Terra do vento


SUCO DE LARANJA: Velejo de fim de tarde na Barra Grande, Piauí

Por Francisco Felsberg
Fotos por Ichiro Guerra

AO SER CHAMADO PARA ACOMPANHAR a chegada da regata Rally do Sol, em Luís Correia, cidade cravada no Delta do Paraíba, no Piauí, lembrei da minha péssima passagem por ali no verão de 1999, quando só vi lama, água barrenta, mangue e praias pouco atraentes. Só que em fevereiro deste ano, a imagem que eu tinha daquele Estado mudou. Cheguei às três da tarde no aeroporto de Teresina para pegar uma van e, após sete horas de estrada, com direito a carne seca com feijão branco no meio do caminho, chegamos ao litoral, mais precisamente na praia do Coqueiro, onde todo mês de agosto acontece uma das etapas do mundial de kitesurf. Foi aí que comecei a desconfiar que ali venta mais do que eu imaginava.

Às sete da manhã do dia seguinte já estava em pé para ver os 22 veleiros provenientes de sete países da Europa: França, Bélgica, Suíça, Áustria, Inglaterra, Espanha e Irlanda do Norte. Os tripulantes são, em sua maioria, aposentados. No entanto, no grupo viajam também famílias com jovens e crianças. Obrigatório mesmo só os – por volta de – 250 mil dólares no bolso para serem gastos em sete meses de “férias” e um barco com mais de 15 metros de comprimento.

Entramos num veleiro francês cuja tripulação era composta por um marinheiro e uma pequena família – marido, mulher e filho. Foi aí que entendi: aquilo não era uma competição, mas um estilo de vida. São vários velejadores unidos para conhecer o mundo organizadamente e com mais segurança. A vinda desse “rally”, que acontece há 15 anos, foi facilitada por um decreto de 2006 que permitiu a veleiros e embarcações estrangeiras ficarem por até dois anos perambulando pela costa brasileira. Antes disso, eles tinham autorização para ficar insuficientes três meses. Após esse prazo, os barcos podiam ser apreendidos pela marinha brasileira.

Se pensarmos que um tripulante gasta, em média, 100 dólares por dia num porto e uma embarcação cria três empregos diretos, imagine quanto o Brasil perdeu enquanto milhares de veleiros passavam há 100 milhas da nossa costa avistando ao longe nosso lindo litoral, onde o maior perigo eram nossos barquinhos de madeira, invisíveis a qualquer radar.


VENTANIA: Em toda a região de agosto a janeiro

À TARDE FOMOS CONHECER AS ENTRANHAS do maior delta das Américas, que possui setenta ilhas fluviais. Em um dos braços do rio, navegamos em lanchas que nos levaram entre as várias espécies de mangues e animais que existem na região. Avistamos tamanduá, jacaré e macaco até chegarmos às pequenas dunas que nos separavam de um mar agitado e sua água turva. Havia muito vento criando um ambiente ideal para kitesand.

Voltamos correndo para não encalhar com a maré vazante e finalmente paramos pra comer um delicioso robalo, ostras frescas e patas de caranguejo num restaurante rústico às margens do principal rio da região. O vento aumentava e ao perguntar se era possível velejar por ali, nosso guia Joca respondeu que o recorde brasileiro de velocidade de windsurf foi cravado naquela foz: 73 km/h. Mas como é pouca a infra-estrutura local, ninguém mais veleja por ali. Ainda bem que isso vai mudar: existem previsões de melhoras no porto e a finalização, ainda esse ano, do aeroporto internacional de Parnaíba, com privilegiada localização com Jericoacoara e Lençóis Maranhenses a um raio de 50 quilômetros.

No dia seguinte conhecemos a praia da Pedra do Sal, a 30 quilômetros de Luís Correia, que apesar de urbana é boa para surf e kitewave. No final do dia, passamos pela lagoa do Portinho, ideal para a prática de kitesurf e windsurf, já que tem pouca ondulação. A força do vento estava levando as dunas a afogar a lagoa até que uma ONG resolveu plantar capim e parar a movimentação daquelas pequenas montanhas nômades.

