COM SUA VITÓRIA aparentemente fácil em meio ao calor úmido da maratona olímpica dos Jogos de Tóquio, Eliud Kipchoge encerrou o debate. Não há mais dúvidas de que ele é o Melhor de Todos os Tempos (Greatest of All Time, ou simplesmente GOAT) nessa distância. Como argumentar contra um cara que ganhou duas medalhas de ouro olímpicas, detém o recorde mundial oficial da maratona (2h01min39s) e percorreu 42,195 km em uma “corrida de exibição” em 1h59min40s? Não dá. Isso deixa no ar uma pergunta infinitamente intrigante: por quê? Por que Kipchoge é muito melhor do que todo mundo?
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Três décadas atrás, geneticistas esportivos como Claude Bouchard, do Heritage Family Study, acreditavam que a resposta estava próxima. Eles presumiram que o Projeto Genoma Humano havia aberto uma porta previamente fechada. Estavam seguros de que logo seriam capazes de identificar genes específicos ligados a tudo, desde o desempenho em sprints a recordes de maratona.
Só que isso não aconteceu. No lugar de uma resposta definitiva, os especialistas tiveram que reconhecer que o desempenho de elite é um fenômeno “multifatorial” – ou seja, algo entre extremamente complicado de ser decifrado e completamente desconhecido. A verdade é que ninguém pode dar conta de explicar por que Kipchoge é GOAT. Não há uma resposta simples nem algum ingrediente único. Caramba, não dá nem para saber se o sorriso dele na chegada é um esgar de dor ou uma expressão calculada em função de estudos que afirmam que sorrir ajuda você a correr melhor.
Mesmo os pesquisadores mais familiarizados com a fisiologia da maratona e o próprio Kipchoge ficam boquiabertos com suas realizações aparentemente atemporais, enquanto enumeram alguns dos fatores – de VO2 máximo a fibras musculares e biomecânica – que podem estar por trás de tal grandeza. Aqui temos uma revisão do que esses cientistas pensam a respeito.
TREINAMENTO: QUE DIFERENÇA FAZ?
Nós, corredores, somos obcecados por treinar, pois isso altera totalmente o desempenho de iniciantes e intermediários, o que não é necessariamente verdade para a elite. O treinamento no topo da pirâmide é relativamente semelhante, com quase todos registrando de 160 a 180 km por semana. Poucos se atrevem a fazer menos, e ninguém subiu ao pódio da maratona olímpica proclamando: “Devo tudo às minhas semanas de 240 km”. Os melhores encontram o equilíbrio perfeito entre o limite do suficiente e do exagero.
Até onde sabemos, Kipchoge treina longa e intensamente, provavelmente cerca de 180 km por semana. Ao mesmo tempo, diz que raramente vai além de 80% no treina- mento. Ele entende que o que importa é a corrida, não os treinos impressionantes do Instagram. E também sabe quando relaxar (vamos chegar lá).
O MODELO CLÁSSICO: VO2 MÁXIMO, LIMIAR DE LACTATO E ECONOMIA DE CORRIDA
Nos idos 1991, quando o recorde mundial da maratona era de 2h06min50s, o especialista em resistência da Mayo Clinic Michael Joyner escreveu um artigo propondo que era teoricamente possível cobrir 42,2 km em 1h57min58s (muitos de nós caímos na gargalhada com essa ideia). Michael disse que tal corredor precisaria de uma combinação de alto consumo de oxigênio, alto limiar de lactato e, especialmente, grande economia de corrida. “Essa análise sugere que melhorias substanciais no desempenho da maratona são ‘fisiologicamente’ possíveis”, escreveu ele na época. Hoje paramos de rir de Michael. Embora ele não tenha visto nenhum dos dados de laboratório de Kipchoge, observa: “Meu palpite é que ele se encaixa bem no meu modelo original”.
O especialista também mudou seu pensamento sobre os três grandes fatores. Certa vez, ele estimou o ritmo máximo do limiar de lactato de um maratonista em cerca de 85% do máximo. Ele agora acha que 90% é provável. O que significa acreditar ser possível alguém correr mais rápido do que 1h57min.
