Por Erika Sallum, de Paris*
A CENA É DE UMA beleza estonteante: as mais rápidas ciclistas de estrada da atualidade, todas juntas, alinhadas sob um pórtico de largada. Ao fundo, o Arco do Triunfo, brilhando na mais famosa avenida do mundo – a Champs-Élysées, em Paris. O dia ensolarado na capital francesa é de superlativos e marca não apenas a última etapa da competição de ciclismo masculina mais querida, o Tour de France, como representa também uma conquista imensurável para todas as mulheres que, como eu, amam bicicleta. Estamos em 24 de julho de 2016, a poucos segundos da largada da terceira edição do La Course by Le Tour de France, a versão feminina da Volta da França (cujo final, aliás, se dará nestes mesmos paralelepípedos, cerca de três horas depois do evento das meninas).
Convidada da Specialized, patrocinadora do La Course e fabricante de bikes bastante envolvida na missão de incentivar mais mulheres a pedalar, tenho passe livre para andar pelos bastidores da competição. Trailers e caminhões repletos de bicicletas supersônicas espalham-se pela Place de la Concorde. Ali, em um quadrilátero de poucas dezenas de metros quadrados, estão ícones como a holandesa Marianne Vos, três vezes campeã mundial de estrada e medalhista olímpica em Londres, a sensação francesa Pauline Ferrand-Prévot, craque do asfalto e das trilhas, e a britânica Dani King, estrela do ciclismo de pista. Não é todo dia que se presencia algo assim: as melhores ciclistas do planeta reunidas na avenida mais mítica desse esporte, no exato dia da última etapa da competição mais venerada da modalidade.
Tantas felizes coincidências não convergem à toa: ao mesmo tempo que celebra o ciclismo feminino, o La Course é prova viva do longo caminho que ainda é preciso percorrer para que homens e mulheres tenham as mesmas oportunidades na cena da bike, seja em provas profissionais ou amadoras e até nas ruas e bicicletarias perto da sua casa. A própria história do La Course é um pontual exemplo disso. O evento se originou da batalha de um grupo de ciclistas para que um Tour de France só delas voltasse a acontecer, após tímidas versões femininas da competição terem existido entre 1984 e 2009. O movimento, que contou com Marianne Vos entre suas líderes, produziu um abaixoassinado que, em dois dias, conseguiu 10 mil assinaturas e, após três meses, pulou para mais de 100 mil.
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Apesar de as atletas protestarem por um desafio de três semanas no mesmo percurso masculino, a empresa que organiza o Tour concordou apenas com uma competição de um dia, com 89 km e 13 voltas, em Paris. Bem longe do ideal e muito menos do que mereciam as atletas, mas ainda assim esplendoroso. Ah, como é fascinante o som dos pneus das bikes passando por aqueles pavês parisienses. “É um sonho nosso que enfim se torna realidade. Não é sempre que se pode competir em um lugar como este, diante de um público tão empolgado. Por isso o La Course é uma prova realmente especial”, disse Marianne, logo após chegar em 3o lugar na edição de 2016.
PULEMOS ALGUMAS semanas adiante, mais exatamente para o dia 7 de agosto, no Rio de Janeiro. Apesar de batalharem muito, as mesmas Marianne Vos e Pauline Ferrand-Prévot vão ficando para trás na etapa olímpica de ciclismo de estrada feminino. Perto do Forte de Copacabana, uma multidão aguarda a chegada das ciclistas, após um percurso considerado o mais duro da história dos Jogos. A holandesa Annemiek Adriana van Vleuten lidera a competição e precisa apenas descer o técnico trecho da Vista Chinesa e depois voar baixo em menos de 10 km de percurso plano até a linha de chegada. Porém um tombo de arrepiar acaba com o sonho de medalha da moça, que fica estatelada no asfalto enquanto os médicos se apressam para socorrê-la. A também holandesa Anna van der Breggen acaba vencendo, e a sensação que fica para quem estava presente naquele dia no Rio (e para quem assistia ao evento pela TV) é uma só: exatamente como o masculino, o ciclismo feminino deu um show de emoção, com direito a sangue, suor e lágrimas poucas vezes vistos em Olimpíadas.
Por essas e outras, marcas como a Specialized e a Oakley não decidiram investir milhares de dólares no La Course e em patrocínios para ciclistas mulheres apenas para dar uma forcinha ao esporte. Espertas, essas empresas pesquisaram, fizeram contas e projeções e chegaram a uma conclusão em comum – quem quiser expandir os negócios e lucrar nos próximos anos vai ter de aprender a falar diretamente com a mulherada. A Specialized não revela números exatos, mas confirma que as vendas de artigos outdoor para o público masculino têm decaído nos Estados Unidos, enquanto as moças estão comprando cada vez mais. Ou seja: a empresa que ainda não entendeu o poder de compra das mulheres verá suas vendas estagnarem ou até mesmo diminuirem. A indústria da corrida de rua já se ligou disso faz tempo – neste ano, por exemplo, pela primeira vez em sua história, a Meia Maratona do Rio teve mais mulheres inscritas que homens –, e assim se multiplicaram nos últimos anos equipamentos, vestuário e provas 100% focadas nas corredoras. Entretanto o mundo das bikes continua predominantemente masculino (e, na prática, bastante machista).
