultura forte e espiritualizada, e olham os estrangeiros nos olhos, como absolutamente iguais”.

Na verdade, nestas terras tibetanas, o Exército Vermelho teve que lutar com um povo feroz. Aconselhados por seus líderes lamas, que vinham batalhando com estrangeiros há séculos, os tibetanos esconderam-se nas montanhas antes da chegada dos Vermelhos para depois os atacarem com atiradores de precisão, cortarem a garganta dos retardatários e empurrarem imensos blocos de pedra nas colunas em marcha.


COTIDIANO: Caravana de cavalos atravessando para as pradarias

Em nossa segunda noite em Dagushan, montamos acampamento a 3.500 metros logo antes de uma tempestade colossal com raios ressaltar os buracos da nossa lona, onde cozinhamos e comemos, e onde alguns de nós dormiram. Mesmo assim, Ed acendeu o fogareiro a gás e preparou um banquete de arroz com abóbora e linguiça, feito pela família de Xiao. Para os mais destemidos – como Mao, fã da cozinha apimentada –, Ed preparou um prato de repolho, fatias de bacon e uma pimenta preta de Sichuan que anestesiava a boca.

À medida que os outros se recolhiam, Ed e eu continuávamos nossas conversas a respeito da Longa Marcha. Ele e Andy McEwen haviam escrito um livro a respeito de sua jornada, no qual detalhavam as descobertas, como ter encontrado uma mulher que poderia ser a filha perdida de Mao, filha de He Zizhen, sua esposa à época, e abandonada no caminho.

Depois de refazer a trilha do Primeiro Exército com Andy, Ed havia caminhado a ainda mais longa trilha do Segundo Exército (que no final havia se encontrado com Mao) com Xiao, que é tão apaixonado pela Grande Marcha quanto ele. Ed conversou com cada sobrevivente que aceitasse sua visita, e hoje sabe mais a respeito da jornada do que qualquer outro ocidental. “Você tem que escrever a história definitiva sobre a Longa Marcha”, eu lhe disse. “Eu não sei”, disse ele com um sorriso sardônico. Cada vez que voltou de uma expedição, sentado em frente ao computador em seu pequeno apartamento em Beijing, ele teve “depressões arrasadoras”, confidenciou. Ed prefere estar no campo mais do que qualquer outra coisa.

Levamos um dia e meio para chegar ao topo do Dagushan. Naquele momento já havíamos descoberto por que Mao e sua gangue sofreram tanto. Até mesmo no verão, no topo os ventos eram gelados e o ar era rarefeito. Vestindo saias de algodão e sandálias de palha, as 27 mulheres – com suas cabeças raspadas para livrarem-se dos piolhos – sofreram com o frio e com o mal de altitude. Após ter cólicas horríveis nas Nevadas, Wang Quanyuan, então com 22 anos, descobriu mais tarde que havia ficado estéril ali.

Quando chegamos ao passo, a 4.469 metros de altura, estávamos no ponto mais alto da Longa Marcha de Mao. Durante as entrevistas, nenhuma das mulheres, que estavam mais preocupadas em sobreviver, mencionou a incrível vista das montanhas, geleiras e cachoeiras que tínhamos naquele momento.

EM QUASE TODA VILA víamos sinais de danos causados pelo terremoto de Wenchuan, que chacoalhou edifícios até Xangai, a mais de 1.600 quilômetros a leste. Na vila de Hadapu, lugar onde o Exército Vermelho finalmente emergiu – beijando o chão – vindo da região tibetana da China, vimos os piores sinais de destruição. Quarteirões inteiros de casas antigas, lojas e templos foram reduzidos a escombros. Cópias em cimento agora estavam sendo erguidas em seu lugar.

Xue Luo, uma vila no fundo de Dagushan, exemplifica bem a faca de dois gumes que o progresso significa por estes lados. Aqui, à beira de um pequeno afluente do Maoergai, o governo chinês começou a construir uma nova vila com casas de pedra idênticas com telhado vermelho. Não se pode discutir a melhora no conforto. A antiga vila de casas de madeira de intricada construção observa tudo logo de cima, fadada ao esquecimento.

Na vila de Wodeng, um nativo nos deu um bilhete, no qual se lia que a casa de pau a pique de dois andares logo à nossa frente havia sido o local da Reunião de Shawo, um divisor de águas. Ed e eu nos entreolhamos. Esta era uma revelação surpreendente. Um jovem de nome Yixi, cujo pai estava pastoreando nas montanhas, nos convidou a entrar na tal casa. Como era típico numa tradicional casa tibetana, os rebanhos viviam no térreo e a família no andar de cima. Subimos a inclinada escada de madeira. Yixi mostrou pela janela um banco de areia no córrego. Os ocidentais sempre acreditaram que a famosa reunião, num dos estágios políticos mais sensíveis da Longa Marcha, foi batizada assim porque aconteceu numa vila chamada Shawo. Mas agora Yixi explicava que as palavras sha wo podem ser traduzidas como “casa perto da areia”; os Vermelhos olharam pela janela e batizaram a reunião de Reunião na Casa de Areia. Havíamos agregado uma nota de rodapé à história.

