Meus olhos têm fome


É NOSSA!: Marcio Bruno segue caminho na Proa

Por Eliseu Frechou

Fotos por Marcio Bruno e Eliseu Frechou

POR QUATRO ANOS SONHEI como uma criança em escalar a parede do monte Roraima. Localizado na floresta amazônica, entre o Estado de Roraima, a Venezuela e a Guiana, o topo do Roraima, com 2.875 metros de altura, forma um planalto de 17 quilômetros de extensão por 6 quilômetros de largura, precipitando-se nas beiradas em paredões verticais com mais de 500 metros de altura.

Já sei que não sou uma pessoa muito esperta. Não foram poucas as vezes em que estive perto de morrer num big wall e, mesmo assim, apesar das promessas feitas na hora do aperto sobre mudar de vida e de esporte, sempre retornei para enfrentar as grandes paredes que me fascinam. Cada vez que entro numa delas passo por apuros: frio, calor, sede, fome e medo são companheiros inseparáveis do escalador que se lança a esse tipo de desafio. Já escalei o suficiente para entender que preciso pagar esse preço.

Afinal, o que mais posso fazer quando meus olhos têm fome de horizontes nunca vistos? Quando me vejo olhando pela janela e imaginando passos de uma escalada que ainda não aconteceu? Pior que qualquer sofrimento é a sensação do não tentar, de desistir por não querer sair da zona de conforto.

Em 2008, Marcio Bruno, Fernando e eu tentamos pela primeira vez subir a parede do Roraima. Tínhamos apoio da Força Aérea Brasileira, do Governo de Roraima e a permissão dos índios ingarikós para passar pelas suas terras e atingir a montanha. Mas os mais de 60 quilômetros (em linha reta!) de pântanos e degraus que precisariam ser escalados partindo da aldeia de Caramambatai até chegarmos ao pé do Roraima logo nos fizeram desistir da aproximação por terra. A lenda indígena conta que o Roraima era uma árvore onde morava o guerreiro Makunaima. A árvore foi cortada (o formato do monte se assemelha mesmo a uma árvore talhada) e ele se transformou num ser muito vingativo, que faz malvadezas a quem chegue perto da montanha. Os índios brasileiros respeitam e temem o Roraima – a ponto de não podermos contar com eles para acessar a base da montanha.


QUASE LÁ: Eliseu saúda o sol e faz pose dependurado a 200 metros de altura

Tentamos então um helicóptero, a partir de Boa Vista, capital do Estado. Mas o piloto, que já tremia antes mesmo de decolar de Caramambatai (ponto mais próximo da montanha), desistiu sem nem sequer chegar perto da parede. Histórias e fatos sobre aviões que caíram ou sumiram na região pesam no inconsciente de qualquer um que já as tenha ouvido e se aproxime da morada de Makunaima e, com certeza, foi o que se passou na cabeça do piloto no momento que viu que teríamos que procurar um lugar para pousar naquela floresta. Era o fim da primeira tentativa. Voltamos para casa frustrados e imaginando outra maneira de atingir a base da parede.

Em 2009, estive na Venezuela para fazer um trabalho em outro tepuy –montes como o Roraima, que têm forma semelhante a uma mesa – e voei com um piloto chamado Rafael, que me pareceu bastante seguro. Ele me assegurou que se houvesse a mínima possibilidade de pouso na base do Roraima, ele o faria. Era o que precisávamos para fechar nossas haul bags (malas de equipamentos) e partir para o Norte. Queríamos resolver o assunto pendente e tirar o Roraima da goela.

Dessa vez, para evitar a ansiedade e a consequente ingestão de antiácidos, fizemos um planejamento bem enxuto: de casa até a base da parede seriam apenas dois dias. E assim fomos, cada um com suas dúvidas e incertezas, cruzando o Equador e adentrando na Venezuela, onde Rafael já nos esperava. Tudo acertado, às 6h do dia 9 de janeiro estávamos nós quatro e nossos 150 quilos de equipamentos a caminho da Proa do monte Roraima, que fica na porção da montanha que pertence à Guiana. Havíamos decidido atacar o lado da Proa, o maior da muralha. Além de mais negativas que no restante da montanha, as paredes ali têm entre 450 e 500 metros de altura, cerca de um terço a mais que no restante do Roraima. Já que estávamos ali por nossa conta e risco, o lance era finalizar a novela da melhor forma possível. Se escalássemos uma parede menor ficaríamos com a vontade de voltar e tentar a Proa. Melhor então já encerrar o assunto.

