Por Letícia de Castro
TREKKINGS EXTREMOS EM TEMPERATURAS abaixo dos 35ºC negativos, escaladas desafiadoras por paredões de gelo traiçoeiros e trechos de natação em águas congelantes. Não se trata de nenhuma corrida de aventura em território polar, mas sim da mais ambiciosa expedição científica já realizada para documentar os efeitos das mudanças climáticas no ponto mais ao norte da Terra. Batizado de Catlin Arctic Survey, o projeto vem mostrando de forma espetacular como ciência e aventura, quando eficientemente unidas, podem conseguir dados essenciais para se entender de forma objetiva as consequências do aquecimento global nas regiões mais frias do planeta.
Para a empreitada, foi convocado um grupo multinacional de 31 pessoas, entre cientistas, administradores e, claro, aventureiros de ponta, que incluem montanhistas, caiaquistas e esquiadores. A equipe de exploradores é liderada pela britânica Ann Daniels, com um longo currículo em expedições pelos pontos mais frios do globo. Descrita pelo príncipe Charles, do Reino Unido, como um exemplo inspirador de determinação, Ann foi uma das primeiras mulheres da história a atingir os polos norte e sul. A seu lado, está o norte-americano Tyler Fisher, um esquiador de elite de cross-country com mais de dez anos de experiência na organização de educação experimental ao ar livre Outward Bound. Outro nome de responsa é o do diretor e fundador do projeto, Pen Hadow, um britânico que 2003 entrou para o Guinness como o primeiro homem a fazer um trekking solo, e sem reabastecimento via aérea, do Canadá ao Polo Norte Geográfico.
Munida desses talentosos aventureiros polares, a Caitlin Arctic Survey partiu em março para coletar material depositado em locais de dificílimo acesso. Tudo para pesquisar de que maneira as grandes quantidades de água que passaram a entrar no oceano Ártico com o aquecimento global podem impactar a chamada circulação termoalina, que percorre o planeta e influencia o clima no mundo todo.
Com a participação do cameraman inglês Phil Coates, que filmou recentemente uma série no Everest para o Discovery Channel, a turma de exploradores deu início, em março, a uma dura travessia. No dia 23 daquele mês, eles chegaram ao local que servirá de base para a expedição após atravessarem quase 124 quilômetros sob tempestades, fortes ventanias e muito frio. O trajeto durou dez dias em temperaturas de até 42º C negativos. “O mais difícil foi sobreviver ao clima. É terrível quando você fica feliz por estar a apenas 30º C negativos. Mesmo assim, conforme a temperatura subia um pouco, chegavam tempestades e ventanias”, conta Ann.
É nesta base de gelo, localizada na costa oeste da ilha Ellef Ringes, no território Nunavut, no Canadá, que ficam hospedados também os cientistas e outros membros da equipe. Enquanto os aventureiros exploram o gelo do Ártico, os pesquisadores analisam o material coletado e conduzem pesquisas em meio ao gelo, instalados em tendas de 4,5 metros por 2 metros projetadas especialmente para o frio polar. A vida na base é cheia de surpresas. No fim de março, a equipe de 12 pessoas encarou uma tempestade que durou quatro dias, com ventos de até 60 km/h. A temperatura despencou para 35º C negativos, obrigando os cientistas a interromper as atividades de pesquisa e leitura.
TUDO PELA CIÊNCIA: Cena da expeção Catlin, que está coletando material no Ártico para conhecer os efeitos do aquecimento global
ESTA É A TERCEIRA ETAPA da Catlin Arctic Survey, um mega-projeto que teve início em 2009, já com a participação de Ann Daniels e Pen Hadow. Apesar dos acalorados debates sobre mudanças climáticas, desde o começo os cientistas e exploradores sabiam que um ponto estava absolutamente claro em meio à polêmica: era preciso mais dados factuais para provar, ou derrubar, teorias a respeito do assunto. Naquele ano, o grupo percorreu 375 quilômetros em 73 dias, entre março e maio, com olhos voltados para uma questão ambiental de crucial importância: por quanto tempo ainda a camada de gelo permanente que existe no oceano Ártico continuaria existindo?
O estudo observou que as camadas de gelo flutuante ao norte do Mar de Beaufort tinham espessura média de 1,8 metro, muito mais finas do que em anos anteriores e extremamente vulneráveis ao derretimento no verão. Com isso, concluíram os cientistas, em um período de 20 anos o Ártico não terá gelo durante o verão, o que, no longo prazo, pode aumentar a temperatura da Terra, mudar os padrões de ventos nos oceanos e na atmosfera e aumentar a acidez das águas.
O projeto seguiu em frente, gerando dois filhotes. No ano passado, a segunda expedição investigou os efeitos do dióxido de carbono no Ártico, durante 60 dias de exploração no Polo Norte. Em 2011, o foco central são as consequências do derretimento de gelo do Ártico nas correntes marítimas.
Depois de pouco mais de uma semana na base de gelo, os exploradores partiram novamente para mais 185 quilômetros de aventura rumo à Groenlândia, no início de abril deste ano. Na segunda fase da expedição de 2011, com duração total de 45 dias, mais dados estão sendo coletados.
TRAMPO: Os exploradores do projeto colhem amostras profundas de gelo, que depois serão analisadas pela equipe de cientistas
O cientista polar australiano Adrian McCallum, especialista em glaciologia, tem a missão de perfurar diariamente pelo menos 1,85 metros de gelo até atingir a água do oceano para levantar informação sobre a temperatura, salinidade e direção das correntes. Os dados são armazenados em cartões de memória digitais, para depois serem encaminhados aos cientistas. “O mais difícil é conseguir cumprir o trabalho em condições tão duras de temperatura. Estamos lidando com água, e isso é sempre delicado”, diz Adrian. No momento em que respondia às perguntas da reportagem da Go Outside, a equipe estava no terceiro dia da jornada, a cerca de 33 quilômetros da base de gelo.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2011)
LENDA POLAR: Umas das primeiras mulheres a atingir os Polos Norte e Sul, Ann Daniels é lider da equipe de exploradores