Foram tantos anos acompanhando de perto acidentes e mortes que o resgatista Michael Ferrara um dia desabou: mergulhou numa depressão profunda e sofreu horrores com transtorno de estresse pós-traumático. Durão como ele só, luta até hoje para se recuperar. Mas decidiu fazer de sua história um exemplo de coragem
Por Hampton Sides
RELEMBRANDO SEUS quase 30 anos como socorrista altamente condecorado da região de Roaring Fork, no Colorado, o norte-americano Michael Ferrara não consegue apontar precisamente quando sua vida começou a desabar. O sofrimento não surgiu de repente, mas em uma longa sequência de baques na alma e na mente. É possível, porém, destacar um fato desencadeador da crise: um pesadelo no aeroporto de Aspen, em 29 de março de 2001.
Num belo e ameno dia de agosto passado, Michael e eu decidimos caminhar até lá. Seu cão de resgate em montanha, um pastor alemão de 6 anos chamado Lhotse, nos guia pelo caminho. Michael usa moletom e tênis de corrida em trilha. Sua pele é corada de sol e os cabelos ruivos estão cortados bem curtos. Paramos do lado de fora da cerca do aeroporto, que é projetada, entre outras funções, para manter manadas de alces longe da pista. Michael franze os olhos à luz do sol enquanto um Learjet taxeia e decola. “Estou bem”, ele me assegura. “Aprendi a contar a história sem revivê-la – é parte da terapia.”
O tempo estava frio e nevava naquela noite, dez anos atrás. Um minuto depois das 19h, um Gulfstream III aproximou-se. Quinze amigos de Los Angeles, a maioria deles com menos de 30 anos, haviam fretado o jato para comemorar o aniversário de um colega esquiando. Alguma coisa deu errado na aproximação final. Aparentemente o piloto não conseguia ver a pista. A ponta de uma das asas bateu no chão, o avião virou e a cauda se partiu. Seguiu-se uma grande explosão.
Michael, que naquele tempo era ao mesmo tempo assistente do xerife do condado de Pitkin e investigador-assistente, foi um dos primeiros a chegar. Ao longo dos anos, ele havia trabalhado em meia-dúzia de acidentes com pequenos aviões nas montanhas de Aspen. Em outras ocorrências como paramédico, patrulheiro de esqui, resgatista de montanha e especialista em avalanches, ele frequentemente lidava com sangue, traumatismos e dor. Mestre na estóica arte do socorrista, ele instintivamente sabia como assumir a liderança em situações caóticas. Mas não estava totalmente preparado para aquilo.
Em meio às fagulhas e luzes, Michael mergulhou no horror surreal do acidente aéreo. O primeiro corpo sangrento e carbonizado com que ele se deparou ainda estava afivelado ao banco, com o celular tocando no bolso. Com o canto do olho, ele viu algo preso na cerca dos alces: um pedaço de carne, de onde pingava um fluido amarelado. Michael passou aquela noite horrível com seus colegas policiais, colocando partes humanas em sacos plásticos. Foi uma das piores tragédias da história recente de Aspen. As 18 pessoas a bordo, inclusive a tripulação, morreram. Michael só chegou em casa às 4 da manhã, cheirando a combustível. Ele tirou suas roupas manchadas e largou-as no jardim da frente de sua casa.
Enquanto ele me conta tudo isso, pisca sem parar, como se estivesse esperando por lágrimas que jamais virão. “As pessoas pegam seus jatos para vir para cá se divertirem neste parque de diversões outdoor. Ninguém vem para Aspen pensando que algo como isso pode acontecer. Elas olham para estas lindas montanhas e vêem o paraíso. Eu olho para essas mesmas montanhas – e, às vezes, vejo um outro lado.” CHAMADO PELOS AMIGOS de Mongo, Michael é um típico personagem de Aspen. O apelido vem do corpulento vilão do filme Banzé no Oeste, de Mel Brooks, que nocauteia um cavalo com um só soco. Mongo aterrissou em Aspen em 1979, depois de abandonar a faculdade de direito em Buffalo, Nova York, perto de sua cidade natal, Williamsville. Ele tinha 29 anos e naquela época ficou conhecido como um cara invocado, baladeiro, um tanto escandaloso, mas extremamente competente e durão, que gostava de viver no limite.