Andy Jones, da Inglaterra, famoso fisiologista e pesquisador do exercício, foi consultor da Nike no projeto Breaking2. Isso o torna um dos poucos conhecedores dos dados brutos de laboratório de Kipchoge. Mas ele não pode comentar sobre resultados específicos – isso violaria a ética médico-científica. Ainda assim, Andy pode fazer comentários gerais como: “Não é preciso dizer que a combinação dos três valores de Kipchoge foi uma das melhores entre os atletas que testamos”.
Várias décadas atrás, Andy também testou Paula Radcliffe anualmente para avaliar quaisquer mudanças em sua fisiologia. A maratonista estabeleceu um recorde mundial em 2003, rodando 2h15min25s, superado pela queniana Bridget Kosgei (2h14min04s). Andy observa que Paula e Kipchoge são muito semelhantes. “Eles têm todas as mesmas credenciais: alto VO2 máximo, alto limiar de lactato, ótima economia de corrida (e alta velocidade crítica)”, explica. “Paula, que corre balançando a cabeça, não parece tão suave quanto Kipchoge, mas era excepcionalmente econômica, então a cabeça não influenciou negativamente nisso”, conclui Andy.
VELOCIDADE CRÍTICA: NOVIDADE NA ÁREA
Andy gosta de uma nova métrica de resistência chamada velocidade crítica, e ele acha que é aqui, em especial, que Kipchoge brilha. A velocidade crítica é semelhante ao que se pode chamar de pace de limiar de lactato, ou pace de tempo. Quanto mais alta a velocidade crítica do maratonista, mais tempo ele pode correr muito rápido antes de quebrar (no site da Outside USA, Alex Hutchinson se aprofunda na velocidade crítica, incluindo o trabalho de Andy nessa área).
“Podemos dizer quase com certeza que a velocidade crítica de Kipchoge é maior do que a de qualquer outra pessoa”, assinalou Andy. “Assim, numa maratona para 2h10min, ele está bem mais abaixo de sua velocidade crítica do que outros atletas.” Em outras palavras, Kipchoge está abaixo do seu ritmo limite, da sua linha vermelha, então ele pode continuar.
Um aspecto importante da velocidade crítica é a forma como ela diminui depois de cerca de duas horas. Sua velocidade crítica pode ser 10 (não um número real, mas usado apenas para ilustração) no início de uma maratona, mas cai para 6 após duas horas. Portanto, quando você começa a correr em 8, fica confortável. Depois de 30 km, as coisas mudam. Se você tentar manter esse esforço de 8 a essa altura, estará forçando sua velocidade crítica de 6. Resultado: você quebra, se estrepa, tchau, tchau.
Andy ressalta que isso é, basicamente, o que aconteceu na maratona olímpica. Na primeira metade da corrida, Kipchoge teve bastante gente como companhia, incluindo o brasileiro Daniel do Nascimento, o Danielzinho, que chegou a liderar a prova e ainda cumprimentou o rei, que esbanjou simpatia. Mas todos desapareceram quando Kipchoge aumentou o ritmo entre os Km 30 e 35 (correndo 5 km em 14min28s). Ele ainda estava abaixo da sua velocidade crítica, enquanto os outros haviam ultrapassado a linha vermelha.
Analisando essa prova específica, Andy conseguiu observar que a velocidade crítica provavelmente se torna ainda mais importante em condições de calor, e ele mesmo responde a questão essencial: “O que determina a velocidade crítica? Essencialmente, é uma métrica que combina a taxa metabólica oxidativa sustentável mais alta de um atleta, principalmente relacionada à oxidação muscular (capacidade mitocondrial somada à capacidade cardiovascular de fornecer muito oxigênio aos músculos) e economia de corrida”.
MÚSCULO RESISTENTE À FADIGA: O QUARTO COMPONENTE
Em seu artigo inovador de 1991, Michael Joyner admitiu que havia mais coisas entre o céu e a terra do que ele ainda era capaz de explicar. Uma delas ficou conhecida como “resistência à fadiga muscular”. Será que alguns corredores têm músculos que simplesmente não ficam tão cansados quanto os seus e os da maioria? Michael se perguntou se alguns campeões de longa distância conseguem usar mais das fibras de contração rápida, normalmente reservadas aos velocistas. “E se, quando demandadas, essas fibras pudessem ser treinadas para disparar e se contrair repetidamente por várias horas sem fadiga?”, questionou ele.
