Um cicloviajante profissional vai te convencer a encarar um pedal cênico e solitário pela Patagônia

“Em cima da bicicleta sobra tempo para filosofar”, diz o jornalista paulista Guilherme Cavallari, 53 anos, que durante seis meses (entre outubro de 2012 a março de 2013) pedalou 6 mil quilômetros pela Patagônia e Terra do Fogo, no sul do Chile e da Argentina.

Em sua longa jornada, Guilherme deu preferência a estradas de terra e, assim, atravessou a fronteira desses dois países por 16 vezes. Também desceu da bicicleta para percorrer trilhas selvagens por onde a bicicleta não passava, conheceu personagens locais históricos, atravessou rios e, em cima da bicicleta, claro, viajou pelos seus pensamentos mais verdadeiros.

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De volta ao Brasil, demorou dois anos para escrever o livro Transpatagônia – Pumas Não Comem Ciclistas, um relato profundo, sincero e detalhado de seus milhares de quilômetros rodados e que também é um belo recorte da Patagônia, uma das últimas regiões habitadas do planeta.

Transpatagônia é também o nome do premiado documentário dirigido por Cauê Steinberg (veja o trailer abaixo), sobre esta mesma viagem de Guilherme. O filme foi montado com imagens captadas do jornalista durante sua viagem.

MEDO DE QUÊ?: A Patagônia é segura, garante Guilherme (Fotos: Cortesia Gui Cavallari)

Desde 2013 morando numa fazenda em Gonçalves, Guilherme é um amante da Serra da Mantiqueira e da natureza. E obviamente que ele já conhecia a Patagônia de outros carnavais: através de sua editora, a Kalapalo, já lançou inclusive guias específicos para quem pretende se jogar pela Patagônia – a pé ou de bike. Por isso, pedimos para Guilherme, profundo conhecedor daquela região, nos dizer cinco motivos para conhecer um dos lugares mais lindos e selvagens da face da Terra.

Acampar em qualquer lugar da Patagônia

“Em qualquer lugar do mundo, está cada vez mais difícil parar na beira de um riacho, ao longo de uma trilha, no topo de uma montanha ou numa praia deserta para armar a barraca ou esticar o saco de dormir. Não está fácil ficar debaixo das estrelas e esquecer-se da vida. O mundo está todo retalhado em propriedades particulares. Parques nacionais têm regras sempre mais e mais rígidas (com alguma justiça) e existe sempre o medo de ser visitado no meio da noite por alguém, digamos, “suspeito”. Mas, em quase toda a Patagônia, acontece exatamente o contrário. Não consigo nem enumerar quantas noites já passei sozinho (ou bem acompanhado de minha esposa, Adriana) no meio da natureza – e sabendo que o ser humano mais próximo estava a dias de distância.”

Nadar entre trutas, orcas e icebergs


“A Patagônia e seu apêndice mais aquático, o arquipélago da Terra do Fogo, é abundante em corpos aquáticos. Com exceção da parte semiárida no lado Argentino da fronteira, na parte mais distante do Oceano Atlântico ou da Cordilheira dos Andes e da fronteira com o Chile, não falta água! Se você não tem medo de água fria – o que, confesso, não é meu caso! – ficar sem tomar banho é uma questão meramente pessoal. Lembro de um trekking selvagem que fiz ao longo do Estreito de Magalhães, na cidade de Punta Arenas, ao extremo sul da massa continental americana do Cabo Froward, quando vi um grupo de barbatanas estranhas cortando as águas do mar como adagas (aquelas espadas pontiagudas). Primeiro pensei que fossem os conhecidos Golfinhos de Magalhães, mas logo vi que eram simplesmente grandes demais. Eram baleias orcas! Uma família delas, que ‘pescava’ a 30 metros da praia. Não pensei em nadar naquele lugar naquele momento, óbvio, mas me contentei em fazer fotos e filmes e meditar sobre esse encontro inusitado e entusiasmante. Coisas corriqueiras na Patagônia.”

Conviver com gaúchos de verdade

“Na Patagônia argentina, eles se autodenominam gauchos, do lado chileno são huasos. Mas no final das contas são todos vaqueiros, domadores de cavalos, pastores de ovelhas, cavaleiros e pessoas simples, de vida dura e com um tipo de sabedoria que só o contato estreito e constante com a natureza sabe ensinar. Impossível lembrar de quantas vezes fui convidado a tomar erva-mate – o famoso chimarrão – com eles: aceitei um prato de comida, participei de um churrasco de ovelha, agradeci o abrigo do frio, da chuva e do vento dentro de algum galpão de tábuas e terminei ouvindo histórias fantásticas. Foi como viver episódios dos livros de Jack London ou Edward Abbey.”

Brigar com o vento

“O vento na Patagônia é mundialmente famoso. No verão, em especial, as lufadas que descem da Cordilheira dos Andes e correm livres pelo semiárido argentino chegam a tombar caminhões e ônibus. Também deformam árvores e arrancam ciclistas de cima de suas bicicletas – isso aconteceu comigo mais de uma vez. Mas o que seria o ‘vento’ se não uma demonstração da força indomável da natureza? Será um lembrete de nossa real posição no mundo e no universo? Encarado com humildade, o vento é um professor, e eu aprendi muito brigando com o vento patagônico.”

Curtir a solidão


“Num mundo habitado por 7 bilhões de pessoas, conseguir ficar realmente sozinho por alguns poucos dias, distante o suficiente da civilização para começar a sentir-se parte harmoniosa da natureza, é um privilégio raro. Não existem muitos lugares no globo terrestre onde até o céu está livre de aviões. Tem gente que considera a solidão um empecilho, perigo ou obstáculo. Para mim, é o inverso. Quer me ver ficar louco? Me coloque num ambiente cheio de gente. Eu me sinto mais solitário num estádio de futebol lotado do que sozinho numa praia deserta da Terra do Fogo, com vista para o Cabo Horn. É um tipo de solidão silenciosa enriquecedora.”