Michael rapidamente conheceu os riscos e as emoções da mais rica, atlética e extraordinária das cidades alpinas do país. Ele andou de motocicleta, saltou de pára-quedas, escalou agulhas no deserto, correu ultramaratonas e esquiou que nem louco. Arriscou a própria vida, mas também salvou outras. No mundo altamente premiado dos paramédicos de montanha daquela região, ele era um dos melhores. “Entre os caras de busca e resgate, Michael tinha a reputação de ser o mais inteligente, o mais apaixonado e, provavelmente, o mais preparado para assumir riscos”, diz Doug Rovira, escalador e médico de expedições que trabalhou com Michael. “Eu não estou brincando quando digo que esperaria uma hora a mais para que fosse ele que viesse me resgatar.”
Mongo foi treinado em paramedicina, técnicas verticais, patologia forense e no uso de explosivos e armas de fogo para avalanche. Ele era o “Mr. 911” de Aspen: sempre ligado, pilhado e disponível. Quando algo dramático acontecia no condado de Pitkin, ele geralmente estava lá, usando uma de suas habilidades para ajudar a juntar os pedaços.
Michael deixou Aspen algumas vezes em busca de outras aventuras. Passou um bom tempo em Denali, no Alasca; na região do monte Rainier, em Seattle; e no Yosemite, na Califórnia. Foi trabalhar para a companhia de petróleo Alyeska Pipeline, no Alasca. Durante um ano, ele viveu acima do Círculo Polar Ártico, na base do Atigun Pass, perto da fronteira oeste da Área de Proteção Ambiental do Ártico. “Eu me saía muito bem em meio ao estresse, à escuridão e ao tempo inclemente”, diz. “Eu pensava: ‘talvez eu sofra melhor do que as outras pessoas’.”
Praticamente todo mundo ao redor de Aspen conhece Mongo – especialmente as pessoas que já estão ali há algum tempo. Quando ele atravessa a cidade em seu surrado, mas confiável Ford Ranger, ele desencadeia uma onda de acenos e buzinas. A maioria também conhece seu cachorro. Lhotse é uma realeza canina: nascido em Munique, ele vale mais de US$ 10 mil e vem de uma antiga linhagem de cães de resgate especialmente criados e treinados. Ele também é um astro da TV: apareceu com Michael em vários programas sobre como os resgatistas encontram esquiadores soterrados por avalanches. Michael é um ex-fisiculturista boa pinta, com bíceps grandes, tórax do tamanho de um barril e uma voz forte e clara que chama a atenção. Tem olhos azuis claros e um rosto anguloso que lembra o de Clint Eastwood. Está em excelente forma para um cara de 60 anos, apesar de a dor às vezes transparecer em seus passos, fruto de uma vida de lesões. Ele passou por nove cirurgias de joelho, duas operações de tornozelo, costelas fraturadas, uma clavícula quebrada, esterno trincado, um pulmão perfurado, tendão de Aquiles rompido, quatro vértebras comprimidas e quatro concussões “de que se lembre”. “Lesão física é parte da equação, e eu aceito. Se você joga o jogo das montanhas, vai se machucar”, resume.
O que Michael não contava era com a possibilidade de lesões emocionais. Mesmo assim, em dezembro de 2008, depois de vários meses de declínio psicológico, ele desabou. Michael sofreu um colapso devastador e foi diagnosticado com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), o que exigiu um longo tratamento que continua até hoje.
Seus colegas socorristas ficaram momentaneamente chocados com as notícias sobre Michael. O TEPT costuma acontecer em soldados. É uma doença típica de tensos campos de batalha, e não de um paraíso dedicado à diversão extenuante. Mas Michael há muito suspeitava ter TEPT, e não ficou surpreso.
