Por Maria Clara Vergueiro
“DUAS SEMANAS DEPOIS DE INICIADA A VIAGEM, enquanto eu cortava degraus em uma muralha de pedra íngreme, tive a sensação de que minha mochila colossal estava comprimindo minha espinha e esmagando meus órgãos internos. A tira que passava sobre meu peito me sufocava enquanto eu respirava com dificuldade o ar de oxigênio escasso e, a cada passo exaustivo, tinha a impressão de escorregar 60 centímetros a cada 30 que avançava. No caminho de volta, depois de ter deixado uma carga de equipamento em um acampamento mais elevado, escorreguei várias vezes nos profundos buracos congelados que haviam sido deixados pelas botas ao longo da trilha, meus tornozelo e joelhos retorcendo-se em ângulos bizarros. Cambaleei de volta para o nosso acampamento, instalado a 5.350 metros de altura, e atirei-me na neve, do lado de fora da tenda, totalmente esgotado. Tonto e nauseado, vomitei na neve, com lágrimas brotando dos meus olhos. Honestamente, não tinha certeza se teria a energia necessária para acordar na manhã seguinte e fazer tudo aquilo outra vez.”
Você pode até ter passado por situações parecidas com esta, descrita por Erik Weihenmayer no livro As Vantagens da Adversidade (Ed. Martins Fontes, 2008). O que talvez você nunca tenha experimentado é aventurar-se neste grau, só que de olhos vendados, com uma das pernas amarradas ou usando apenas uma das mãos. Erik teve os olhos “vendados” aos 13 anos, quando uma doença degenerativa na retina o deixou completamente cego. Não muito tempo depois, ele experimentou a escalada e dali em diante decidiu dedicar a vida a subir as montanhas mais altas do mundo. Em setembro de 2002, ele se tornou o primeiro (e até agora, único) homem cego a escalar os sete cumes mais altos da Terra.
Enquanto Erik pensa nas próximas empreitadas, a ultramaratonista norte-americana Amy Palmiero encarava mais uma prova, desta vez atravessando a Califórnia, nos Estados Unidos. A Western States 100 Mile Ultra Marathon é conhecida como uma das provas mais duras do mundo. Amy correu cerca de 161 quilômetros em trilhas que vão de Squaw Valley a Auburn – mais ou menos 24 horas sem parar. A prótese de corrida que ela usou na perna esquerda é apenas um detalhe. Em 2004, na sua primeira investida numa maratona, dez anos depois do acidente que a obrigou a rever sua maneira de fazer esporte, Amy levou o segundo lugar.
Exemplos como esses, e como os que você vai conhecer a seguir, nos levam a repensar padrões, lógicas e, principalmente, limites. Se o esporte é por excelência o lugar da superação, ele encontra sua forma mais pura nos atletas que mostramos nesta reportagem, de quem são exigidas doses ainda maiores de determinação, coragem e fé na própria capacidade para praticar a modalidade que amam. Sem medo de perder nem tempo para sofrer, eles descobriram uma forma diferente de transpor deficiências e desafiar-se fisicamente, usando a natureza como aliada para descobrir novos caminhos e possibilidades.
AMY PALMIERO, 43 ANOS, ULTRAMARATONISTA
Deficiência: amputada abaixo do joelho
Eficiência: resistência
“Por causa da minha experiência sei que não temos segunda chance para viver as coisas.”
PERDAS E DANOS
“Eu sempre fui atleta, desde os tempos de escola. Num acidente de moto, tive a perna esmagada. Depois de três meses e vinte e cinco cirurgias, amputaram a minha perna esquerda abaixo do joelho.”
SUPERAÇÃO
“Todos encaram algum tipo de desafio na vida. No caso dos amputados que conheci, o esporte funciona para trazer um senso de moving on, de continuar seguindo em frente todos os dias, apesar das dificuldades. E isso serve para qualquer pessoa, no esporte e na vida. Quando entrei em contato com crianças amputadas, vi o quanto o esporte tinha me dado confiança. Recentemente, uma menina que estava escalando uma montanha comigo [a norte-americana Amy trabalha como técnica na ONG Step Ahead, em Nova York, onde ela mora] queria desistir da escalada. Ela estava cansada, não gostava muito daquilo e me disse que não daria mais nenhum passo. Forcei um pouco a barra dizendo que ela poderia parar se desse mais cinco passos. Ela ficou muito brava, demorou cerca de meia hora, mas deu os cinco passos. Quando chegamos lá embaixo, ela percebeu o valor daqueles cinco passos. Aprendeu que dá para ir sempre um pouco mais longe, ganhou confiança, ficou mais forte. Essa confiança ninguém tira dela. Em abril deste ano ganhei o prêmio de atleta do ano da USATF [USA Track and Field, principal órgão oficial dos esportes de aventura nos Estados Unidos]. Fiquei muito honrada por ser a atleta escolhida para representar a ultramaratona. Sinto que todos os que me ajudaram ganharam comigo. Nada do que faço eu faço sozinha.”
