Por Mario Mele
NA CAÇAMBA DE UM CAMINHÃO DO EXÉRCITO, cortando uma área de uso exclusivo militar no meio da floresta Amazônica, eu e mais quinze pessoas, entre jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas, chacoalhávamos em direção à área de transição do triathlon XTerra Amazon. Mesmo sem competir, eu podia sentir um pouco a adrenalina da prova mais insólita dos 16 anos de história do XTerra.
Em pé, me segurei no santantônio para não ser espirrado daquele pau-de-arara da imprensa, como aconteceu com meu boné segundos antes, ainda com esperança de chegar vivo e a tempo de encontrar os primeiros colocados trocando bikes e sapatilhas pelos tênis de corrida.
Minutos antes, tínhamos presenciado o brasiliense Alexandre Manzan, que completava 36 anos naquele cinco de junho, dia mundial do meio ambiente, passar voando com sua bike na liderança, rumo à última troca de modalidade. A corrida, a tarefa final exigida pelo triathlon, sempre foi o forte dele e, portanto, dificilmente alguém o ultrapassaria na pernada de 9 quilômetros pela mata fechada que ainda havia pela frente.
O XTerra é o circuito de triathlon cross-country disputado pelos melhores atletas do mundo da modalidade e, segundo o próprio Dave ‘Kahuna’ Nicholas, criador e diretor global do evento, que acompanhava a prova in loco, “chegar um dia à maior floresta tropical do mundo era uma realização com a qual ele nem sonhava.” Para que isso se tornasse realidade, no entanto, um staff pouco usual foi incumbido dos deslocamentos de pessoas e equipamentos: os militares do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS). Além do quartel principal, em Manaus, o CIGS dispõe de uma área protegida de 1.500 quilômetros quadrados dentro da floresta, utilizada para instruções diversas.
Ao todo, são seis pontos de operações, sendo que o XTerra Amazon aconteceu na Base de Instrução 4, um imenso quarteirão selvagem costurado por singletracks e estradas de terra conservadíssimas. Para se chegar àquela sala de aula militar, apelidada de “quadrado maldito” pelos próprios guerreiros da selva, são necessários vinte minutos à bordo de um veloz barco tipo voadeira (com casco de alumínio), ou 40 minutos numa balsa ferryboat, a partir de Puraquequara, um pequeno vilarejo a 30 quilômetros do centro de Manaus. É uma viagem até lá e, prova que se preze, começa no horário marcado. Por isso, as bicicletas foram levadas até o local no dia anterior. Já a operação de transportar os atletas foi iniciada na madrugada.
Às nove horas da manhã, com a habitual pontualidade militar, os duzentos atletas – amadores e profissionais – já estavam perfilados à margem do igarapé Mainá, prontos para o primeiro desafio da trinca selvagem do XTerra Amazon: um quilômetro e meio de natação. Além do caminhão do exército, motos e até um helicóptero ficaram de prontidão para agir numa possível emergência. Uma TV local ainda aproveitou o suporte para transmitir o evento ao vivo. Ou seja, uma competição na floresta era uma novidade também para o povo amazonense, algo tão inédito quanto o tiro de largada: uma bomba, que levantou um pequeno cogumelo no meio do igarapé.
O CIGS É UMA REFERÊNCIA MUNDIAL DE COMBATE EM MATAS FECHADAS. Por isso, o órgão é procurado por militares do mundo inteiro, especificamente pelos que buscam aprimorar as habilidades de guerrilha nesse ambiente. Pena que, às vezes, ostentam um exibicionismo desnecessário. “Prefiro essa onça mordendo minha garganta a vê-la presa”, brincou um atleta ao notar, no dia anterior à competição, durante o briefing promovido para competidores e imprensa, dois soldados desfilando com o felino na corrente.
A onça-pintada é o símbolo do CIGS. Por isso é até compreensível que os oficiais vejam aquele animal como sua mascote. Mas nem todos que estavam ali no quartel, em Manaus, sentiram-se confortáveis com a presença do bicho. Não por receio de um ataque, mas porque uma espécie ameaçada de extinção estava fora de seu habitat natural. Ainda assim, entre um questionamento e outro, a maioria não perdeu a chance de sacar uma foto do animal raro, que se retorcia no chão incomodado com a coleira que levava presa ao pescoço.
Dentro do auditório, enquanto eram passadas as instruções da prova, uma autoridade pública também deixou o clima estranho, ao comentar que ajudou a abrir as trilhas do XTerra com uma serra elétrica. Mesmo que tenha sido em tom de brincadeira – infeliz, por sinal – coube ao organizador do XTerra, Bernardo Fonseca, empunhar o microfone em seguida e incluir em seu discurso. “Nenhuma árvore foi derrubada para que o XTerra Amazon pudesse acontecer.”
No dia seguinte, minutos antes da largada, exército e atletas finalmente pareciam estar em sintonia. Verso a verso, os competidores repetiram a oração do Guerreiro de Selva, o hino do CIGS, berrado pelo primeiro tenente Alexandre Ferreira:
“Senhor,
Tu que ordenaste ao Guerreiro de Selva
Sobrepujai todos os vossos oponentes
Dai-nos hoje da floresta:
A sobriedade para resistir;
A paciência para emboscar;
A perseverança para sobreviver;
A astúcia para dissimular;
A fé para resistir e vencer.
E dai-nos também,Senhor,
A esperança e a certeza do retorno
Mas se defendendo esta brasileira Amazônia
Tivermos que perecer,ó Deus
Que façamos com dignidade
E mereçamos a vitória.
Selva!”
A ansiedade foi então transformada em coragem para encarar a floresta e, 2h38min depois da largada explosiva, Manzan cruzou a linha final em primeiro. Não poderia ter recebido um presente de aniversário melhor do que a vitória – há onze dias, ele havia passado por uma cirurgia na mão esquerda, e ainda carregava os pontos à mostra. Manzan decidiu que competiria apenas dois dias antes da prova, mas, no final da batalha, garantiu que a mão não o atrapalhou em nenhum momento.
Doze minutos depois do brasiliense chegou o mineiro Frederico Zacharias, segundo colocado. O argentino Ezequiel Morales, o brasileiro Rodrigo Altafini e o norte-americano Branden Rakita completaram o pódio. Entre as mulheres, a neozelandesa Jenny Smith chegou a chiar do bafo quente da Amazônia. Mesmo assim foi mais rápida que a brasileira Carla Prada e a argentina Maria Soledad, segunda e terceira respectivamente.
Pontualmente às 15 horas, ao término da cerimônia de premiação, equipamentos, organizadores, membros da imprensa e atletas se despediram da floresta. A operação de retirada do “quadrado maldito”, claro, também foi coordenada pelos agentes do CIGS, com os mesmos transportes aquáticos utilizados na ida.
À noite, nos meus últimos instantes na Amazônia, enquanto arrumo a mala, assisto ao programa River Monsters na TV à cabo. O episódio é especialmente dedicado ao rio Congo, o segundo maior da África. Eis então que o apresentador, o carismático biólogo britânico Jeremy Wade, com um imenso bagre que acabara de pescar no colo faz o alerta: “Ao contrário da bacia do rio Amazonas, onde diariamente toneladas de peixes são retiradas, aqui no Congo a pesca ainda é uma atividade essencialmente de subsistência.” Lembro da oração do Guerreiro da Selva, e só me resta rezar para que a floresta esteja em boas mãos. Como estiveram os triatletas do XTerra Amazon.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2010)
EXÉRCITO DE SALVAÇÃO: Colegas de imprensa a bordo do pau-de-arara camuflado