“É claro que ele tem TEPT”, diz o xerife de Pitkin, Alex Burchetta. “Mike sempre fez coisas grandes. Ele escalou as maiores montanhas. Quando estava de plantão, parecia que sempre pegava as ocorrências mais graves. Lesões, trauma, morte – por 30 anos, seu telefone ficou à disposição 24 horas por dia, sete dias por semana, sem folga. Tem que ser muito ingênuo para achar que ele passaria por tudo isso ileso.” OS RISCOS ASSOCIADOS à exposição ao trauma extremo têm sido parte da história humana desde que evoluímos como espécie. Matthew Friedman, psiquiatra e diretor-executivo do Centro Nacional do Departamento de Assuntos de Veteranos para TEPT, nos EUA, diz que os humanos têm lidado com o transtorno de estresse pós-traumático “desde os dias em que éramos atacados por tigres dente-de-sabre”. De acordo com Friedman, Homero descreve algo muito parecido ao TEPT em A Ilíada, e o Henrique IV de Shakespeare tem algo que parece um sintoma familiar: pesadelos pós-traumáticos. Médicos militares descrevem uma doença nas tropas da Guerra Civil norte-americana que denominaram “coração de soldado”. Na Primeira Guerra Mundial, o diagnóstico era “fadiga de combate”. Qualquer que seja o nome, a doença era basicamente a mesma: uma ferida invisível, uma desesperança esmagadora que permanecia muito tempo depois do encontro de uma pessoa com a catástrofe ou com o horror. A aceitação do TEPT como um transtorno diagnosticável foi acelerada pela experiência dos hospitais em tratar soldados, marinheiros e militares que voltavam da Guerra do Vietnã. Os médicos do Departamento de Veteranos descobriram que o transtorno se manifestava em vários sintomas – pânico, insônia, pesadelos, distanciamento da realidade, insensibilidade. Mas a característica principal é a tendência do paciente de reviver os incidentes traumáticos com intensidade e clareza que muitas vezes são idênticas às do evento original.
“De várias formas, o TETP é um transtorno de memória”, diz Matthew Friedman. “Ele altera os circuitos neurais e os neurotransmissores que equilibram as memórias. Em termos de química cerebral, pessoas com TEPT se tornam diferentes daquelas que eram antes. Por meio de exames cerebrais, podemos observar as mudanças. Uma pequena parte do cérebro em forma de amêndoa torna-se hiperexcitável – pode-se vê-la ‘acender’ quando pacientes com TEPT são lembrados de seus traumas.”
Estima-se que existam 24 milhões de casos de TEPT só nos Estados Unidos, sendo que a maioria dos pacientes provavelmente é formada por veteranos de guerra. Na última década, entretanto, o TEPT pouco a pouco foi associado com profissionais civis: bombeiros, policiais, técnicos de emergência e outros socorristas cujos trabalhos rotineiramente lhes expõe a situações e cenas horripilantes. Um estudo publicado no The American Journal of Psychiatry em 2007 relatou que 22% dos trabalhadores que participaram dos resgates das torres gêmeas desenvolveram uma ampla gama de sintomas do TETP. Traumas sofridos por vítimas e ajudantes humanitários em catástrofes naturais recentes como o tsunami de 2004, no oceano Índico, e o terremoto do Haiti no ano passado também confirmaram que o TETP vai muito além dos cenários de guerra.
Estações de esqui e comunidades de montanha demoraram em detectar essa tendência, mas os socorristas alpinos estão pouco a pouco começando a reconhecer que o TETP pode estar bem difundido entre eles também. Viver na beleza do campo não deixa ninguém vacinado contra a tragédia. Esteja você num tanque ou sobre um par de esquis, as ramificações psicológicas de se lidar com sangue e trauma são as mesmas.
“Esse tipo de estresse nos afeta, claro. Não estaríamos nessa profissão se não tivéssemos sentimentos e preocupações pelas pessoas que tentamos resgatar”, diz Dean Cardinale, de Utah, presidente do departamento de resgate em áreas remotas e diretor da patrulha de esqui em Snowbird. Tim Kovacs, renomado paramédico de áreas remotas e especialista em resgate de montanhas no Arizona diz que conhece meia dúzia de pessoas que desenvolveram TETP. “Para aqueles de nós que trabalham em áreas remotas, o velho mantra sempre foi ‘levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima’. Mas por sorte o assunto está ganhando mais atenção. O TETP existe. O estresse desse tipo de trabalho te domina. Ou você lida com ele preventivamente, ou ele te consome.”
“A reação à doença está lentamente mudando”, concorda Skeet Glatterer, especialista em resgate e cirurgião cardiotorácico que também é presidente do comitê médico da Associação de Resgate em Montanha dos EUA. “Agora estamos todos dolorosamente conscientes de que ver tanto horror nos afeta de alguma forma.”
Michael não somente manteve-se firme durante todos esses anos de trabalho duro – ele parecia florescer com aquilo. “Eu amava o que fazia”, diz. “Tive a chance de me exercitar para caramba em meio à natureza, sempre com um propósito. As pessoas diziam que eu era um pilar de força. E, por muito tempo, realmente acreditei nisso.”
Mesmo sem estar plenamente consciente, sua profissão estava lhe cobrando, e caro. Michael começou a se afastar dos amigos. Desenvolveu uma espécie de olhar fixo e distante. Passou por vários relacionamentos. Começou a usar oxicodona, um narcótico analgésico, e tornou-se indiferente a antigos prazeres. Durante o dia, por razões inexplicáveis, ele chorava, consumido por uma arrebatadora tristeza, chamada por alguns doentes de TEPT de “enchente”.