Em 1991, Luis Makoto Ishibe, Hugo Armelin e Michel Bogdanowicz abriram na parede brasileira do Roraima a primeira rota brasileira, numa odisséia de vários dias na montanha. A primeira ascensão pelo lado da Guiana foi feita pelos lendários escaladores ingleses Joe Brown e Don Whillans, em 1973, acompanhados pelo também inglês Mo Anthoine e pelo escocês Hamish MacInnes. Duas outras expedições americanas abriram vias na região, em 2003 e 2006. Já era hora de colocarmos uma rota brasileira na Proa.


EXPEDIÇÃO: Vista do Roraima na parte pertencente á Venezuela

MARCIO BRUNO ESTAVA NA CADEIRA DE CO-PILOTO. Ele tinha a missão de escolher a parede e, em comum acordo com o Rafael, o ponto de pouso. Sobrevoamos as faces venezuelana e brasileira, e chegamos à Proa. Lá o Rafael identificou dois locais em que ele poderia planar o helicóptero por alguns momentos para que nós saltássemos e descarregássemos os equipamentos. Escolhemos para o desembarque a opção mais próxima da quina da montanha. Foi só o tempo de colocar minha câmera na caixa rígida, olhar pela janela e já estávamos logo abaixo da maior queda d’água da montanha.

Com dificuldade, Rafael tentava acertar os esquis do helicóptero numa pedra de 12 metros quadrados. Quando a parte da frente dos esquis tocou o chão e deu estabilidade ao aparelho, Marcio pulou pra fora ao mesmo tempo em que o Rafael acenou para mim e disse que não poderia retornar para nos resgatar naquele lugar – só no topo. O Marcio havia tomado um escorregão na pedra molhada, mas conseguiu abrir minha porta. Fui jogando o material para fora. Quando saí, também senti dificuldade em ficar em pé, devido à inclinação da pedra em que estávamos e da água que escorria da cachoeira. O Fernando pulou em seguida e em menos de 30 segundos estávamos todos no bloco, com todo o equipamento e vendo o helicóptero levantar vôo. Bateu a sensação de um cachorro abandonado pelo dono. Estávamos na roubada.


A EQUIPE: Fernando, Eliseu e Marcio no topo

Após uma rápida análise das paredes ao lado da cachoeira, ficou bem claro que seria impossível escalar ali. As paredes maiores estavam à nossa direita, e foi pra lá que seguimos. Resignados com os riscos, fomos lentamente descendo pelas pedras molhadas e fazendo o transporte dos equipamentos na direção da Proa, cada um em seu silêncio. Colocávamos os pensamentos em ordem à medida que íamos caminhando, fortalecendo o corpo para os dias de incerteza que certamente teríamos pela frente. Dali em diante, quanto mais pensássemos em casa, na família ou qualquer outra coisa que não a escalada, mais poderíamos perder o foco.

O primeiro dia em uma expedição sempre é de desordem, com muita coisa para organizar e muitas variantes para gerenciar. Decidimos montar acampamento o mais próximo possível da Proa. Logo após o meio-dia já havíamos esticado nossa tenda numa área da base da montanha que parecia pingar menos (toda a parede do Roraima pinga, por conta dos platôs de vegetação que retém a umidade). Um dia antes da viagem, eu havia ido buscar meus filhos no clube e, no caminho, ao passar por uma loja de materiais para construção, resolvi comprar uma lona preta, dessas safadas mesmo, para fazermos uma cozinha coberta nos dias em que estivéssemos no chão. Nunca havia levado uma lona nas escaladas ou acampamentos, mas dessa vez algo me disse que valeria a pena gastar R$ 13 e carregá-la. E foi com ela que fizemos nossa área de convivência embaixo do monte.