Andy concorda que a resistência à fadiga pode ser uma contribuição importante, embora pouco compreendida, para a excelência da maratona. Esse seria o que ele chamou de um “quarto componente”, além dos três primeiros listados acima, e trouxe especulações sobre as principais medidas fisiológicas de Kipchoge, que talvez “não se deteriorem ao longo de uma maratona tanto quanto em outros atletas”.
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ANATOMIA: MENOS É MAIS
Quando os geneticistas e fisiologistas do exercício não conseguiram explicar completamente o desempenho extremo da maratona, outros cientistas entraram em ação. Eles mediram o retorno de energia do tendão calcâneo, a massa da perna (músculo da panturrilha), dedos curtos versus dedos longos e assim por diante, com resultados variados.
Temos evidências sólidas de que um tamanho corporal geral menor (altura, peso, IMC) leva a maratonas mais rápidos. Essa tabela mostra que os vencedores masculinos da maratona olímpica se agrupam em torno de uma altura de cerca de 1,67 metro, um peso em torno de 57kg e um IMC perto de 19.A tabela mostra Kipchoge pesando 5 kg a menos em 2021 do que cinco anos antes, o que parece improvável, mas seu tamanho corporal é semelhante – pequeno – a muitos outros grandes nomes da maratona.
Os melhores maratonistas tendem a ser menores porque isso melhora a eficiência, pode limitar as lesões e aumentar a termorregulação. Este último fator é especialmente importante nos Campeonatos Mundiais e Olimpíadas de verão.
Não se pode dizer que maratonistas altos não existam, mas são raros. Foi fácil localizar Galen Rupp na recente corrida olímpica porque ele tem 1,80 metro de altura, se sobressaindo à maioria de seus competidores. E o tetracampeão da Maratona de Boston, Robert Kipkoech Cheruiyot, possui 1,90 metro de altura. Eles são exceções à regra.
O espanhol Alejandro Lucia, que pesquisa resistência física, é bem conhecido por vários estudos clássicos de ciclistas do Tour de France e corredores de longa distância. Ele já colaborou com Andy e Michael. Em um estudo, Alejandro comparou corredores espanhóis de categoria mundial com eritreus. Os dois grupos tinham aproximadamente o mesmo VO2 máximo, mas os eritreus eram menores, com pernas mais longas e panturrilhas mais magras. Essa combinação deu a eles uma economia de corrida superior.
“Acredito que Kipchoge siga uma dieta excelente, rica em carboidratos, e tem pernas magras, como muitos quenianos”, diz Alejandro. “Isso significa que ele consegue correr em um ritmo que representa uma porcentagem menor de seu VO2 máximo do que os outros. Além disso, seu coração não sofre para fornecer sangue oxigenado aos músculos da perna em atividade, ao cérebro e à pele para termorregulação.”
RIGIDEZ DAS PERNAS: ISSO AUMENTA A VELOCIDADE?
“Quatro meses atrás, a Scientific Reports publicou um artigo do pesquisador de biomecânica da Universidade de Michigan Geoff Burns, em que ele fala da sua descoberta sobre corredores de elite correrem com pernas “mais rígidas” do que os altamente treinados, mas mais lentos. Geoff diz que “rigidez nas pernas é uma medida de como um corredor se comprime e descomprime enquanto está no solo”.
Um corpo correndo rígido é aquele que “quica” do chão sem primeiro se comprimir muito sob o impacto de cada passada (o oposto da corrida com corpo rígido é a corrida Groucho, em que os joelhos se dobram de forma exagerada). O quicar provém da grande elasticidade corporal nos tendões e ligamentos, bem como da tensão corporal total e da coordenação muscular.
Em um estudo futuro, Geoff e colaboradores da África do Sul compararam a rigidez das pernas de alguns corredores quenianos muito rápidos de 10 km (cerca de 28 minutos) com corredores recreativos (por volta de 43 minutos). Os quenianos tinham uma rigidez relativa muito maior (por peso corporal). Eles também tinham padrões de força que se assemelhavam mais a sistemas de salto simples e eficientes.
“Os quenianos coordenaram o corpo para se comportarem mais como sistemas simples de pula-pula”, diz Geoff. “Suspeito que Kipchoge faz o mesmo, orquestrando sua miríade de movimentos de corpo e membros para ter uma energia muito eficiente e coordenada no solo, saltando excepcionalmente bem.”