“Ele escondia bem, mas as pessoas mais próximas conseguiam perceber que havia alguma coisa muito errada”, diz sua irmã, Janet Ferrara, que vive na vizinha cidade e trabalha na escola de medicina da Universidade do Colorado. “Ele não conseguia interagir. Não havia mais risos. Ele simplesmente não estava mais conosco.” Em outros momentos, ele era arrebatado pelo que chamava de “slide show” – flashes cruéis de imagens mentais incontroláveis, como um corpo destruído, um pai numa ambulância com seu filho skatista seriamente ferido, aqueles corpos carbonizados na pista de pouso. Ele via o rosto gelado de uma mulher afogada que havia caído de uma ponte enquanto caminhava por uma trilha. Escutava o lamento de uma mãe que segurava seu bebê morto. Michael claramente estava com problemas sérios, mas não procurou ajuda. Depois de uma fatalidade, ele e sua equipe normalmente faziam o que chamavam de “tratamento para afugentar o estresse de incidentes críticos” – o que se resumia em uma boa conversava por uns minutos. Em todos os anos de treinamento, ninguém havia explicado a ele que mesmo os resgatistas às vezes precisam ser resgatados do estresse acumulativo do seu trabalho. Como em qualquer cidadezinha de esqui, a subcultura dos atletas de montanha e socorristas de Aspen é um mundo seleto e competitivo, que cobra uma alta dose de macheza. “Se você falha, todo mundo fica logo sabendo. É muito difícil manter seu lugar na hierarquia dos bons resgatistas”, diz Dave Hahn, um famoso guia de montanha e patrulheiro de esqui em Taos, no Novo México, que passou um tempo com Michael em Aspen e no Everest.
Do ponto de vista de Michael, admitir uma fraqueza era equivalente a assumir que falhara. “Minha identidade e auto-estima estavam intimamente ligadas a esse estilo de vida”, diz Michael. “Como admitir que eu estava tão destruído? Essa era minha vida há mais de 25 anos. Não existiam muitos outros trabalhos que eu pudesse fazer. Eu jamais seria muito bom trabalhando num banco.”
A idade de Michael também passou a ser parte do problema. Ele já estava perto dos 60 e não conseguia manter o mesmo pique dos 20 ou 30 anos. “Em Aspen, as pessoas sempre vivem a 120%. Nenhum de nós gosta de admitir quando a idade começa a pesar”, diz a irmã Janet. Por todas essas razões, Michael sentiu que não poderia demonstrar nenhum sinal de fraqueza. Quando o tal “slide show” passava por sua cabeça, ele simplesmente tentava ignorá-lo. “Eu pensava: sou um profissional bem treinado. Vou superar isso”, conta.
“O problema de Michael é que ele não consegue se desligar”, diz John Barstis, melhor amigo de Michael em Buffalo, que agora trabalha como oncologista em Los Angeles. “A ideia central dele sempre foi: se alguma coisa está errada na sua vida, simplesmente melhore sua condição física. Vá correr outra ultramaratona. Escale outro pico no Himalaia. Ele não tinha uma maneira pacífica de liberar a pressão.”
Especialistas em busca e resgate dizem que pessoas como Michael – as melhores e mais brilhantes de sua comunidade – são as que terminam com os problemas mais agudos de TETP. “Quanto maiores eles são, maior é a queda”, diz o especialista em resgate Tim Kovacs, do Arizona. “Eles acham que conseguem lidar com isso correndo ou esquiando. Alguns escondem os sintomas pela vida inteira. Mas uma hora isso acaba destruindo-os.” EM 2006, MICHAEL ABANDONOU as funções ao lado do xerife, mas seguiu trabalhando na patrulha de esqui em Aspen e como paramédico no pronto-socorro do hospital local. Também continuava como voluntário em resgates de montanha e operações de busca. Ele passou mais duas temporadas sob alta pressão, arrastando esquiadores feridos para fora da montanha, socorrendo acidentes, desenterrando corpos cobertos por avalanches e, às vezes, dando telefonemas horríveis a entes queridos.