Aqui, o General Zhang Guotao, líder do Quarto Exército Vermelho, que havia se encontrado com o Primeiro Exército nas Nevadas, discutiu com Mao por causa da estrutura e da liderança de uma força unificada. Zhang comandava um exército muito maior, mais bem equipado e menos debilitado. Mas Mao controlava a liderança do Partido Comunista e era mais inteligente em todos os pontos de vista. Em Shawo, se uniram e redividiram as tropas, numa organização que pareceu favorável a Zhang, mas que, na verdade, manteve Mao no seu caminho para o poder definitivo.

Do lado de fora, indiferentes ao momento transcendental, um grupo de pessoas havia se juntado à volta de Gordon, que montava sua vara de pesca. Na primeira arremessada, fisgou um primo chinês do peixe-gato com 30 centímetros, e soltou. Os tibetanos, sendo budistas, não comem peixe.


PRECE: Tibetano joga cartas de oração ao vento, para que sejam carregadas até o paraíso

Numa vila próxima onde passamos a noite, Ed e Xiao ouviram um sermão de um chefe de polícia bêbado, que, seguindo uma antiga linha política e misturando suas próprias crenças, enrolou-os por mais de uma hora. “Vocês, pessoas de países capitalistas, têm que entender que este é um país socialista, e devem respeitar nossas regras! Somos tibetanos, nunca voltaremos aos tempos do feudalismo!”

Mas os hospitaleiros monges budistas no mosteiro do vale, que tinha um templo branco de dois andares e casas para várias centenas de homens santos, não tinham problemas com os visitantes ocidentais. Eles nos receberam calorosamente, nos levaram para conhecer o templo e nos apresentaram às freiras carecas num convento próximo. Eles também nos serviram tsampa, base da dieta tibetana. Os caminhantes da Longa Marcha, vindos de uma China onde só se comia arroz, tiveram dificuldade em digerir esta pasta feita de cevada, manteiga de iaque, coalhada de iaque e chá. Nós logo entendemos a dor deles.

A PONTA SUL DAS NEVADAS É DOMINADA PELO MONTE GONGGA, pico de 7.556 metros de altura imortalizado no livro Men Against the Clouds (Homens contra as nuvens; Mountaineers Books, não editado no Brasil), relato da tentativa bem sucedida de uma equipe norte-americana que se tornou a primeira a chegar ao cume da montanha mais alta de Sichuan, em 1932. É também o local de muitos acidentes de escalada, inclusive a avalanche de maio de 2009 que matou os escaladores norte-americanos Micah Dash, 32, e Jonny Copp, 35, além do cineasta de 24 anos Wade Johnson. Em 1935, o Exército Vermelho sabiamente contornou a imensa e traiçoeira montanha, mas não conseguiu evitar um outro pesadelo, que os esperava um pouco ao norte da cadeia de montanhas.

O trecho mais desmoralizante da Longa Marcha foi no então não mapeado caodi, um sistema de arestas e charcos que os soldados vermelhos chamaram de mofengyu – termo depreciativo para descrever uma pessoa cujo rosto tem marcas de catapora. Aqui, os vermelhos se depararam com chuvas de vento, granizo e neve. Centenas morreram de fome, frio e exaustão. Muitos se afogaram em poças de lama e capim apodrecido que os sugavam como areia movediça.

Agora que estávamos para entrar no caodi com dez cavalos novos e um novo grupo de vaqueiros, o líder deles, Sanjindao, 41, elegante e misterioso com seu chapéu coco, nos disse que não poderiam subir o primeiro vale. A vila dele tinha uma contenda de sangue com os habitantes daquele vale, pelo direito de coletar o aweto, valioso fungo medicinal que cresce em lagartas e é utilizado para produzir moonshine, um destilado local. Oito pessoas morreram na luta. Então, tivemos que fazer um desvio de vários quilômetros até o vale seguinte. A essa altura, não havia nada a fazer a não ser adicionar quilometragem à nossa rota.
Ao atravessarmos uma aresta a 3.660 metros, podíamos sentir que havíamos adentrado um local mais amplo e mais vazio. Um grupo tão grande não consegue passar despercebido numa área destas, e os vaqueiros tibetanos temiam um ataque dos seus rivais, o mesmo povo que havia tornado a passagem do Exército Vermelho por aqui tão desgraçada. Ao por do sol, montamos as barracas em círculo num platô acima do charco e mantivemos os cavalos do lado de dentro.