ARMAS SECRETAS
“A experiência me ajuda muito no esporte. Sei que tive uma segunda chance, por isso dou o máximo de mim, porque a gente nunca sabe se vai ter outra chance. A corrida é a parte do triathlon em que me sinto mais à vontade. Sempre fui boa corredora e tenho uma facilidade natural para a corrida e características físicas a meu favor. Meu pai era levantador de peso e sempre me estimulou a praticar esportes. Uso uma prótese para correr, outra para pedalar e uma terceira para o dia a dia. Quando estou numa prova, tenho apenas equipamentos diferentes. Dá pra ser competitivo da mesma maneira que os atletas comuns.”
À FLOR DA PELE
“Quando estou nadando, correndo e pedalando numa prova, não me sinto exatamente no céu, porque estou competindo, como todo mundo. Mas fico muito orgulhosa de mim mesma por nunca desistir e espero estar, naquele momento, ajudando outras pessoas. A melhor coisa de treinar é saber que vou sair de lá ainda mais forte.”
ELIZIÁRIO DOS SANTOS “MOTORZINHO”, 54, TRIATLETA
Deficiência: lesado medular
Eficiência: carisma
“Não interessava quando eu ia chegar, mas sim que eu ia chegar.”
PERDAS E DANOS
“Meu apelido, Motorzinho, veio dos meus tempos de corrida de rua. Comecei a correr incentivado por alguns amigos que me convidavam para fazer cooper, como a gente chamava a corrida na época. Na primeira vez que corri, disparei na frente de todo mundo. Aí virei Motorzinho. Comecei a treinar em pista de atletismo, cheguei a fazer nove maratonas e uma ultramaratona em São Paulo, de 100 quilômetros. Eu já estava há quase 10 anos no pedestrianismo, tinha 35 anos, quando a loja onde eu trabalhava foi invadida e o assaltante disparou cinco tiros em mim. Perdi quase todo o sangue do corpo, fiquei oito meses internado e demorei dois anos para voltar para o esporte. As pessoas – amigos, parentes, comunidade – se mobilizaram, me tiraram do hospital onde eu estava internado e me transferiram para um particular, pagando todas as despesas. Com o dinheiro que arrecadaram em campanhas, foi possível até contratar quatro enfermeiros que se revezavam de seis em seis horas, me movimentando a cada meia hora, fazendo massagens, dando banho. Foi fundamental para a minha recuperação. Dor eu sinto até hoje e todo dia, porque tenho uma bala alojada entre a 4ª e a 5ª vértebras, mas já me acostumei.”
SUPERAÇÃO
“Recomecei a competir com a cadeira convencional mesmo e logo decidi que ia subir a Ilha Porchat [um dos pontos mais altos de São Vicente, litoral paulista, onde ele mora]. A primeira vez que botei na cabeça que ia ficar no esporte adaptado, fui pra lá. Não interessava quando eu ia chegar, mas eu ia chegar. Há 15 anos não havia essa acessibilidade de hoje, eu disputava espaço com os carros na rua, com os pedestres. Qualquer batidinha eu caía, não tinha equilíbrio de tronco. Adquiri esse equilíbrio no esporte, principalmente na água. Aprendi a nadar e comecei a fazer biathlon em 1998. A natação é o mais difícil para mim. Depois disso eu passei para o triathlon e, em 2003, fiz meu primeiro IronMan, em Florianópolis. Não consegui completar os dois primeiros que participei, só os últimos cinco. Todo o público me apoia muito, acompanha a minha trajetória. Sei que já inspirei muita gente que nem pensava em se superar. As pessoas vêm falar comigo, me dão os parabéns e nos anos seguintes me contam como passaram a fazer alguma atividade física por causa do meu exemplo. Meu sonho é ir para o IronMan do Havaí.”
