Por Hendrik Coatzee
“ENQUANTO UMEDECIA MEUS LÁBIOS secos e checava se a saia do caiaque estava afixada direito, tive a sensação de que estava fazendo algo que não deveria. Forcei meu caminho através das dúvidas e quando finalmente cheguei ao final das corredeiras, fiquei feliz por tê-lo feito. No final das contas, era só paranoia. Duas noites depois, outra dúvida surgiu enquanto estava deitado na segurança do meu saco de dormir. Dessa vez era sobre uma travessia acima das quedas de Murchison.
Atribuí tudo ao excesso de café e ignorei o medo. Na manhã seguinte, minha mente estava ocupada com questões logísticas e mal pensei no assunto. Estava pronto pra entrar na água quando Ben [Stookesberry, um dos membros da expedição, junto com Chris Korbulic] me chamou para dar mais uma olhada na linha. Ou ela havia mudado, ou a tínhamos interpretado errado. De um ângulo diferente, ela parecia quase impossível. Eu dificilmente teria conseguido descê-la e as consequências poderiam ter sido fatais.
É difícil dizer a diferença entre o medo irracional e o instinto. Sorte de quem consegue. Muitas vezes não existe uma opção certa ou errada, só a opção mais segura. E se segurança fosse tudo que eu quisesse, teria ficado em casa, em Jinja [na Uganda, onde Hndrik morava há alguns anos]. Muitas vezes, quando se tentar fazer algo que ninguém fez, só há três resultados possíveis: sucesso, fracasso ou graves ferimentos – ou pior. A diferença entre os três vem muitas vezes de forças além do nosso controle.
Mas é essa a natureza da fera: o risco. Qualquer pessoa que é boa no que faz – marketing, esportes ou cortar cabelo – vai dizer que confia nos seus instintos. Não há explicações racionais para como as pessoas fazem a escolha certa com base em informações que não poderiam ter sabido de antemão, mas isso é porque vivemos em um mundo racional. Se você escolher acreditar que tudo que há para saber já é sabido, então essa é a tediosa verdade para você. Me deixe de fora dessa. As pessoas que conseguem ir além dos fatos, com sucesso, são as que se destacam em todo e qualquer campo.
Sempre há jeito de se afiar a habilidade de confiar em seus sentimentos. Para mim, descobri que a meditação é extremamente útil, mas ainda não encontrei uma resposta definitiva sobre quando é a hora de escolher os fatos em vez dos instintos. Mas, devido à necessidade, muitas vezes me vejo forçado a escolher mesmo assim. E nunca isso foi tão verdade quanto na última semana.
Nossa meta para a semana era realizar a primeira descida de um rio que forma a fronteira entre Congo, Ruanda e Burundi. Por causa de recentes atividades rebeldes, cortamos do plano os últimos 80 quilômetros entre Burundi e o Congo (eram águas calmas mesmo), e focamos nossa atenção no grande prêmio, 15 quilômetros do que a gente achava que poderia ser a corredeira mais íngreme e de maior volume na África (ou seja: mais água passando por mais pedras a uma velocidade maior). A única coisa em nosso favor é que a margem esquerda do rio pertencia a Ruanda (aula de política africana básica: Ruanda, uma fortaleza de relativa estabilidade do tamanho do País de Gales na África central, tem a população mais densa da África, e um exército sem senso de humor que chuta os traseiros de quem bem entende).
Depois de uma manhã frustrante tentando encontrar o lugar exato para entrar na corredeira na segunda de duas estações hidrelétricas, fomos detidos por um soldado que se recusou a nos deixar passar sem permissão. A gente adoraria ter permissão, mas ninguém quis assumir a responsabilidade por algo que não entendia. Sendo possivelmente o único país da África onde o dinheiro norte-americano não pode resolver todos os problemas – e ainda pode ofender alguém –, voltamos para o carro.
Depois de várias tentativas e dois dias de atraso, ainda não tínhamos idéia de quem tinha a autoridade para dar a tal permissão. Isso poderia ser razão para se desistir do projeto. Infelizmente, avançar na exploração dos rios na África central sempre requer um pouco de elasticidade no cumprimento de protocolos e a linha continua tão disforme quanto sempre. Com o projeto de uma nova represa e com uma região que provavelmente vai continuar no fio da navalha política, a gente chegou à conclusão que essa podia ser a última chance que qualquer pessoa teria… Além do fato de que a gente queria muito fazer descer aquele trecho.
Depois de sermos ignorados pelo prefeito, comecei a fazer planos alternativos enquanto esperava Ben e Chris voltarem de uma missão de reconhecimento com algumas motos alugadas. Eles relataram que os moradores locais pareciam bem calmos. Depois que vimos algumas fotos tiradas da beirada de um cânion maravilhoso com corredeiras monstruosas, o desejo tomou o lugar do bom senso mais uma vez. Ben estava afim e o Chris estava na dúvida.