Na montanha, o ritmo de ferimentos e mortes era constante. Para todos os lados onde olhava, Michael encontrava um gatilho desencadeador de memórias ruins. Ele lembra: “Falei com uma mãe cujo filho havia acabado de despencar 180 metros de um paredão” – um jovem atleta cujo corpo desfigurado ele havia encontrado e trazido de volta. “Ela foi incrivelmente estóica e disse que ‘a montanha cobra muitas vidas dos nossos jovens’. Era como se ela estivesse se referindo a uma guerra. Meu trabalho era como uma guerra dentro de casa e que nunca terminaria. E as mortes eram todas de civis.”
Veteranos de resgate frequentemente mencionam os horrores específicos de se encontrar vítimas de queda como o jovem que Michael removeu. Marc Beverly, treinador de resgatistas e guia de montanha em Albuquerque, no Novo México, conta que ele nunca se recuperou de um acidente de 1996 em que três escaladores caíram de uma parede de 260 metros. “Você pega um braço e ele se desarticula, você vê globos oculares explodidos, massa encefálica espalhada pelas árvores, e as aves comendo tudo”, diz. “A gente recolhe dentes espalhados e os guarda em potinhos. Quando se vive algo assim, isso fica em você para sempre. Quando você volta para o local do acidente, ele é assombrado. Não me surpreende o fato de que socorristas às vezes nunca mais voltem ao normal”.
Foi só em dezembro de 2008 que a vida de Michael realmente se esfacelou. Numa noite de domingo, ele estava trabalhando no pronto-socorro quando um colega paramédico lhe disse que houvera uma avalanche em Aspen e que os patrulheiros tinham acabado de encontrar um esquiador chamado o Cory. Cory Brettmann era uma figura amada em Aspen, um veterano patrulheiro de esqui e grande homem de família. Michael e ele eram muito amigos e haviam dividido uma casa tempos atrás. Eles haviam escalado e viajado muito juntos. “Qualquer que fosse a armadura emocional que eu tivesse, foi destroçada pela morte de Cory”, diz Michael. “Caí no desespero, não via mais beleza em nada, só escuridão.” Ele se isolou. Não conseguia dormir nem pensar. Em seus dias de folga, não saía de casa. O slide show passava incessantemente por sua cabeça.
A essa altura, Michael havia começado um pesado uso de analgésicos. “Eu só queria meus remédios”, lembra. “Passava meus dias temendo o próximo resgate. Simplesmente não conseguia mais encarar a montanha. Eu comprava todo analgésico que conseguisse encontrar.” A dependência de Michael encaixa-se perfeitamente na literatura sobre TEPT, que tem uma alta incidência de abuso de substâncias tóxicas. Alguns estudos demonstram que quase 50% dos doentes de TEPT do sexo masculino – tanto faz se civis ou militares – também lutam contra o vício.
Como seu abuso dessas substâncias piorou, Michael distanciou-se dos colegas de montanha, interagindo o mínimo possível com eles. Então, no começo de fevereiro, depois de atender uma ocorrência de ambulância numa casa, que resultou ser um caso de morte súbita infantil, ele chegou ao fundo do poço. Estava usando morfina e mandando de uma vez quatro comprimidos de Percocet, um remédio para aliviar dor. Quando o chefe da patrulha de esqui de Aspen o questionou a respeito de seu jeito meio perdido em fevereiro de 2009, Michael confessou o vício.
Banido da equipe de patrulha e com a licença de paramédico rescindida, Michael desabou. Foi avaliado pela junta de saúde mental de Aspen e entrou para um programa intenso de reabilitação. Sob a tutela da irmã, consultou uma série de psiquiatras no Centro de Depressão da Universidade do Colorado. Os especialistas não tiveram a menor dificuldade em diagnosticar o problema de Michael. Ele tinha vários sintomas de TEPT: uma combinação de ansiedade e depressão severa, um profundo distanciamento do mundo, a tal “inundação” emocional, insônia, ausência de contato visual, memórias fixas numa espécie de filme de terror. Ele era um caso típico da literatura médica. CONHECI MICHAEL NUMA tarde enevoada e fria no inverno passado, quando ele estava em plena luta pela recuperação. Apesar de ainda ser uma persona non grata tanto no pronto-socorro do hospital de Aspen quanto na sala de patrulha de esqui da região, sua licença de paramédico havia sido restituída oficialmente e ele tinha um novo trabalho na patrulha de esqui de Snowmass.