ARMAS SECRETAS
“Meus equipamentos são bem ultrapassados, na verdade. Uso uma cadeira convencional para meus deslocamentos diários, outra para pedalar e uma de atletismo para as provas de corrida. A convencional é um pouco menor que a de corrida, até por conta da minha estatura [Motorzinho mede 1,64 metro e pesa 46 quilos]. A cadeira de ciclismo é outra coisa, tem corrente, pé de vela. A que uso nas provas de corrida é mais longa e tem uma aerodinâmica específica, com aro de impulsão. Estou trocando essa, que uso desde 2000, por uma americana com freio. A minha atual é de fundo de quintal, foi feita por um cara em Goiânia que fazia cadeiras comuns e copiou um modelo americano para mim, com algumas peças importadas. A nova vai custar US$ 3.000, mas vai fazer bastante diferença na minha performance. O atleta de corrida e o cadeirante podem ter um bom desempenho com um equipamento de qualidade e treino. Acordo três vezes por semana às 3h20 para conseguir sair de casa às 5h30 e volto pra casa só depois do almoço. Quando a gente se propõe a fazer algo grandioso, não vê mais nada. Tem que ter cabeça, coração e auto-estima; sem isso não dá.”
À FLOR DA PELE
“Na última edição do Iron Man Brasil, minha oitava participação, consegui quebrar meu próprio recorde na água. Quando saí do mar e vi no meu relógio o tempo de 1h23, fiquei muito feliz. Qualquer tempo abaixo dos anteriores é uma felicidade enorme.”
PHILIPPE RIBIÈRE, 39, ESCALADOR
Deficiência: Síndrome de Rubinstein-Taybi
Eficiência: ser livre
“A deficiência é o melhor presente para aceitar derrotas e atingir a realidade da vida.”
PERDAS E DANOS
“Minha síndrome é consequência dos remédios que minha mãe biológica tomava [a Síndrome de Rubinstein é rara, provoca a má formação das mãos, pés e articulações, além de retardo mental que varia de caso a caso]. Aos 4 anos fui adotado e vi imediatamente que meus pais não eram meus. Eles nunca quiseram me botar numa escola especial porque achavam que seria melhor para mim que eu fosse como você, por exemplo. Por isso, eu não pensava que era deficiente. Um dia recebi uma correspondência do governo francês dizendo: VOCÊ É DEFICIENTE. Ninguém nunca havia me dito isso e fiquei muito decepcionado em descobrir a verdade. Por isso a escalada salvou minha vida para sempre, para que eu pudesse crescer gostando dessa vida e aceitar o meu corpo e a minha mente como eles são. Hoje, sou muito orgulhoso de ser escalador profissional, cantor, videomaker, malabarista e homem.”
SUPERAÇÃO
“Comecei a escalar em 1994 num acampamento de verão, cheio de atividades, caiaque, bike, escalada. Tinha 15 anos e queria muito andar de bike, por isso quando voltei para casa fui me registrar num clube. Mas o cara responsável me olhou como se eu fosse um ET e, sem pensar que eu pudesse ser apto a fazer aquilo, disse não. Naquele momento não fui capaz de responder nada. Mas o destino faz as coisas tão bem, que tive a chance de entrar para um clube de escalada. O treinador responsável me propôs um teste e fiz o meu primeiro 7b com sapatos normais e na pedra mesmo. Depois de um ano, o treinador perguntou se a gente queria competir. Eu fiquei com medo, porque sabia que não tinha o mesmo nível dos outros. Mas fui e fiquei em 3º lugar. Saí de lá muito orgulhoso e voltei para casa com um troféu. Em 2003, o manager da Petzl ficou impressionado com a minha performance no campeonato mundial e me chamou para conversar. Eu queria criar uma categoria especial, mas há muitas deficiências diferentes, então ficava complicado. Com isso, ele acabou me incluindo no time dos escaladores ‘normais’, onde estão nomes como Chris Sharma, Dave Graham, Liv Sansoz, Tony Lamiche. A partir daí passei a escalar com mais paixão, entusiasmo e explosão. Criei uma associação, a Handi-Grimpe, para organizar eventos que levem a escalada a outros deficientes. É uma maneira de devolver a consideração que têm por mim.”
ARMAS SECRETAS
“Gosto de tudo que desenvolve a minha imaginação. Quando estou no palco, cantando, o público me vê como um guerreiro, um poeta ou um xamã. Adoro isso e acho engraçado que eu possa fazer algo que aquelas pessoas também desejam e talvez não tenham coragem. Sou um homem livre e não tenho inveja de ninguém. Não sei exatamente quem eu sou, mas mantenho minha honestidade, sabe? A deficiência é o melhor presente para aceitar derrotas e atingir a realidade da vida. No ano passado fiz uma viagem pela Europa e fui buscar informações sobre as associações de deficientes pela França. Foi uma boa ideia para descobrir mais ou menos quem eu sou. E tem o meu anjo, um anjo de verdade que eu tenho.”