O isolamento nessa região é algo que nunca havia visto. Não se ouve som algum, não se vê nada além de florestas. Nenhuma luz ou fogueira, nenhum sinal de gente. Logo após montarmos a base, saímos para explorar o lugar. Para nossa sorte, encontramos um diedro (formação em que duas paredes fazem um ângulo de 45 graus, como um livro semi-aberto, dando a opção de escalar por qualquer uma delas ou abrir as pernas e fazer uma oposição) que começava no chão e seguia por mais de cem metros até a parte negativa da parede – justamente onde pensávamos em escalar. Belo presente. Como em toda a extensão da montanha existe uma faixa entre 50 metros e 200 metros de altura de vegetação grudada na pedra, esse primeiro trecho certamente nos tomaria muito tempo em jardinagem para retirar as bromélias e escalar até a parte limpa da parede.


MARCIO BRUNO: Logo depois que o trio desembarcou do helicóptero

NA PRIMEIRA NOITE NA TERRA DO MAKUNAIMA ele já nos mandou o recado de que mato não é tudo igual. A parte de baixo do Roraima é um pântano no qual a gente afunda até a canela. Não dá pra ficar seco. Logo de cara avistamos dois escorpiões e uns insetos estranhos, além de um gambá que começou a rondar o acampamento. E a umidade do ar era tanta que começou a travar nossas câmeras.

Nessa noite preparamos um jantar à base de comida liofilizada, demos umas bicadas na garrafa pet de whisky que tínhamos levado para o caso de alguma emergência e gastamos uns dedos de prosa especulando sobre a rocha e o que teríamos pela frente. Montamos os portaledges (pequenas camas desmontáveis que ficam suspensas) nas pequenas árvores para nos manter longe dos bichos peçonhentos e tentamos dormir. Lá pelas tantas, começou a chover e senti meu pé molhado. Droga! A cobertura do meu portaledge estava vazando. Mau presságio. Peguei meu sleeping bag e fui pra debaixo da lona.

Na manhã seguinte, logo cedo, o Marcio saiu com o Fernando para começar a via. A briga com as bromélias no diedro foi ferrenha, mas no final do dia, o Marcio bateu a base (ou seja, instalou os grampos) 120 metros acima do chão. Desde que comecei a escalar grandes paredes, a parte que mais odeio é a hora de decolar. Ficar no chão, na expectativa do que acontecerá, é um martírio para mim. Na parede, tendo água e comida, o resto a gente resolve. Dessa vez, além da ansiedade, a umidade nos forçava a sair da base o quanto antes.


ENFIM: Eliseu observa o céu azul 11º dia na montanha, depois de cinco dias de chuva

Dormimos mais uma noite no chão e no dia seguinte, logo após topar com uma caranguejeira dentro do meu haul bag, segui com o Marcio para abrir mais um trecho. O Fernando ficou na missão de fechar tudo e preparar os haul bags para serem içados até o platô do dia anterior. Assim, sairíamos do pântano e começaríamos nossa vida na vertical. Preparamos 21 garrafas d’água de dois litros e rango para dez dias. A ideia era finalizar a via em mais seis ou sete dias.

A seção seguinte da montanha era bem podre e com blocos soltos. Tivemos alguns imprevistos e para ganhar tempo tive que escalar em solitário, que é uma técnica onde o escalador faz sua própria segurança. Mas no terceiro dia na parede, chegamos a um platô que era três estrelas: protegido do vento, tinha até uma árvore para servir de cabide. Montamos os três portaledges confortavelmente e o Marcio seguiu por uma canaleta bem larga por mais uma enfiada.

No quarto dia, Makunaíma começou a mostrar sua ira. Escalei um trecho em livre (usando as agarras da rocha para ascender e o equipamento apenas para proteção em caso de queda) e depois a parede começou a ficar positiva – e molhada. Foi bem duro finalizar os últimos 15 metros, com água caindo no rosto. No fim do trecho, cheguei a um platô de um metro de largura por uns 8 metros de comprimento. Instalei os grampos e desci para o platô da árvore, 120 metros abaixo. A partir desse momento, até o topo, começaríamos uma guerra de resistência física e psicológica.

Estávamos, Marcio e eu, nos revezando nas guiadas. No quinto dia, o Marcio acabara de bater a base e uma garoa que anunciava uma frente fria começou a engrossar, fazendo com que ele tivesse que descer debaixo de um temporal. Estava na cara que os portaledges não iriam suportar a coluna d’água que estava vindo em nossa direção. “Cadê a lona?”, perguntei ao Fernando. “Debaixo dos haul bags”, respondeu ele mais que depressa, já indo pegá-la.

