Afinal, por que há tão poucos surfistas negros?

Por Alexandra Iarussi, da revista Hardcore

surfistas negros
Montgomery Kaluhiokalani, o Buttons, clicado por Jeff Divine em 1974, no Havaí. Filho de pai negro com mãe polinésia, Buttons fez história em competições como Pipe Masters. 

“Se você observar os surfistas do circuito mundial, verás que o Tour é quase 100% branco. Há um surfista negro para cada 100 brancos surfando ou até mais.” A frase é do 11x campeão mundial Kelly Slater no documentário “White Wash”, lançado em 2012 pelo diretor Ted Wood. Afinal, você já parou para se perguntar por que há tão poucos surfistas negros?

Com narração do músico músico Ben Harper , “White Wash” (veja trailer abaixo) examina a história da consciência negra à medida que ela triunfa e evolui nas mentes dos surfistas negros.

 

Surfistas negros: repressão histórica

Alguns especialistas dizem que o esporte nasceu entre pescadores da polinésia ocidental, ao descobrirem que cavalgar uma onda era a forma mais rápida, e fácil, de voltar à terra firme. Outros estudiosos afirmam que o surf nasceu no litoral do Peru, muito antes de ser praticado pelos polinésios.

Parte primoridial da história do surf originou-se no Havaí.

O arquipélago ficou famoso pelas ondas a partir dos relatos de Thomas Cook, que descreveu havaianos como donos do “prazer supremo enquanto o homem era conduzido rápido e suavemente pelo mar”.

Os havaianos receberam os visitantes com estranheza. O excesso de roupa e a cútis branca cultivou a crença, entre os nativos, de que os ingleses eram fantasmas.

Nas décadas seguintes, mórmons catequizaram a população local e os proibiram de surfar ou realizar qualquer tradição.

Somente um século depois, californianos importariam o que era feito por havaianos, e o surf se tornaria uma forma de vida e também semente de uma grande indústria por vir.

Robert August e Mike Hynson, em cena do The Endless Summer, de Bruce Brown. Foto: Reprodução

A partir dos anos 1960, o cinema criou um estereótipo que eternizou a figura do surfista em cima do homem branco, louro e atlético. A ver o clássico The Endless Summer (1964), de Bruce Brown, que tinha Robert August e Mike Hynson como protagonistas.

Surfistas negros: primeiros relatos em Gana

Aliás, a primeira parada do filme acontece na África. Vale lembrar que ainda no século XVII, surgiram em Gana relatos de surfistas primitivos.

Quando o diretor Bruce Brown rodou a película na cidade de Accra, sequer imaginava que a praia de Elmina, a poucos quilômetros dali, havia sido palco da primeira história sobre surfe na África.

Os africanos surfavam com pranchas também. Representando a Corporação da Alemanha Ocidental em expedições de navegação no Oeste Africano no século 17, o capitão alemão Michael Hemmersam observou o surf dos africanos no Atlântico por volta de 1640.

Em 1679, o escritor Jean Barbot observou meninos e meninas que se apressavam para correr ondas em “pedaços de madeira ou pequenos fardos de juncos [gramíneas], e pegar velocidade abaixo de seus estômagos”, próximo a Elmina, Gana.

Se você não conhece a história dos africanos no surfe é porque parte dela, infelizmente, foi levada pelos navios negreiros.

Daí em diante, o jogo de difamação de escravagistas e racistas foi cruel a ponto de impedir negros no surfe.

As leis Jim Crown

“O fim da escravidão poderia soar como uma nova era. Assim como os brasileiros, afro-americanos saíram da vida de servidão direto para exclusão,” escreveu o jornalista Emanuel Araújo.

O novo lifestyle do surf chegava à Los Angeles como um oásis a uma nova nação que se erguia sobre a égide de uma vida livre. Só que essa liberdade, na prática, não funcionava igualmente para todos.

Entre 1870 e 1960, as leis Jim Crow mantiveram uma hierarquia racial cruel nos estados do sul dos EUA, contornando as proteções que tinham sido implementadas depois do fim da Guerra Civil – como a 15ª Emenda, que há 150 anos já concedia aos negros o direito ao voto.

As leis discriminatórias negavam os direitos aos negros, submetiam-nos à humilhação pública e perpetuavam a sua marginalização económica e educacional. Qualquer um que desafiasse a ordem social enfrentava menosprezo, assédio e assassinato.

Portanto, enquanto brancos podiam visitar as praias, clubes ou lagos, negros eram proibidos de utilizar qualquer um desses locais.

Nick Gabaldon
Nick Gabaldon. Foto: Reprodução

Nick Gabaldon: o primeiro surfista negro

Após a abolição da escravidão, apenas cinco praias em todos os Estados Unidos eram destinadas aos negros.

Inkwell, em Santa Monica, Los Angeles, na Califórnia, era uma delas. Eis que aparece Nick Gabaldon, um jovem marinheiro que surgiu como referência em meio à tensão racial.

Segundo o que publicou o historiador de surf Matt Warshawn na Enciclopédia do Surf, Nick Gabaldon foi o primeiro surfista afro-americano da história.

Para poder surfar em Malibu, Gabaldon remava regularmente 20 quilômetros para o norte. Para voltar para casa, remava de volta a mesma metragem.

Com o feito, ele desafiou as convenções nos Estados Unidos que institucionalmente impediram muitos negros de acessar o oceano.

Gabaldon seguiu sua paixão pelo surf em uma extensão que a maioria talvez nunca consideraria.

Sua história foi contada pelo diretor Richard Yelland em parceria com a Nike, no filme “12 Miles North: The Story of Nick Gabaldon”. Ele transcende a categoria de filme de surf e aborda questões sociais reais da vida real.

Em 5 de junho de 1951, Nick Gabaldon pegou sua última onda. Durante um swell de dois metros e meio, Gabaldon perdeu o controle de sua prancha e atingiu o píer de Malibu em um acidente fatal.

Como o diretor Richard Yelland disse, a história de Nick não é sobre surfar:

“É sobre humanidade. Trata-se de buscar inspiração em ambições e obstáculos extraordinários, como aqueles que Nick enfrentou, e aplicá-los à sua própria vida, o que quer que isso possa significar. Para Nick, o surf era um veículo para melhorar seu mundo. O oceano era seu meio, o que é adequado, porque o mar não conhece preconceitos; é o melhor equalizador. Como é uma quadra de basquete. Ou um campo de futebol. Ou, especialmente, nesse caso, uma ótima história.”