À FLOR DA PELE
“Uau! Nem consigo descrever isso, mas acho que quando estou lá em cima de uma parede ou de uma rocha me sinto um homem feliz, simplesmente amo estar ali.”
ANDRÉ CINTRA, 35, EMPRESÁRIO
Deficiência: amputado acima do joelho
Eficiência: equilíbrio
“Naquele momento veio para a mim a questão de não depender de ninguém nem de nada, não precisar de nenhum apoio.”
PERDAS E DANOS
“O acidente rolou em 1997, eu tinha 17 anos. Estava na moto conversando com um amigo que estava na garupa. Um carro me fechou, caí e bati numa placa de propaganda. Fui para um lado e minha perna para o outro. Quando levantei para pegar a moto, minha perna estava longe. É como uma alucinação. Fui até o hospital lúcido, só perdi a consciência quando cheguei lá. Nos primeiros três anos tive muita dor fantasma, do membro que você já não tem e que ainda dói. São dores terríveis. Fui descobrir depois que o nosso campo energético continua o mesmo, independente de se ter ou não membro físico. Neurologicamente, o cérebro ainda não entende que perdeu o membro e continua mandando impulso nervoso para lá. Sinto a perna até hoje. Consigo sentir os dedos do pé.”
SUPERAÇÃO
“Com um mês de amputação fui fazer rafting no Nepal com um grupo de dez amputados como eu [André é paulista]. Ali percebi que eu poderia levar uma vida normal. Depois disso, com a prótese, a questão passou a ser o domínio da mente: como fazer para que a mente dominasse o corpo e o levasse pra frente. O mais importante nesse processo é o aspecto psicológico e emocional. A prótese é uma questão mecânica. Depois do acidente, aos 21 anos, perdi meu pai e tive que assumir a família e a empresa dele que estava afundando. Virei um workaholic, perdi a namorada, os amigos, porque precisei aprender a fazer coisas que nunca tinha feito na vida. Em oito anos a empresa cresceu 1.700%. Olhar para essas transformações de um ângulo mais espiritual me trouxe paz. Eu acredito numa coisa chamada Maktub, que é uma espécie de livro da vida, que traz de um lado uma página do pré-destino, as suas probabilidades, e do outro uma página em branco para ser escrita. Se a gente não faz nada que interfira nas probabilidades, elas se concretizam. Se há interferência das nossas ações, aquilo pode ser transformado, modificado.”
ARMAS SECRETAS
“A prótese que uso no dia a dia é uma prótese alemã, eletrônica. Ela é programada pelo meu laptop para acompanhar a velocidade da outra perna. À noite eu a recarrego por um cabo USB no meu computador. Para andar de kite eu tive que pensar numa perna. As pernas que eu usava no começo para fazer kite não funcionavam, quebravam, eu as perdia no mar – perdi umas três pernas velejando. Agora fiz uma que flutua, se eu perder ela boia. As pessoas que faziam kite, que eram poucas na época em que comecei, me diziam: ‘legal sua força de vontade, mas não vai rolar, porque você não tem esse movimento do pé’. E eu só caía. As coisas só mudaram quando fiz uma prótese que fica arqueada, como as pernas com os joelhos semiflexionados, travada nessa posição. O movimento do tornozelo eu faço com a outra perna.”
À FLOR DA PELE
“Sempre fui ligado a esportes, sempre curti estar em contato com a natureza. Hoje, faço ioga, natação, squash, pedalo, velejo, faço kite. O kite é o meu preferido, me dá uma sensação incrível, de voar, estar ali só você e o mar, quando nem se vê mais o continente.”
RODRIGO FEOLA, 41, CICLISTA PARAOLÍMPICO
Deficiência: deficiente visual com baixa visão
Eficiência: coragem cega
“Eu nadava, pedalava e corria. Largava para a natação e nem estava vendo a boia.”