O platô oferecia uma base mínima. Fizemos um envelope com a lona e os portaledges, e mesmo molhados e numa posição desconfortável, fomos dormir na certeza de que o tempo melhoraria no dia seguinte. Mas isso não aconteceu. A noite foi de chuva e o dia de tempestade. O vento e a água açoitavam sem piedade a lona de R$ 13 e sentíamos calafrios só de pensar o que nos aconteceria se perdêssemos essa proteção.


TRÊS ESTRELAS: Eliseu e os portaledges no platô com a árvore-cabide

NOS PRÓXIMOS DOIS DIAS A CHUVA não deu trégua. A inatividade era quebrada apenas no preparo das refeições e na captação da água da chuva para cozinharmos. A ansiedade por sair do calabouço em que o platô havia se transformado aumentava à medida que as pilhas do aparelho de som do Marcio acabavam. Tentamos heroicamente (modéstia à parte) enfrentar a água, mas o resultado foi péssimo, com o Marcio quase entrando em estado hipotérmico no nono dia. Nossas cordas estavam esticadas 120 metros para cima do platô, que batizamos de “platô da resistência”. Logo acima da gente, outra seção positiva nos expunha demais à chuva e aos pingos. Por mais que tentássemos nos proteger não havia como evitar nos molharmos por completo antes mesmo de chegarmos à base para iniciar a conquista do novo trecho.

A decisão de se arriscar para sair da roubada ou ficar parado e esperar (para evitar uma situação ainda pior) é crucial numa escalada como esta. Nossa mente tenta sempre nos proteger pintando a maioria das vezes um cenário pior que a realidade. A experiência em lidar com a mente é a chave para saber distinguir uma situação de risco real de uma imaginária ou exagerada. Conhecer seus limites faz parte do jogo. Há dias em que acordamos medrosos e outros nos quais estamos mais corajosos.

No décimo dia resolvi que iríamos ter que vencer o trecho positivo, com chuva ou não. O Marcio subiu comigo e passou mal de novo. Eu estava tão inconformado com a possibilidade de ter que ficar ainda mais tempo no platô que resolvi abrir caminho na marreta. Quando a parede é lisa demais para escalar e não há fendas para encaixar peças, a solução é ir fazendo furinhos de ¼ de polegada e nesses furos encaixar cliff hangers, que são ganchos de aço, e assim conectar escadas de fitas (chamadas de estribos) para ascender em artificial. É demorado e desgastante, mas eu não via opção muito melhor para passar o dia.

Enquanto o Marcio descia, comecei a guiar em solitário. Quarenta minutos depois, o Fernando apareceu para me fazer segurança e trocar uma ideia enquanto eu gastava a broca. A chuva caía forte e depois de certo tempo só a vontade de ir pra casa me dava força para continuar escalando. Para me dar uma injeção de adrenalina, um escorpião negro surgiu do meio de uma moita de mata que arranquei para abrir passagem, e só não me picou por eu estar usando luvas. Consegui subir uns 25 metros de corda até arriar as baterias e começar a bater os dentes de frio. Nesse dia, a tecnologia da minha roupa, usada em um sistema de três camadas, com certeza salvou minha vida.

Para nossa felicidade, o décimo primeiro dia amanheceu com o céu azul. Içamos os haul bags e evoluímos o que conseguimos – o que não passou de 60 metros. Achávamos que nesse dia seria possível pisarmos no topo, mas um enorme totem que avistávamos lá de baixo mostrou ter o dobro do tamanho quando o tocamos.

Assim, tivemos que ficar uma noite e um dia a mais na vertical. E só no entardecer do décimo segundo dia na montanha o Fernando se juntou ao Marcio e a mim para comemorarmos, de pé em cima do Roraima, a vitória sobre nossos medos e dúvidas. Quando nos reunimos no topo, o sonho de abrir uma via na Proa se tornou realidade. Naquele momento tudo era alegria. Iríamos voltar para casa e tudo o que vivemos naquele lugar seria história – história que contamos agora para os amigos.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2010)