Na bota do Levi
Por Jader Lago*
ELE CRUZOU MAIS DE QUATRO MIL QUILÔMETROS pelo Brasil, passando pelos campos do interior do Paraná, pelo Pantanal, pelo cerrado e pela Amazônia. Viajou a bordo de velhos caminhões, mulas, cavalos e canoas. Estudou quatro diferentes sociedades indígenas, cada uma com sua própria organização, cultura e religião. Movido pela curiosidade e abastecido de espírito aventureiro, o antropólogo franco-belga Claude Lévi-Strauss (1908-2009) desbravou uma das regiões mais desconhecidas do mundo na época. Foram duas expedições, realizadas entre 1935 e 1939.
Setenta anos após sua partida do Brasil, reunimos uma turma também apaixonada pela aventura para refazer o percurso do antropólogo para o documentário Viajantes Radicais, dos canais ESPN. A ideia é buscar, nos caminhos de Lévi-Strauss, o que há de melhor em esportes de aventura nas regiões do Brasil estudadas pelo antropólogo. Para explorar os rios do cerrado e da Amazônia, convidamos o ex-recordista mundial de caiaque extremo Pedro Oliva e os integrantes da equipe bicampeã mundial de rafting Bozo D’água – com Fábio Lourenção, Rafael Keké e Samuel de Almeida. Para as cavernas da serra da Bodoquena, situada na borda sudeste do Complexo do Pantanal, no Mato Grosso do Sul, levamos os mergulhadores de caverna Tuta Barroco, Johnny Franco, Drica de Castro e Túlio Schargel.
Assim como fez Lévi-Strauss, nossa expedição foi primeiro para o Mato Grosso do Sul, perto da fronteira com o Paraguai, região dos índios Kadiwéu. Conhecidos por suas habilidades com os cavalos, os Kadiwéu dominaram outros povos indígenas e eram temidos por portugueses e espanhóis durante a colonização. Ainda hoje, eles se apresentam em animadas corridas (a cavalo?) nas aldeias. A característica mais marcante desses índios são os requintados desenhos que as mulheres orgulhosamente continuam fazendo – memórias de um tempo em que os Kadiwéu ainda eram divididos em castas, com nobres, guerreiros e servos. Esses traços do passado ecoados no presente chamaram a atenção de Claude Lévi-Strauss durante sua passagem pela região, nas primeiras férias dele como professor da Universidade de São Paulo, entre 1935 e 1936.
O ANTROPÓLOGO ERA APAIXONADO PELA GEOLOGIA, talvez exatamente pelo fato dessa ciência oferecer um recorte no tempo. Nas suas andanças pela região, ele se abrigou em uma das 366 cavernas já conhecidas da serra da Bodoquena durante um temporal. Décadas depois, mergulhadores de caverna seguem buscando – cada um à sua maneira e por diferentes razões – abrigo nesses ambientes. “Gosto da sensação de estar em um lugar onde ninguém esteve, ou pouca gente esteve. Poder curtir um visual único, de pertinho”, me diz Johnny Franco após dois mergulhos na gruta do Mimoso, uma caverna de água cristalina e visibilidade perfeita que é um dos berços desse esporte no país. “Para voar existem outros esportes. No mergulho é possível flutuar. A primeira vez que vim aqui, em 1995, subi pelas paredes e quando olhei para baixo pensei que ia cair. É a grande visibilidade que causa essa sensação”, conta Tuta Barroco, um dos primeiros a encarar esse mergulho, depois de visitar mais uma vez os diversos salões alagados.
O lago azulado é realmente um convite à exploração. Com diversas catacumbas e túneis cheios de decoração calcária, o lugar impressiona fora e embaixo d’água. “A gente já recebeu mergulhadores experientes de outros países que ficaram apaixonados por essa caverna”, lembra Tuta. Apesar de tanta beleza, a caverna está fechada para visitações por ainda não ter um plano de manejo, e qualquer atividade esportiva depende de autorizações especiais. “Estamos empenhados para abrir e preservar esse lugar”, afirma.