Em um dia de folga, Michael foi me buscar no hotel. Lhotse choramingava no banco de trás enquanto andávamos por estradas cheias de neve até o quartel-general do departamento de resgate em montanha de Aspen, um chalé de madeira na avenida principal. Ali, sentamos em uma mesa num quartinho cheio de crampons, trenós, piquetas, capacetes, mochilas e incontáveis quilômetros de cordas enroladas. Era o tipo de sala de guerra onde Michael já havia preparados vários resgates – e um lugar onde ele e Lhotse obviamente sentiam-se em casa.
Mongo estava no 11o mês de terapia naquele momento. Ele coçou o cavanhaque e falou de sua dor com cuidadoso desapego. Ele ainda não estava livre do problema, mas sentia que estava no caminho. “Eu já recuperei uma certa alegria”, disse. “Estou correndo, escalando. Os slide shows pararam. Passei a olhar para cima novamente. Estou aqui.”
Ele já estava limpo fazia um ano. Estava usando o antidepressivo Zoloft e havia passado por muitos meses de terapia cognitivo-comportamental – sessões para “desembrulhar” memórias ruins e reaprender maneiras de pensar nos traumas. Ele também tentou técnicas mais esotéricas, como a uma tal de “dessensibilização e reprocessamento por movimentos oculares” (EMDR, na sigla em inglês), baseada em olhar para uma luz que se movimenta ritmadamente enquanto o paciente se concentra nas experiências traumáticas. A teoria por trás dessa terapia é que, quando a atividade neurológica muda de lado num ritmo constante, alguma coisa acontece na forma como o cérebro processa a memória.
“Esse tratamento ativa a conexão entre os lobos direito e esquerdo, de forma que as duas metades do cérebro começam a trabalhar juntas para processar o trauma”, diz Barbe Chambliss, psicoterapeuta de Carbondale.
Michael encontrou um poder semelhante de restauração em atividades físicas que envolvem um movimento rítmico que pode, fisicamente, imitar o EMDR. Muitos soldados diagnosticados com TEPT descobriram que exercícios de exercícios vigorosos como patinar no gelo ou sobre rodas pode ajudar a afastar os sintomas do transtorno. Para muitos pacientes de TEPT, entretanto, o esporte que mais ajuda parece ser o esqui cross-country. Michael dedicou-se ao esporte como se fosse uma vingança.
Na verdade, ele tornou o esqui cross-country a base de sua recuperação. Diz que o esporte estimula uma química cerebral totalmente diferente daquela produzidas durante outros esportes mais intensos com os quais estava acostumado – libera endorfina em vez de adrenalina. Quase todos os dias do inverno, Michael e Lhotse encararam os intermináveis quilômetros de trilhas que serpenteiam como vasos capilares pelas montanhas que circundam Aspen.
Foi naquelas longas horas de solidão ativa, ouvindo sua própria respiração e entrando num ritmo terapêutico, que Michael teve a ideia que lhe deu ânimo no último ano: o Projeto de Recuperação de Socorristas. Em novembro, ele lançou um novo site – frsos.com – cheio de informações a respeito de TEPT em civis: os sintomas e sinais do transtorno, tratamentos, links para psiquiatras, terapeutas, clínicas e hospitais espalhados dos EUA. “No mundo dos socorristas, não há dúvidas de que o TEPT é violento”, diz Michael.
“Quanto mais eu me aprofundo no tema, mais descubro gente que sofre com ele. É um iceberg – nós só estamos vendo a ponta. Precisamos criar uma nova cultura em que os socorristas civis possam falar livremente sobre a doença. E precisamos oferecer tratamentos para o TETP tão eficientes quanto os disponíveis para militares. Burocracias empresariais e governamentais não vão ajudar – precisamos nos ajudar mutuamente.”
Localmente, Michael começou um grupo de auto-ajuda para socorristas, uma reunião aberta de seus colegas realizada em Aspen toda terceira quinta-feira do mês. Umas poucas pessoas participaram no primeiro evento, em agosto, mas Michael diz que o número aumenta mensalmente. “Só é preciso aparecer com vontade de escutar e desprovido de qualquer tipo de julgamento.”
Finalmente, na tentativa de atrair mais atenção para sua iniciativa, Michael fez a coisa mais típica de Michael e de Aspen: planejou uma aventura ambiciosa. Começando na segunda semana de março de 2011, ele pretendia cruzar o Alasca de esqui, do sul ao norte, do oceano Pacífico ao oceano Glacial Ártico, de Valdez até a baía de Prudhoe. Lhotse, obviamente, iria a seu lado.