PERDAS E DANOS
“Nasci com palidez do nervo ótico. Minha visão não é distorcida nem desfocada, o campo de visão que é reduzido. O que uma pessoa comum enxerga a 100 metros eu enxergo a 15. Sou superadaptado, o que pega mesmo é a leitura. Nenhuma lente adianta porque a deficiência é atrás do nervo ótico, não na frente. Cirurgia, até agora, não adianta, porque não se opera o nervo, não dá para romper e ligar de novo depois. Meu dia a dia é cheio de riscos. Tenho várias cicatrizes, todas de um tombo só. Num campeonato mundial na Suíça, eu estava em sexto, caí a quinze metros da chegada, a 60 km/h.”
SUPERAÇÃO
“Comecei a fazer bicicross aos 6 anos. Eu era gordinho e atirado. Depois fiz parte de uma equipe de natação do Projeto Acqua, onde tive meu primeiro técnico. Quando fui para uma clínica de natação na Flórida, vi uma prova de triathlon e fiquei louco. Resolvi comprar uma bicicleta, todo mundo dizendo que eu era louco de andar de bike na cidade. De 1994 a 2004 fiquei no triathlon e conquistei vários títulos como amador. Sempre fui muito forte no ciclismo, liderava prova, só que sempre errava o caminho [risos]. Nadava, pedalava e corria, largava para a natação e nem via a boia, ia no bolo mesmo. Começou então a surgir possibilidades de crescimento como atleta no ciclismo. Fiz a minha primeira seletiva em 2005 para uma prova internacional, ganhei e comecei a correr provas fora do país. No Troféu Brasil, também em 2005, criei a categoria Deficiente Visual no triathlon. Fui campeão brasileiro de ciclismo paraolímpico em 2006, 2007, 2008 e 2009.”
ARMAS SECRETAS
“Tenho lupas espalhadas por todos os lugares, onde vou levo uma. Sou malucão, faço tudo, não tem tempo ruim. Vou ao cinema sem conseguir ler nada, mas vou. E escuto tudo, até me atrapalha. No meu trabalho ninguém sabe que acordo às 5h da manhã para treinar. Pedalo sozinho e na bicicleta para cicloturismo [uma tandem], que acabou virando bicicleta paraolímpica para quem tem deficiência visual. Nas competições só posso usar essa, mas nos treinos, se tiver não tiver alguém para andar comigo, vou sozinho. Passei por várias já, caminhão lambendo, todo dia era ‘quase’. Chegava em casa rezando por não ter sido atropelado. Mas não penso no risco, não passa pela minha cabeça.”
À FLOR DA PELE
“Me sinto um pássaro quando pedalo, choro de emoção. O movimento, o vento, a possibilidade de passar por qualquer lugar. Saio da minha casa de bike, desço a 9 de Julho até a Faria Lima e encontro o meu amigo na rua do Clube Pinheiros. Dali a gente pega a Marginal e cai na estrada, eu numa bike e ele em outra. Ele vai atrás de mim falando ‘olha isso’, ‘olha aquilo’. Ele fica aflito, já me viu cair várias vezes. Andar na estrada do Romeiros, beirando o trecho limpo do rio Tietê, passando pelas cidades do interior, tão perto de São Paulo, eu acho o máximo. Aí, na volta, passo pela rodovia dos Bandeirantes, eu lá no acostamento, do lado dos carros, viajando de bicicleta. É incrível.”
HENRIQUE SARAIVA, 37, KNEE SURFER, fundador da ONG Adaptsurfe
Deficiência: paraplegia
Eficiência: empreender o bem
“Não tenho nenhum compromisso em surfar melhor ou pior que ninguém, nem mais ou menos onda. Basta apenas estar ali e curtir aquele momento.”
PERDAS E DANOS
“Dia 3 de dezembro de 1997, aos 18 anos, fui assaltado quando saía de casa de bicicleta, na Lagoa, no Rio de Janeiro. Sem reagir, levei um tiro na barriga que se alojou na coluna, região lombar. No mesmo momento perdi todos os movimentos e a sensibilidade abaixo da cintura. Sempre fui muito ativo, jogava futebol, tênis e surfava, e o que mais me incomodou foi a possibilidade de não voltar a fazer todas essas coisas, principalmente jogar bola com meus amigos. Os movimentos foram voltando aos poucos e em seis meses já estava andando de muletas, minha situação atual.”