Não muito longe dali, para sorte da nossa expedição e também dos turistas, está outra caverna em situação bem diferente: o abismo Anhumas [já conhecido dos leitores da Go Outside], onde existe uma operação comercial estruturada e confiável. Escondida por uma fenda no meio da mata ciliar, sua entrada não é nada convencional. Um rapel negativo de 73 metros permite observar durante a descida um grande salão em formato abobadado, além de um lago repleto de gigantescos cones submersos. A luz do sol ilumina bem essas raras formações, encontradas em apenas três lugares no mundo, mas que ali existem às dezenas. Os turistas podem fazer um passeio de barco pelo lago e também flutuar com coletes salva-vidas. Já o mergulho é reservado apenas para profissionais como os nossos convidados, pioneiros nos mergulhos da região que trabalham no desenvolvimento do esporte em Bonito (MS) há quase 20 anos. Depois de uma hora embaixo d’água, todos saem extasiados. “Cada cone é de um jeito, com uma textura diferente. Todas as paredes dessa caverna são assim”, diz Túlio. “Os cones são maravilhosos. Alguns devem ter quase 20 metros de altura. Sem dúvida um dos mergulhos mais bonitos que eu já fiz”, deslumbra-se Drica de Castro.
Para encerrar essa primeira fase da nossa expedição, rumamos para o Ceita Corê, uma nascente formada por uma fenda geológica profunda, possivelmente ligada à maior reserva de água doce do planeta, o aquífero Guarani. É um mergulho bastante técnico, com um trecho estreito logo no começo da descida, onde só passa um mergulhador por vez. Para facilitar a descompressão durante a volta e aumentar a segurança dos mergulhadores, cilindros de oxigênio puro são espalhados pelo caminho. “Esta caverna parece que te chama. Você vê aquele abismo e quer descer cada vez mais. É bem aconchegante esse lugar”, diz Johnny Franco. Ele já explorou, numa visita anterior, todos os 160 metros de profundidade mapeados no Ceita Corê, num mergulho de sete horas de duração.
Depois de passar pela região da Bodoquena, Lévi-Strauss declarou em Tristes Trópicos, seu livro mais famoso, que “estava pronto para as verdadeiras aventuras”. E seguiu viagem, subindo o Mato Grosso de canoa pelo rio São Lourenço até encontrar os Bororo, índios com organização social extremamente complexa e uma cultura muito viva e peculiar. A aldeia é dividida em duas metades, com casamentos cruzados, e a festa mais importante para eles é o funeral. Altamente adornados com penas e peles de animais, eles celebram uma relação muito próxima entre os vivos e os mortos.
ALI TERMINOU A PRIMEIRA PARTE da expedição de Lévi pelo Brasil, e ele voltou para a França. O nome do antropólogo foi ganhando força no meio acadêmico e ele conseguiu apoio financeiro para uma segunda expedição, ainda mais complexa, em busca da ‘sociedade mínima’ dos índios Nambikwara e de contato com outros índios isolados na Amazônia. “É engraçado porque quando vemos Lévi mais tarde, ele é um grande intelectual. Um senhor austero, cercado de livros e fichas de trabalho. Mas o que ele fez no Brasil foi um trabalho de explorador. Era preciso organizar uma expedição. Isso demandava muito tempo, energia e planejamento. E isso para um intelectual, um filósofo, não é fácil. Acho que ele tinha um certo prazer nisso”, conta o antropólogo Philipe Descola, que hoje ocupa a cadeira que um dia foi de Lévi-Strauss no College de France, uma das mais importantes instituições acadêmicas francesas.
Já licenciado da USP, onde lecionou sociologia nos primeiros anos em que morou no Brasil, Lévi organizou a expedição e em 1937 partiu de Cuiabá, no Mato Grosso, para o rio Machado, no sul de Rondônia. Com 29 bois, algumas mulas e cavalos, além de diversos homens com coragem suficiente para acompanhá-lo pelo cerrado, Lévi-Strauss percorreu a linha telegráfica que Cândido Rondon havia instalado, com muito esforço, no início do século 20.
