Considerado um dos mais geniais cineastas vivos, o alemão Werner Herzog fala sobre seu mais recente filme, uma produção 3D rodada em uma caverna na França
Por David Holbrooke
QUEM PODE ESQUECER aquela cena? No filme O Homem-Urso (2005), de costas para a câmera e com grandes fones de ouvido, o diretor alemão Werner Herzog ouve a gravação de áudio do momento em que o fanático por ursos Timothy Treadwell e sua namorada, Amie Huguenard, são devorados vivos por um desses bichos imensos. Herzog então se vira para a amiga de Timothy, a dona da fita e, com seu forte sotaque germânico, diz que ela deve destruir a gravação. “Você nunca deve ouvir isto.” O diretor gosta de focar sua câmera sobre a complicada linha que divide os seres humanos e a natureza, como fez em Encontros no Fim do Mundo, indicado ao Oscar de melhor documentário de 2007, que mostra o cotidiano das pessoas que vivem numa base norte-americana na Antártica. Sua mais nova produção, Cave of Forgotten Dreams, é um documentário 3D feito em 2010 (ainda sem previsão de lançamento no Brasil) que precisou de uma permissão sem precedentes do governo francês para ser rodado dentro da caverna de Chauvet, no sul do país, que contém as pinturas pré-históricas mais antigas que se conhece, estimadas em 32 mil anos. A caverna é a tela perfeita para as câmeras 3D de Herzog, que de forma surreal dão vida às incríveis obras de arte da Idade da Pedra. David Holbrooke, diretor do Festival de Filmes de Montanha de Telluride, no Colorado (EUA), conversou com Herzog na casa do cineasta, em Los Angeles. OUTSIDE: Você deve ter se sentido muito afortunado por filmar em um lugar como a caverna de Chauvet, não? Deve ter sido extraordinário… Você não teve problemas com gases venenosos na Chauvet? E por que você fez a filmagem em 3D? E você trabalharia com 3D de novo? Você já foi descrito como um cara destemido. Você não tem medo de nada mesmo? Foi muito difícil, como diretor, não mostrar no filme o áudio da morte de Timothy Treadwell em O Homem-Urso? A linha entre os seres humanos e a natureza é algo que você examinou extensamente em sua carreira. Em O Homem-Urso, você diz: “Acredito que o denominador comum do universo não é a harmonia, mas o caos, a hostilidade e o assassinato”. Você dirige uma escola itinerante de cinema chamada Rogue Film School, que ensina coisas como “a arte de arrombar uma fechadura” e “o lado atlético da direção de cinema”. É preciso isso tudo para se ser um bom cineasta? Tem algum filme que você quis fazer, mas não foi capaz? Você não tinha planos de fazer um documentário sobre a montanha K2, na Ásia? De quais cineastas você gosta? E há algum cineasta contemporâneo que vale a pena acompanhar? (Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2011)
GÊNIO: Retrato do alemão Werner Herzog
As cenas registradas no Alasca não são exceção na carreira de Herzog, 68 anos, conhecido por seus filmes extremos gravados em locais radicais: ele já rebocou um barco a vapor por um istmo no Peru para realizar Fitzcarraldo (1982) e passou 44 dias nas selvas da Tailândia para rodar O Sobrevivente (2006).
WERNER HERZOG: Sim, afinal os franceses são muito territorialistas. Consegui a permissão para filmar lá porque há muito tempo me interesso por cavernas. Tinha 12 anos quando vi um livro sobre as cavernas de Lascaux [próximas dali], e eles sabiam que meu documentário se tratava de um projeto sério.
E foi mesmo. Mas eu estava concentrado em fazer ótimas imagens. Tinha permissão para filmar só por uma semana, quatro horas por dia, e pude levar apenas três pessoas comigo. E não fui autorizado, em hipótese alguma, a sair das trilhas demarcadas, que são bem estreitas. Outras cavernas, como a de Lascaux, por exemplo, foram destruídas pelas pessoas. Existe um fungo lá agora, e para salvar as pinturas proibiram a entrada de visitantes.
Em um dos túneis da caverna, há níveis muito elevados de gás carbônico. Em outros trechos, existe uma concentração altíssima de radônio. Então só dava para eu ficar lá pouco tempo antes de começar a me sentir tonto.
Não sou um grande defensor do 3D no cinema. Fica legal em filmes como Avatar e em shows de efeitos especiais. Fora isso, algumas coisas não funcionam muito bem em três dimensões. Eu estava cético, mas assim que vi a caverna pela primeira vez, sem qualquer câmera, ficou claro que todas aquelas saliências e formações dramáticas ficariam melhor em 3D. E essas ondulações foram usadas pelos artistas, faziam parte de sua tela. Uma saliência na pedra virou o pescoço grosso de um bisão. Num outro canto, um cavalo salta com cuidado. Há histórias inteiras, dramas completos ali.
Foi imperativo nesse caso, mas agora estou fazendo um filme sobre prisioneiros no corredor da morte no Texas e na Flórida. E claro que isso não vai ser em 3D.
Não é verdade. Eu morro de medo de aranhas.
Ficou claro para mim na hora que aquilo nunca deveria ser divulgado. A morte necessita de um pouco de privacidade e dignidade. Era uma coisa horrenda, e é preciso se preparar para ter uma experiência desse tipo.
Naquele filme, estou tentando falar, através de Timothy Treadwell, sobre toda essa romantização estilo “new age” em relação à natureza. É uma discussão que não acaba, e obviamente tenho uma posição diferente da maioria. Quando se observa o universo à noite e se olha para as estrelas, sabe-se que lá fora é um tremendo caos, um lugar muito hostil e inóspito. Não existe esse negócio de “harmonia da Terra”. Não engulo essa baboseira “new age”.
Essa não é uma escola de cinema que ensina como usar uma câmera, a fazer uma tomada ou gravar um áudio. É um projeto diferente, mais selvagem. Quem está trabalhando dentro do sistema dos grandes estúdios não precisa disso. Mas quem tem outros objetivos precisa, sim, de certas lições básicas.
Era um plano para um filme de ficção. Fiz um documentário como teste, para ver se era possível rodar um filme lá em cima. Depois de poucos dias, a resposta ficou bem óbvia: não. Não dá para fazer um filme no K2 e ponto final.
Jean Rouch, o cineasta francês que fez Os Mestres Loucos nos anos 1950, um dos melhores filmes já realizados.
Não.