Sem árvores no planalto, os tibetanos cortaram tábuas que haviam carregado consigo e fizeram uma fogueira na barraca ventilada. Philipp, Lawrence e Andy arrastaram-se para dentro para unirem-se a eles e se aquecer. Comunicando-se com sinais e sorrisos, os tibetanos fizeram chá e passaram uma garrafa de Sprite cheia de white lightning, outro destilado local.

Enxames de mosquitos verdes nos atacavam, o que, para Gordon, significava uma ninhada fresca de larvas que ele poderia usar para pescar em um dos muitos rios. Ele arrastou-se pela cerca de um refúgio de inverno abandonado para chegar ao rio, mas só encontrou decepção.

A chuva caía novamente enquanto nos reuníamos ao redor da lâmpada, sob a lona. Jiacuo, que tinha uma careca torrada pelo sol, contava histórias em tibetano, que Mike traduzia para Chinês e Ed transformava em inglês australiano, para que Lawrence e Andy às vezes adaptassem para os norte-americanos. De acordo com Jiacuo, os tibetanos chamavam o Exército Vermelho de “Exército Come-Tudo”. Ele era habitante da vila de Cirina, ponto de uma de nossas visitas que foi ocupado pelo Exército Vermelho. Mais tarde surpreendemo-nos com a descoberta que Jiacuo, que alegremente realizava algumas das tarefas mais baixas do acampamento, como cavar latrinas (sempre com vista), é membro do Partido Comunista e vive numa casa grande com paredes de lambri de pinho onde se penduram porcos cortados ao meio e salgados.

“Eles matavam todos os soldados que ficavam para trás”, admitiu a respeito de seus ancestrais, “menos as crianças”. O Exército Vermelho chamava os jovens que os acompanhavam de “diabinhos”. Em Cirina, um garoto de 12 anos, coberto de feridas, uma vez apareceu à porta de uma família. Foi enxotado. Voltou no dia seguinte e foi enxotado novamente. No terceiro dia, quando o garoto voltou, a família decidiu que deveria ser o destino e o acolheu. Os filhos dele ainda vivem na vila.

Agora que havíamos nos aquecido, Jiacuo, cujo sorriso diabólico fazia dele o favorito do acampamento, contou-nos uma história desbocada a respeito de Ma Bufang, líder de um clã de cavaleiros sino-islâmicos que lutou contra o Exército Vermelho. “Ma Bufang mantinha um harém de vinte mulheres”, contou. “Ele as mandava guardar tâmaras na vagina por dois dias. Depois comia as tâmaras para lhe dar virilidade e longevidade”.

A EXPEDIÇÃO SEGUINTE DE ED será para uma das montanhas mais altas das Nevadas, atravessada pelo Quarto Exército: Danglingshan, de 5.471 metros de altura. “O pico é claramente o mais alto de todos”, disse. “Mas nunca encontrei registro de ninguém que o tenha cruzado nos tempos modernos”.

Chegando ao final da lista de picos da Longa Marcha a serem escalados, Ed tem uma nova obsessão: as trilhas do chá no Tibete. Já que as rotas principais cruzando Sichuan agora são quase todas pavimentadas, ele partiu para descobrir e mapear as cadeias norte-sul que conectavam os distritos vizinhos às cadeias principais. “As menores trilhas são as mais empolgantes”, contou ele. “Elas levam a locais remotos que são território virgem para caminhadas.” Uma vez que tenha documentado essas trilhas – de forma que possa levar clientes aventureiros por sua empresa Red Rock –, ele espera ser possível conectá-las numa rede contínua. “Algo como uma versão chinesa da Appalachian Trail.”

Profundamente embrenhados na região dos charcos, com uma semana de caminhada, chovia torrencialmente, saturando o interminável labirinto de arestas, charcos e córregos correndo em todas as direções. Escolhendo o caminho de tufo de mato em tufo de mato, com seu equipamento fotográfico preso ao peito, Andy finalmente afundou numa poça escura. “Os tufos de mato ficaram cada vez menores, até que foi cheque-mate”, explicou, com um sorriso amarelo. Sob tais condições, as mulheres da Longa Marcha frequentemente tinham que sentar-se de costas uma para outra, para dormir. “A comida acabou e não tínhamos mais sal. As pessoas sentiam fraqueza o tempo todo”, contou mais tarde uma mulher chamada Little Sparrow, então com 29 anos. “O pântano era perigoso e muitas pessoas afundaram e nunca mais voltaram.”