O Posto Telegráfico de Utiariti ficava 500 quilômetros ao norte de Cuiabá. Impressionado com a beleza do lugar, o francês resolve parar a expedição durante um dia inteiro somente para observar as cachoeiras que haviam ali ao redor. Esse mesmo fascínio fez com que o canoísta extremo Pedro Oliva escolhesse uma dessas cachoeiras, a Salto Belo, para estabelecer o recorde mundial de queda em caiaque, em 2008. Com 39 metros de altura e uma imponente floresta nas margens, o visual do Salto Belo parece saído de algum filme sobre o Mundo Perdido. Um cenário completamente remoto, onde qualquer atividade esportiva, por mais simples que seja, implica em um grande desafio. Despencar em um caiaque num ambiente tão inóspito requer experiência, técnica e, principalmente, autoconfiança.
Pedro nos explicou que cada cachoeira tem a sua identidade: “São como as digitais de uma pessoa. Quando a gente vai para um lugar desses, a intenção não é desafiar a natureza, ao contrário. Na verdade, a gente está querendo fazer parte dela. Eu consegui interagir de tal forma com a natureza, que eu caí com a cachoeira”, contou ele. Retornar ao Salto permitiu a Pedro sonhar ainda mais alto, mais especificamente com Utiariti, outra cachoeira muito próxima dali, porém com assustadores 89 metros de altura.
Para saber se a descida da Utiariti é possível, Pedro precisava analisar todas as possibilidades do lugar. Ele pôs então o caiaque nas costas e desceu pela trilha. O barulho era ensurdecedor e a força do choque da água contra as pedras produzia uma garoa constante em todo o vale do rio Papagaio. Tivemos que montar uma expedição auxiliar, com vários equipamentos de vertical, para acompanhá-lo com os todos os equipamentos de gravação.
“Nas cachoeiras os ângulos mais bonitos de serem observados são os mais difíceis de se chegar”, me diz Pedro, já dentro do caiaque, pronto para remar contra a corrente até a base da queda. “É muito complicado entender a dinâmica desta cachoeira. Eu ainda estou tentando compreender os fluxos de água na base. Realmente é um lugar muito especial.” Durante uma hora ele rema próximo à queda de Utiariti. “O salto, na verdade, é a parte mais fácil. Tem umas cavernas aqui na base, com uns grandes blocos de pedra soltos. As correntes daqui, em vez de te jogarem rio abaixo, te jogam rio acima. Remar na garganta é muito difícil e hoje vi o quanto isso é perigoso”, concluiu Pedro. Por precaução, ele prefere deixar a descida para outra oportunidade, talvez quando o rio estiver mais cheio. Somente assim poderá escapar das grandes pedras na base da cachoeira.
É a terceira vez de Pedro nesse lugar, e ele ainda se impressiona com o visual. Enquanto sobe pelas margens, para por um instante e começa a admirar o lugar. “Hoje vivi uma experiência bem interessante. estive em um ambiente que ninguém esteve. O caiaque me possibilitou isso. Tudo aqui representa o Brasil. Floresta, água cristalina e um território indígena. Esse lugar é dos índios, eles são os verdadeiros donos dessa área.”
LÉVI-STRAUSS ENCONTROU OS NAMBIKWARA (depois conhecidos como Nhambiquaras), ao lado da cachoeira de Utiariti. Estudados pelo antropólogo em 1938, eles acabaram sendo removido para outra área, a cerca de 50 quilômetros dali. Lévi-Strauss observou que os Nambikwara possuíam um estilo de vida completamente diferente das outras sociedades que ele havia visto. Viviam completamente nus e migravam durante toda a estação seca pelo cerrado. Nesse período, o cacique reunia suas mulheres, geralmente três, para lhe ajudar na tarefa de conseguir alimento para todos.