A caminhada de quase 1.500 quilômetros, patrocinada pela marca First Ascent, deveria durar 70 dias. Devido a condições climáticas e a sua saúde, Michael teve de cancelar o projeto no final de abril. Era mesmo uma ideia ridícula e, ao mesmo tempo, bela, que exigiria todas as habilidades organizacionais e logísticas de Michael. Trabalhando com socorristas e especialistas em busca e resgate no Alasca, ele vinha planejando o trajeto havia meses. Michael me disse: “Será uma longa caminhada para limpar minha mente e para que outras pessoas não tenham que passar pelo que passei”. AINDA NÃO ESTÁ CLARO o que Michael vai fazer da vida agora, após abortar a aventura. O que planeja um herói ferido depois que é atingido e não pode ir adiante? Para pagar as contas no ano passado, ele encarou vários trabalhos estranhos. Juntou feno numa fazenda, cuidou de adultos deficientes físicos num asilo, deu uma de zelador e até fez bico de treinador num hotel cinco estrelas de Aspen, aconselhando os hóspedes a como conseguir um abdômen tanquinho. Uma agência de publicidade o contratou para ser um “modelo maduro de fitness” na TV. Ainda que esses trabalhos pareçam abaixo do nível de dignidade para um homem com seu currículo e experiência, o fato é que ele é grato por isso.
O que quer que aconteça daqui para frente, Michael sabe que terá que se reinventar. Não pode mais voltar ao trabalho no pronto-socorro, e as missões de busca e resgate terão de ser menos frequentes. Ele já pensou em dar aulas ou viajar pelo país fazendo campanha sobre o TETP em civis. “Tudo bem retroceder um pouco”, diz Michael. “E tudo bem desistir. Foi o que eu aprendi. Eu não preciso mais ter o trabalho mais desafiador do mundo. Eu não quero mais ser aquele cara.”
Recentemente, Michael, Lhotse e eu passamos uma tarde juntos caminhando por Aspen. Cruzamos boutiques e sushi bars, contemplando a quantidade de cirurgias plásticas na multidão. Vir a público com seu TEPT foi difícil para Michael. Resgatar a si mesmo custou-lhe mais coragem do que qualquer outro salvamento de alto risco nas montanhas. Senti que ele ainda se preocupa um pouquinho em como as pessoas da cidade o veem agora. Passamos pelo quartel de bombeiros, onde as enormes portas da garagem estavam abertas. Dois jovens bombeiros levantaram e apertaram sua mão. “E aí, Mongo?”, saudaram. Michael abriu um imenso sorriso.
Passeamos até o parque para o encontro diário de Lhotse com a cachorrada da comunidade. Alguns dos seus amigos já estavam lá – uma labradora e um vira-latas –, e Lhotse saltitou pelo campo com os companheiros. Era uma tarde perfeita e cristalina, o tipo de dia que deixa Michael orgulhoso de viver em Aspen. “Sou o cara mais sortudo do mundo. Apesar de tudo, jamais abandonaria este lugar”, diz. Além do parque, Aspen ergue-se íngreme, com pistas de um verde esmeralda ziguezagueando através dos altos bosques. Os teleféricos seguem em direção ao topo das montanhas. Um solitário parapente dança no céu azul.
Então uma sirene perfura o silêncio. Uma ambulância guincha virando a esquina com suas luzes pulsantes. Passa rapidamente pelo parque e desaparece em busca de alguém em perigo. Mongo nem sequer registra o ruído. Ele simplesmente continua observando Lhotse – um cão resgatista ponta firme que hoje vive de férias. PROFISSÃO: PERIGO >> MERGULHADOR (Reportagem originalmente publicada na revista Go Outside de agosto de 2011)
O que faz: Explora cavernas submersas e o fundo dos oceanos em busca de material de pesquisa para cientistas e arqueólogos.
Pré-requisitos físicos: Boa capacidade pulmonar e força para nadar rápido e carregar objetos até a superfície.
Formação: Cursos especiais de mergulho para aprender todas as técnicas, procedimentos de emergência e manuseio de equipamentos.
Perigos da profissão: Traumas devido à pressão marítima, intoxicação por gases, desmaios. Morte por hipotermia, afogamento, colisão com pedras ou ataque de animal marinho. Há o risco de ficar preso em cavernas.
Nível de estresse: 5. O mergulho é conhecido como a segunda profissão mais perigosa do mundo, perdendo apenas para a de astronauta. O que faz: Estuda animais e plantas em lugares remotos e de difícil acesso para pesquisas de universidades, órgãos públicos ou empresas de consultoria ambiental. Pré-requisitos físicos: Resistência para suportar longas caminhadas. Fôlego em dia caso precise correr de um animal. Bom condicionamento para aguentar climas extremos de um deserto ou floresta tropical. Mergulhar e nadar bem, em casos de pesquisas de vida marinha.