INFORMAÇÕES de mercado, porém, têm aos poucos mudado essa realidade. Há alguns anos a Specialized escolheu como uma de suas prioridades atender especificamente às mulheres, criando não apenas bikes feitas só para elas como uma série de acessórios femininos cheios de boas sacadas, a exemplo de seus capacetes com espaço para rabo de cavalo. Além do departamento de pesquisa e desenvolvimento, o marketing da fabricante norte-americana passou a olhar as ciclistas de um jeito mais inteligente. Contratou mais mulheres que entendem do assunto, passou a patrocinar provas femininas como o La Course e escolheu 80 ciclistas em 16 países para serem suas “embaixadoras”. São mulheres como a paulista Julia Favero, cujo badalado Instagram possui quase 42 mil seguidores, ávidos para ver suas belas imagens de pedais pelo Rio de Janeiro, onde mora. “Para você ter ideia da boa fase que as mulheres vivem no mundo das bikes, no ranking deste ano da Copa Rio de Janeiro de Ciclismo, que é uma das competições de ciclismo de estrada mais importantes do estado, dá para observar um aumento de 40% do número de competidoras amadoras em relação a 2015. Isso é muito significativo!”, diz Julia, que pedala desde a adolescência, mas só começou a treinar seriamente há três anos.
Em São Paulo, outra embaixadora da marca, a designer e ciclista Renata Mesquita, criou em 2015 o Pelotão das Minas, que organiza toda semana treinos de mulheres na estrada (e algumas vezes nas trilhas). “O crescimento na quantidade de mulheres pedalando foi nítido de dois ou três anos para cá. Eu lembro que, antigamente, ia treinar com os homens e quase sempre era a única mulher. Hoje acontece muito de ter um monte de mulheres e só um homem”, diz Renata, que começou a pedalar em 2010 e, após o fim de um relacionamento, viu na bike uma ferramenta fundamental para superar as tristezas e conhecer novas pessoas. “No pelotão, percebo que as meninas querem treinar, evoluir, participar de provas, se desafiar. Isso contribui para o empoderamento delas, para que se vejam mais fortes e independentes.”
Outra fabricante de bike que, pelo menos lá fora, tem investido bastante no público feminino é a taiwanesa Giant. Com seu braço feminino batizado de Liv, a marca também desenvolve bikes projetadas para o corpo da mulher, selecionou suas próprias embaixadoras, patrocina estrelas do nível de Marianne Vos e lançou como mote a frase “Actually, I can” (Na verdade, eu posso, em tradução livre), em uma referência de que as mulheres são, sim, tão capazes quanto o sexo oposto. São milhões de dólares envolvidos em engenharia, design e marketing, para que o mundo entenda de vez que a relação entre bikes e mulheres se consolidou e será cada vez mais forte.
Fora do circuito profissional do ciclismo de alta performance, milhares de garotas em uma infinidade de cidades pelo mundo também têm se unido para que seu lugar no universo das bicicletas se torne mais confortável e espaçoso. Da paixão pela bike, vem surgindo sites, blogs, provas e encontros entre mulheres de diferentes backgrounds. Nos Estados Unidos, um exemplo é o site-blog Pretty Damn Fast, que reúne histórias de pedaladas e projetos sobre mulheres e suas bikes. Já no Brasil, em moldes semelhantes, acaba de ser inaugurado o blog Canela, criado em julho pela advogada e ciclista Adriana Vojvodic. A ideia do blog surgiu a partir de um grupo de amigas de São Paulo que curtiam bike, batizado de Pedal das Minas. A evolução para um site se deu naturalmente, pouco tempo depois. “Fui sentindo falta de encontrar por aqui informações sobre o assunto. Havia muita coisa lá fora, mas nada no Brasil. Com o passar do tempo, percebi que seria legal reunir tudo o que estava rolando de bacana no país e no mundo, daí surgiu o blog”, diz ela, que pedala há menos de dois anos, mas tem descoberto e se aproximado da cena da bike com paixão surpreendente.
O AMOR PELA magrela também vem levando ao aparecimento de roupas e acessórios feitos por elas para elas. Isso é uma baita transformação, se considerarmos que menos de dez anos atrás as mulheres precisavam usar jerseys e bermudas masculinas, largas e de cores sofríveis, com raríssimas exceções. Hoje o cenário mudou bastante – no embalo da recente sofisticação do estilo em cima da bike, independentemente de gêneros. Há muito mais marcas de roupas de ciclismo que antes, e várias delas expandiram suas opções, enfocando em modelagens femininas. Um exemplo é a elegantíssima britânica Rapha, ou ainda a irreverente norte-americana Tenspeed Hero, com suas blusas curtinhas e multicoloridas cheias de bossa.