Hoje o cacique nhambiquara possui apenas uma mulher. Possivelmente isso está ligado ao fato das migrações terem acabado. Mesmo que tentassem migrar, isso seria impossível. Gigantescas plantações de soja rodeiam a aldeia e, para completar o quadro absurdo, uma rodovia está sendo construída no meio do território indígena.
Estivemos na aldeia durante a festa da Menina Moça, o mais importante ritual desses índios. Cantando de mãos dadas ao redor de uma grande fogueira, eles celebram a entrada de mais uma mulher na vida social, torcendo para que isso signifique também um recomeço na sua relação com o mundo. Ao fim do ritual, o cacique Ari desabafou: “Para preservar a cultura, precisamos defender nossa terra e a natureza que tem aqui”. Os índios que mais impressionaram Lévi-Strauss pela sua simplicidade, hoje batalham para manter suas tradições.
Depois de conhecer os Nhambiquaras, Lévi-Strauss seguiu rumo ao Norte. Era hora de deixar para trás o bucólico cenário do cerrado e se maravilhar com a diversidade da maior floresta tropical do planeta, em busca dos antigos povos Tupi. Remando em frágeis canoas durante semanas, ele alcançou o sul de Rondônia, onde encontrou alguns pequenos grupos de índios Tupi-Kawahib. Esses mesmos rios foram agora reexplorados pela Bozo D’água. Com um alto nível técnico, as corredeiras amazônicas trouxeram aos atletas um desafio completamente diferente dos que eles costumam encontrar nos campeonatos ao redor do mundo.
Remamos por vários quilômetros pelos afluentes do rio Papagaio, passando por muitas corredeiras pelo caminho. Nas margens, a mata era completamente fechada, com árvores de até 30 metros de altura. Nesse percurso ainda inacessível, a aventura vivida por Lévi-Strauss na primeira metade do século 20 ganha dimensões ainda maiores. “Não dá para imaginar um francês sair lá da Europa e vir parar aqui nesse paraíso. É coisa de quem desbrava o mundo. Só uma pessoa assim conseguiria chegar nesses lugares maravilhosos”, diz Fábio Lourenção após uma dura sequência de corredeiras.
No entanto, esse cenário de natureza intocada é cada vez mais raro no território atual dos índios Tupi-Kawahib que encontramos na viagem. Como em praticamente todo o estado de Rondônia, os pastos para a criação de gado tomaram conta da paisagem. A tribo que visitamos, os Amondawa, está isolada em uma área ainda preservada e vive basicamente da caça e da pesca. Nesta mesma terra indígena estão outros grupos que, por opção própria, não querem ter qualquer contato com o homem branco. Mesmo assim, caçadores começaram a invadir a floresta ao redor das aldeias, colocando todos os índios em risco.
Invocando um antigo grito de guerra Tupi antes da cerimônia com flautas, o cacique Tari nos fez um comovente relato sobre como os contatos recentes têm sido nocivos para seu povo: “Antigamente, a gente não pegava tantas doenças. O mato está virando campo. Os animais estão sumindo. Onde estão nossos peixes? O homem branco está se aproximando cada vez mais. Está se aproximando para que?”
Claude Lévi-Strauss escreveu inúmeros artigos sobre como a preservação ambiental é fundamental para a humanidade. A identificação dele com a causa ecológica surgiu após os trabalhos de campo no Brasil. Em várias entrevistas Lévi disse que viveu aqui a experiência mais importante da sua vida. Conheceu um país de “natureza prodigiosa”, um “mundo inteiro que se revelava”. Esse mesmo mundo, que ainda possibilita aventuras incríveis por meio dos esportes outdoor, foi a grande inspiração de toda sua importante carreira intelectual. Preservar a natureza e os povos desses lugares é a única maneira de garantir que nosso futuro continue inspirador e aventureiro.
*Jader Lago trabalha no Núcleo de Esportes Radicais da ESPN e é o diretor do documentário Viajantes Radicais, pelo caminho de Lévi-Strauss que vai ao ar 27/05, às 22 horas, na ESPN Brasil.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2010)