Como líder, a decisão final seria minha, mas eu não queria tomar aquela decisão. A gente ainda tinha pouca informação sobre o que tinha pela frente. Nosso maior aliado, o poderoso exército ruandense, tinha se tornado um obstáculo a ser evitado. A reação que eles teriam se nos encontrassem em uma região sensível com mochilas cheias de câmeras e sem documentação oficial não seria das mais amistosas. Se a gente fosse pego, estaria por nossa própria conta, sem poder usar os nossos ‘amigos verdes’. Mesmo com tudo isso, fiquei surpreso ao perceber que ainda assim queria tentar.
O rio e a região já seriam um belo desafio sob qualquer circunstância. Com o elemento adicional de fazer isso sem permissão, a gente sabia que estava no limite, talvez até além dele, e nem tínhamos começado. Prometemos a nós mesmo que se surgissem mais complicações, a gente ia desistir, arrumar nossas coisas e ir para a casa. O plano era simples: íamos cair na água e descer com calma e o mais longe possível do soldado que tinha nos parado. Infelizmente, o único ponto de entrada que conseguimos encontrar ficava ao alcance visual da tal represa. Assim que caímos na água pudemos ver as pessoas de olho na gente de lá.
Esse deveria ter sido o final da viagem, mas me surpreendi de novo com o fato de termos decidido com tanta facilidade descer a primeira queda e ver o que acontecia. O rio estava lindo, mas eu já tinha dado as costas à beleza por muito menos e, do ponto de vista racional, era isso que devia ter feito naquela hora. Minha mente estava a mil com a decisão, as repercussões e as consequências, mas, estranhamente, por dentro parecia tudo certo. Por isso fomos em frente.
A primeira corredeira durou cinco minutos. Depois dela, ficamos parados alguns minutos esperando a merda bater no ventilador; como isso não aconteceu, descemos mais uma, depois outra e outra. As corredeiras eram exatamente o que tínhamos sonhado e mais um pouco. Elas fluíam de uma para outra em ininterrupta continuidade.
A nossa desconfiança dos moradores locais diminuiu conforme uma multidão cada vez maior torcia por nós e nos encorajava em nossa rota. Quando perceberam o que aqueles barquinhos de plástico podiam fazer, começaram até a sugerir como atacar os futuros obstáculos. Eu achava que já tinha estado na maioria das grandes gargantas da África, mas, na verdade, só estive nas mais conhecidas. Estar no meio de algo desse tamanho, quase desconhecido, valeu cada gota de suor, cada viagem de ônibus, cada cidade de fronteira isolada infestada de mosquitos na qual investi o tempo da minha vida. Pequenos diante das montanhas verdejantes se erguendo a até um quilômetro de altura sobre nós, avançamos cada vez mais profundamente pelo rio, atentos a problemas nas margens, com cada metro de seu impiedoso desnível.
Só precisamos carregar os caiaques uma vez no primeiro dia. Nós três logo nos encaixamos em nossos papéis, pulando carniça, filmando e explorando, sem precisarmos combinar nada. De olho uns nos outros no vale estreito, mas quase sem conversar, com o som do rio forte e confortável sobre nós, interrompido apenas de vez em quando por curtas frases de admiração.
Passamos a noite no topo de um penhasco, caminhando de vez em quando para observar a lua cheia e a silhueta das montanhas sobrepostas atrás de nós, erguendo-se com o sol que assinalava outro grande dia.
Logo depois de nosso acampamento, mudei minha linha para acomodar a câmera, cometendo o erro primário de não fazer antes um reconhecimento – e paguei o preço. À frente dos caras, sabendo que nadar não era uma opção, agüentei a pancadaria. Mas ser jogado por aí como uma boneca de pano em um caiaque completamente carregado é uma experiência que achei bem desprazerosa.
Surgiram mais trechos em que precisamos fazer portagem no segundo dia, no qual eu tive que me esforçar para lidar com as reações incomuns de um caiaque carregado, e acabei sendo rápido demais ou lento demais a maior parte do dia. Às vezes ficava irritado, às vezes assustado, mas na maior parte do tempo eu não sairia dali por nada.
Para evitar que soldados nos vissem, deixamos o rio na última grande corredeira. Um exército de carregadores improvisados estava ansioso para tirar nossos caiaques da água em um trecho que parecia ser bem desafiador. Um pouco à frente, caiu uma tempestade, soltando uma cortina de água pelo vale. Enquanto as gotas quentes e pesadas caíam sobre nós, ficamos de pé em uma colina desconhecida no coração da África, e pelo menos uma vez meu coração e minha mente estavam de acordo. Eu nunca viveria um dia melhor que aquele.”
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de Janeiro de 2011)
LIVRE: O sul-africano não tinha posses para poder se aventurar com toda a liberdade pelo mundo
ÚLTIMOS MOMENTOS: Essa imagem foi postada junto com o texto dessa matéria no blog de Hendrik