Formação: Graduação, mestrado o doutorado em ciências biológicas. Cursos extracurriculares de mergulho, rapel ou escalada também são bem-vindos.
Perigos da profissão: É possível ser surpreendido por onça-pintada, mordido por cobra peçonhenta, beliscado por lagartas venenosas ou até intoxicado com fungos. Se a pesquisa ocorrer em países instáveis, há o risco de ser pego por milícias rebeldes.
Nível de estresse: 2 a 3, se a área não for habitada por animais selvagens e plantas venenosas. Pode chegar a 4 se o pesquisador focar o estudo em temas de mais risco, como gorilas nas violentas florestas do Congo.
>> FOTÓGRAFO DE CONFLITOS
Pré-requisitos físicos: Estar bem preparado para suportar horas em pé ou caminhando no deserto, na floresta ou entre multidões carregando colete, capacete e equipamento fotográfico que podem somar até 8 quilos. Disposição para aguentar dias inteiros sem comer ou dormir direito.
Formação: Cursos de sobrevivência para aprender a se orientar com bússolas ou GPS, a buscar alimentos quando estiver perdido e truques para despistar inimigos.
Perigos da profissão: Os riscos são parte da rotina. Além de tiros, há a possibilidade de ser sequestrado por talebans ou usado como moeda de troca por grupos rebeldes.
Nível de estresse: Máximo, nível 5. Fotógrafos de guerra vivem em constante tensão, pois podem ser atingidos por uma bomba ou uma bala a qualquer momento.
>> GUIA DE MONTANHA
O que faz: Conduz as pessoas por vias de montanhas, ajuda a cuidar de toda a logística da escalada (equipamento, vestuário e alimentação) e escolhe as rotas de acordo com a experiência do cliente.
Pré-requisitos físicos: Deve ser um exímio escalador e conhecer muito bem as técnicas e equipamentos do esporte. Preparo físico excelente para suportar dificuldades como frio, altitude e possíveis dificuldades dos clientes.
Formação: Além de todas as técnicas de escalada, é fundamental realizar curso de primeiros-socorros.
Perigos da profissão: Avalanches, tempestade de gelo, quedas em gretas escondidas pela neve, ventos fortes.
Nível de estresse: 4, principalmente em longas escaladas que duram semanas, como no Everest. >>GUIA DE RAFTING
O que faz: Acompanha turistas por rios e corredeiras.
Pré-requisitos físicos: Ser bom nadador, dominar as técnicas de descida de corredeira e de resgate em águas brancas, estar bem preparado fisicamente para remar (grandes empresas fazem treinamentos com os guias no começo da temporada para avaliar suas condições físicas), ter habilidade com cordas.
Formação: É necessário realizar cursos de capacitação para guia de rafting, outros de primeiro-socorros e resgate em águas brancas. Cursos de reciclagem a cada dois ou três anos são obrigatórios.
Perigos da profissão: Afogamentos, hipotermia, lesões e fraturas ósseas por impacto em pedras ou dentro do bote.
Nível de estresse: 2 a 3, dependendo das quedas do rio, condições climáticas e experiência dos clientes.
já se sentia melhor da depressão e dos traumas
NA FUNÇÃO: Michael em frente a uma das sedes do
departamento de resgates de Aspen
AMIGO FIEL: O regatista ao lado de seu cão, Lhotse, no topo do Independence Pass, no Colorado
Só em 1980 o termo “transtorno de estresse pós-traumático” entrou no dicionário da Sociedade Americana de Psiquiatria.
Era um show de horrores enchendo sua mente. As imagens não paravam. Ele reagia a elas com uma descarga de adrenalina, uma facada de medo, uma mistura complexa de emoções reais e presentes. Perdia contato visual com o que acontecia ao seu redor. Sua pressão subia de repente, surgiam intensos ataques de ansiedade. Ele não estava apenas se lembrando dos traumas, mas os revivendo. “As imagens estavam marcadas a ferro e fogo na minha mente”, conta Michael. “Elas estavam acontecendo logo ali, naquele momento. Meu subconsciente não sabia que não eram verdadeiras”.
BOAS RECORDAÇÕES: Michael em Aspen, em 1986; missão de resgate em 2006; nos anos de 1980
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