Além de um figurino sensacional, a Rapha promove, desde 2013, um evento ciclístico mundial que só neste ano reuniu 8.000 mulheres, o Women’s 100. Para incentivar as moças a pedalar cada vez mais longe (e fazer um belo marketing empresarial, claro), a marca propõe um desafio de 100 km. Basta se inscrever, registrar seu rolê no aplicativo Strava e participar. Programado este ano para o dia 17 de julho, a Rapha conclamou as ciclistas a chamarem as amigas para celebrarem juntas o pedal de 100 km. No total, foram 240 grupos em 40 países, da Tailândia e Coreia à França e Chile. O Brasil também entrou na onda, e em cidades como São Paulo lá foram as meninas madrugar para enfrentarem o treino. Na versão paulistana, por exemplo, Adriana, Renata e mais 33 amigas partiram de carro da capital às seis da matina para encarar as íngremes subidas da região de Cunha, na Serra da Mantiqueira. Foram oito horas até que todas completassem o Women’s 100, durante o qual cada uma deu força às outras colegas. Voltaram de Paraty (RJ) para casa às 20h, exaustas, porém realizadas.
Entre as grifes ciclísticas feitas 100% para mulheres, o destaque é a norteamericana Machines for Freedom, que surgiu há cerca de dois anos e logo se tornou referência para quem curte peças lindas e de alta performance. Fundada pela californiana Jenn Hannon, a Machines não vende apenas roupas como também organiza pedais, divulga relatos de ciclistas comuns, porém inspiradoras, e tem colaborado para solidificar uma aparência mais cool das garotas em cima das bikes. “A Machines nasceu da necessidade. Em pedais longos, enquanto meus amigos podiam escolher qual roupa usar, eu me via sem opção além de um kit ou dois. Percebi que havia um vácuo a ser preenchido nessa área. E sempre quis desenhar roupas de bike que me deixassem feliz em usar”, diz Jenn. “Iniciativas como a Machines ajudam a criar um ambiente em que dá para expandir os limites e resolver os problemas que as ciclistas enfrentam no universo da bike. Somos uma empresa criada por mulheres e 100% tocada por mulheres. Isso colabora para dar um frescor à indústria e para colocar a mulherada no mapa.”
EM SE TRATANDO de estilo e atitude de mulheres ciclistas, um “subgrupo” vem se revelando extremamente interessante na arte de sair do gueto e inspirar moças mundo afora. As garotas das provas de critério – que acontecem em circuitos curtos e fechados, organizados dentro de cidades e restritas a bikes fixas – transbordam charme com suas tatuagens, cabelos raspados e altas doses de coragem para enfrentar verdadeiras batalhas competitivas. Em “crits” como o Red Hook, com edições em Nova York, Londres, Barcelona e Milão, desfilam atletas que têm se tornado musas desse circuito meio underground e cujas mídias sociais atraem milhares de fãs.
São ciclistas como a norte-americana Kelli Samuelson, que estampa a capa desta edição da Bicycling Brasil. Além de atleta da equipe Team Cinelli, ela se desdobra em diversas funções ligadas à bike: trabalha na Zwift (empresa que desenvolveu uma espécie de “jogo” que une pessoas do mundo todo em treinos indoor), é embaixadora da Levi’s Commuter e criou e gerencia o LA Sweat, time de ciclistas mulheres que compete em provas fortes como o Tour de Utah. Dê uma olhada no site do LA Sweat (la-sweat.com) para entender a vibe desse grupo casca-grossa. Não há nomes de patrocinadores gritando no uniforme da equipe, que custeia parte de seus gastos com campanhas de financiamento coletivo (além de contar com apoiadores de peso como Cinelli, Castelli e Giro). “Eu sou 100% a favor da igualdade de direitos para homens e mulheres no esporte. E acredito piamente no poder de se comprar uma boa briga de forma sábia”, disse a moça ao site Pretty Damn Fast.
Há ainda uma nova geração de moçoilas desbravando trilhas de mountain bike, descendo downhills em provas de enduro e fazendo muitos caras por aí babarem com suas manobras de BMX. Sem contar as provas de ciclocross, esporte pouco conhecido por aqui, mas cujas competições são emocionantes ao mesclar bikes meio de estrada, meio de trilha em circuitos bem técnicos e enlameados. Na Europa, principalmente, as atletas de ciclocross possuem legiões de fãs. Em poucas palavras, elas não estão para brincadeira. Nem em cima, muito menos fora da bike. Aceite o fato, receba-as bem no seu pelotão e treine mais pesado – senão periga você sobrar lá atrás.
*A jornalista Erika Sallum viajou para Paris a convite da Specialized.
** Matéria publicada originalmente na Bicycling 6, de setembro/outubro de 2016.