SUPERAÇÃO
“Nunca pensei que teria que me readaptar à vida. Na verdade, achava que um dia tudo voltaria ao normal, que seria questão de tempo. Com o passar dos anos, fui percebendo que minha realidade era aquela e que dificilmente eu recuperaria a minha condição motora. Foi mais ou menos nessa época que conheci o surf de kneeboard, por um amigo, freesurfer profissional, o Marcos Sifu. Já tinha tentado surfar de bodyboard, mas foi péssimo para a coluna. Quando o Sifu comentou sobre o surf de joelhos achei que seria inviável. Mas ele me convenceu. Logo na primeira tentativa, ele me empurrou na onda, eu consegui dropar e fui reto. Gostei muito de estar ali e depois disso passei a surfar sempre. Estava me sentindo de volta no mar com os amigos, de igual pra igual, independente da minha condição física. O fato de estar praticando um esporte, me esforçando fisicamente, melhorou minha alimentação, o sono, a autoestima, a confiança, tudo.”
ARMAS SECRETAS
“Aprendi que a felicidade está dentro da gente. Já me senti um lixo, assim como já me senti a pessoa mais feliz do mundo, e nada disso teve a ver com minha condição física ou financeira. Então, quando estou me sentindo mal por algum motivo, não perco tempo pondo a culpa em fatores externos, procuro ser objetivo e trabalhar o que é preciso. Tenho sorte de ter uma família unida. Meus pais sempre foram grandes exemplos e me apoiaram nas minhas decisões. Isso foi fundamental, porque abandonei um emprego numa multinacional para me dedicar a um projeto pessoal com outros dois amigos, o Phelipe, fisioterapeuta, e a Luana, professora de educação física. Em 2007, a gente fundou a ADAPATSURF, uma associação sem fins lucrativos, que visa divulgar e difundir o surf adaptado, lutar pela melhoria na acessibilidade das praias e pela preservação do meio ambiente.”
À FLOR DA PELE
“Surfar pra mim é a melhor forma de me sentir livre. No mar não preciso de muletas. Sou só eu, a prancha e o mar. Não tenho nenhum compromisso em surfar melhor ou pior que ninguém, nem mais ou menos onda, basta apenas estar ali e curtir aquele momento.”
NELSON CARDONA, 53, ESCALADOR
Deficiência: amputado abaixo do joelho
Eficiência: transformar quedas em êxitos
“Não são os golpes nem as quedas que nos fazem fracassar, e sim a falta de vontade para seguir adiante.”
PERDAS E DANOS
“Estava me preparando para escalar o Everest no ano de 2007 em Ruin, na Colômbia. Numa parede de 18 metros, a 4.200 metros de altitude, tive um desmaio no vácuo que provocou fraturas múltiplas no meu corpo – cinco maxifaciais, uma exposta na tíbia e no perônio, encefalocranianas e minha pélvis se destroçou. Somando tudo isso, se configurou uma quadro clínico que me deixou à beira da morte. Quando cheguei ao hospital, os médicos disseram à minha mãe que o mais provável era que eu não sobrevivesse a tantas cirurgias. Depois, disseram que eu não voltaria a andar. Nove meses mais tarde e muitas cirurgias depois, fui voltando, mas meu pé direito não recuperou a funcionalidade. Decidi pela amputação, ou não poderia mais praticar esportes e voltar às montanhas.”
SUPERAÇÃO
“Quando encontrei a prótese certa para mim, decidi que estava na hora de assumir meu grande desafio que era escalar o Everest. Minha empresa, Epopeya, que se dedica a facilitar processos de desenvolvimento humano, foi minha grande aliada para realizar este sonho, tendo sido fundamental para levantar os recursos necessários (que na Colômbia, onde nasci e vivo, não são nada fácies de se conseguir) junto à iniciativa privada. Assim pudemos mostrar à Colômbia e ao mundo, no ultimo dia 17 de maio, às 11h20, hora do Nepal, a 8.850 metros, no cume do Everest, que ‘deficiência’ (discapacidad, em espanhol) é quando alguém diz: ‘não posso, não sou capaz, não tenho tempo, me falta dinheiro, é muito para mim etc.’ Eu sempre afirmo que não são os golpes nem as quedas que nos fazem fracassar, e sim a falta de vontade para seguir adiante. Um fracasso, uma derrota, são uma somatória de experiências que precedem o êxito e também fazem recordar que só o alcançam aqueles que fazem o que amam e que colocam todo coração e empenho.”
ARMAS SECRETAS
“Depois de investigar muito sobre a melhor prótese para os meus objetivos depois do acidente, descobri uma fábrica na Islândia que fabrica próteses para a América Latina. É uma prótese que me permite saltar e articular o pé em todas direções. Assim posso treinar, andar de bicicleta e caminhar nas montanhas.”
À FLOR DA PELE
“Quando cheguei ao cume do Everest tive a sensação de dever cumprido.”