A chuva interminável nos açoitava com tal ferocidade que, apesar das polainas, nossas botas estavam cheias até em cima. Gelados e encharcados, chegamos a Galitai, ponto de parada no meio do nada, e entramos no Restaurante Grasslands, uma cabana de metal com uma chaminé de cano soltando fumaça preta. Cruzaríamos essa estrada e continuaríamos para o norte ainda pelo desolado caodi, numa antiga trilha de chá para o Tibete, pelos próximos 48 quilômetros.

Dentro do restaurante, penduramos nossos equipamentos nos caibros, enchemos nossos copos com moonshine de um pote de conserva no balcão e fizemos um brinde com nossos vaqueiros. E este não era um moonshine qualquer. Era uma especialidade regional com ingredientes medicinais – licor de sorgo, chifre de veado, aweto (fungo de lagarta), beimu (raízes de uma gramínea medicinal), hongjin­tian (mistura de ervas usada para mal de altitude), dangshen tipo ginseng e tâmaras.

O lugar estava começando a ficar aconchegante quando a porta de entrada se abriu, num momento digno de filme de faroeste. Três motoqueiros cabeludos vestindo casacos de pele de iaque pararam à porta. Nossa equipe de cavaleiros, suspeitando que fossem da vila inimiga, congelou. O mais malvado dos malvados, com um dente de ouro e 90 centímetros de lâmina em uma bainha dourada pendurada no cinto, escaneou o pedaço. Vinte e oito olhos petrificados olhavam-no de volta. Nenhuma palavra foi dita. Aparentemente não gostou das chances (contra os Sete Amigáveis, quem iria?). A porta fechou novamente e as motos zuniram embora.

AO NORTE DA ESTRADA, ficamos gratos por chegarmos no ainda mais remoto vale Baozuo. “É difícil encontrar lugares onde o homem ainda não tenha botado a mão na terra”, disse Ed, enquanto observávamos o vale vazio abaixo. Nos dois dias seguintes, caminhamos ao longo do rio Baozuo, pelo fantasma de uma estrada da Dinastia Qing, parte de uma das remotas trilhas de chá atualmente almejadas por Ed. “Essas trilhas são uma conexão direta com os velhos dias das grandes caravanas que duravam meses a fio”, disse Ed. “É o tipo de jornada relatada em meus livros de aventura da adolescência.”

No segundo dia, no topo de uma serra íngreme de 3.993 metros de altura, observávamos o vale Baozuo, em direção à saída do caodi, onde o Exército Vermelho havia lutado contra os nacionalistas e escapado do seu pesadelo líquido. Nossos cavalos estavam irritados, talvez assustados pelos animais selvagens ou pelas nuvens agitadas. Um deles corcoveou, derrubou sua carga e deu no pé, seguido por outros dois. Sanjindao e Gama, seu segundo no comando, saltaram em cima de outros dois e perseguiram os foragidos. Uma tempestade ao final da tarde nos levou até as cabanas de esterco de um acampamento de inverno perto do rio. À medida que a luz diminuía, sombras de animais latiam para nós desde a encosta da montanha, e duas bestas não-identificadas com longas caudas vermelhas, jubas brancas e pele negra rondavam nosso acampamento. Nossos cavalos se juntaram, chutando e relinchando.


CAMINHO: Cavaleiro conduz a montaria com a carga da equipe de viagem

Gordon não se assustou e voltou do rio com um sorriso e um peixe de bom tamanho, que Mike identificou como a carpa de altitude sem escamas. Os tibetanos não se importaram de comermos. Ficou uma delícia na frigideira.

No dia seguinte, uma caminhada de seis horas e 24 quilômetros pela parte alta do vale Baozuo nos levou até o ponto de saída do caodi. Sob circunstâncias bem diferentes, comemoramos o fim da nossa caminhada. Além dos limites da oficialização, havíamos encontrado uma área rústica e selvagem no coração da China, com poucas pessoas e vastas amplidões. “Não é um lugar de passeios curtos – então deve escapar do turismo de massa que recai sobre outras partes de Yunnan”, disse Ed.

Esforços organizados de tentar conectar trilhas – sejam da Longa Marcha ou trilhas do chá – ainda estão a anos de distância, diz Ed, que, apesar das complicações inerentes à China, continua esperançoso. “O primeiro passo é estabelecer o conceito e encorajar o uso responsável desses recursos.” O segundo passo? Bem, no que depender de Ed e Xiao, será num vale remoto ou alta montanha. Se tiverem sucesso, a parte noroeste de Sichuan irá se tornar um dos próximos destinos de grandes aventuras no mundo.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2010)