Em toda região venta de agosto a janeiro, mas até o momento eu ainda não havia velejado. Foi só no terceiro dia que matei a gana de velejar o vento daquele pequeno litoral. E foi em Barra Grande, uma praia a uma hora de carro de Luís Correia. Nunca tinha ouvido falar naquele paraíso pertencente ao município de Cajueiro da Praia, mas algo me dizia que ali era “o pico”. E meu instinto estava certo: as ruas de areia, as pessoas amigáveis, a praia gorda, longa e de areia branca fizeram com que eu me sentisse à vontade.

Melhor ainda ficando em uma das charmosas pousadas pé na areia. Com uma diária de R$ 200, um casal pode se hospedar num bangalô de frente para o mar. Pra que mais? Para o jantar e uma cerveja gelada, tem o Bandoleiros, que serve crepes e boas massas feitas por gente que fugiu de Jericoacora por causa do turismo desenfreado e que torce para não acontecer o mesmo por ali.

Além do vento forte fora de época, algo que me chamou a atenção foi a metamorfose diária da praia. O grande desnível das marés transforma, em pouco mais de seis horas, um mar verde, turquesa e azul numa península de corais e areia com mais de 1 quilômetro de comprimento numa das pontas da praia.

Durante a temporada, o velejo acontece das 13h às 18h. Inicialmente são 12 a 15 nós que aumentam gradativamente até chegar aos 30 nós no final da tarde. Perfeito para o nativo vice-campeão mundial de kitesurf, Hélio Cabrinha, que é um show à parte. Sem pensar muito, montei meu kite e caí na água. Velejava em condições perfeitas. A temperatura da água, o vento constante, aquele sol que não existe em São Paulo, tudo estava lindo – só não tomei cuidado com os bancos de areia que se formam na maré baixa. Olhava para a praia quando criei uma nova manobra: bico da prancha na areia, ralado na coxa. Ainda que meio atordoado, continuei o velejo. Só parei quando não havia mais claridade, e então fiquei contemplando o pôr do sol mais lindo dos últimos tempos: uma bola laranja que se escondia enquanto o céu coloria.

NO DIA SEGUINTE, NÃO CONSEGUIA me mexer de tanta dor muscular. Sem remédio ou massagista na área, a opção foi passear de carroça e ver cavalos marinhos. Sim, eles vivem fora do aquário. Outra opção era boiar de fraldão, expressão usada para a emocionante atividade de vestir um colete salva vidas como se fosse um shorts e boiar na vazante do rio.

Preferi ir até Macapá, praia onde a natureza não tem endereço certo. A areia levada pelo vento e as marés expulsaram muita gente dali, inclusive uma pousada de luxo que sumiu do mapa. Ruínas, estradas pela metade, casas soterradas pela areia nos levam a um cenário cinematográfico. Na volta para Barra Grande, enquanto desviávamos de porcos, galinhas, cães e cabritos, passamos pela lagoa de Sobradinho – outro pico ideal para o velejo, como tantos outros por onde passamos.

Voltando para Teresina, ainda deu tempo de visitar o Parque Nacional das Sete Cidades e conhecer os desenhos rupestres dos nossos homens das cavernas. Fiquei sabendo que os Fenícios e, dizem até, alguns extraterrestres passaram pelo parque antes dos portugueses. Cada uma das “cidades” do menor parque nacional brasileiro são formações rochosas por onde se escondem grafites milenares, que podem ser conhecidos pedalando 17 quilômetros em aproximadamente três horas.

Mas se sua idéia de diversão é um lugar com água e vento, fique pelo litoral. É possível fazer um downwind de quatro dias saindo de Cajueiro da Praia, ao leste, até a Ilha do Cajueiro, no Delta, quase na divisa com o Maranhão, passando pela lagoa de Barra Grande e pela praia do Coqueiro – destinos que já são certos para muitos gringos que dominam aqueles mares há tempos, mas que ainda precisam ser descobertos pelos velejadores brasileiros.

Mais informações sobre as praias do Delta nos sites amarracao.net e luizcorreia.com.br.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2010)