QUICAR? NÃO PARECE QUANDO VOCÊ OBSERVA A TÉCNICA DE KIPCHOGE
Um vídeo dos últimos minutos de sua maratona de 1h59min mostra como ele e outros corredores de ponta gastam pouca energia com saltos desnecessários. É assim que se vê uma rigidez maior – com menos compressão contra a força do solo –, característica comum da corrida eficiente. Um pula-pula, segundo Geoff, é o sistema “ideal” para reciclar perfeitamente toda a sua energia entre um salto e outro. E completa: “Nenhum corredor é um sistema perfeito, nem mesmo Kipchoge, mas aquele com uma ‘mola’ apropriadamente rígida e forças coordenadas perde menos energia no passo a passo”.
A VISÃO DE BILL RODGERS: ALTITUDE TEM PAPEL IMPORTANTE
Aquele que já foi o Rei das Ruas tem estudado os melhores desempenhos em maratonas desde que venceu a primeira de suas quatro maratonas de Boston em 1975. Bill também venceu quatro vezes em Nova York e tem 2h09min27s como seu melhor tempo. Para ele, o setor imobiliário sempre foi a melhor metáfora para explicar. “Acho que o mais importante é a localização”, diz ele, referindo-se ao nascimento e à vida de corredores da África Oriental em grandes altitudes.
“Outras circunstâncias, como o apoio financeiro, são muito relevantes nos países pobres”, continua. “Esses atletas não têm muitas oportunidades, e até prêmios modestos já fazem diferença na vida dos africanos orientais. Finalmente, acredito que Eliud Kipchoge seja simplesmente um corredor de aparência forte em todos os sentidos. Ele não é grande, mas é forte física e mentalmente. Acho que é essa combinação de qualidades que permite que ele continue vencendo.”
A ÚLTIMA FRONTEIRA: A MENTE DO MESTRE MARATONISTA
Embora não haja um teste simples para medir a mente do maratonista, todos que já conheceram Eliud Kipchoge ficaram impressionados com sua maneira zen de encarar a vida e os desafios. Tipo o Yoda. Ele até se parece com o Yoda, com seu rosto profundamente marcado pelo tempo. Mais importante, Kipchoge vive com simplicidade, abraça o trabalho árduo, estuda esportes e o sucesso em outras áreas e, aparentemente, conhece poucos medos quando se trata de ultrapassar os limites. Como ele gosta de dizer: “Nenhum humano é limitado”.
A tudo isso, posso acrescentar uma história pessoal. Em 2005, minha esposa e eu fazíamos parte de um pequeno grupo de corredores norte-americanos visitando
Rift Valley, no Quênia, e os campos de treinamento dos melhores atletas. Passamos uma tarde com o grupo de Eliud Kipchoge em Kaptagat (a 2.400 metros de altitude) e fizemos uma corrida de 6 km com os quenianos, seguida do chá obrigatório.
Minha esposa é corredora ávida, mas lenta, e se preocupava com o efeito dos morros e da altitude. Então perguntei se dentre os 10 ou 12 quenianos reunidos alguém estaria disposto a nos acompanhar em um pace de 6mim50s/km. Kipchoge ergueu a mão e deu um passo à frente, com um sorriso relaxado no rosto. Ele tinha apenas 20 anos e só foi correr sua primeira maratona oito anos depois. Ainda assim, no verão anterior, conseguiu correr 1 milha (1,6 km) em 3min50s (o equivalente a 1 km em 2min23s) e 5.000 metros em 12min46s. Talentoso? Pode-se dizer que sim.
O grupo partiu em um ritmo muito mais rápido, mas Kipchoge ficou ao nosso lado durante todo o caminho. Não acho que muitos outros atletas de elite conseguiriam ter feito isso. Eles são muito motivados, especialmente em seus anos de desenvolvimento. Mas Kipchoge era extraordinariamente sábio mesmo naquela época – ele sabia que uma corridinha lenta de 6 km não arruinaria sua carreira de corredor.
Não me lembro de nossa conversa naquela corrida, exceto por uma pergunta que fiz. Questionei se, ao competir com grandes etíopes como Haile Gebrselassie, ele se preocupava com o tiro final. Eliud Kipchoge deu uma risadinha. “Não, não me preocupo com isso”, respondeu. “Eu também sou bastante rápido.” De fato.
*Matéria originalmente publicada na Revista Go Outside 171.