Por Mario Mele
A CENTERCOURT É UMA LÂMINA DE ÁGUA entre duas cachoeiras no vale de Gastein, na Áustria. Ainda na década de 1990, o escalador local Hans Zlöbl cogitou que o riacho, quando congelado, poderia render uma boa (e extremamente arriscada) escalada. Mas a rota permaneceu intacta até janeiro de 2010, quando os escaladores austríacos Albert Leichtfried, 33 anos, e Benedikt Purner, 27, acreditaram que conseguiriam mudar esse status.
Depois de seis horas batendo piquetas e fixando grampos e parafusos no gelo, a dupla completou os 300 metros da Centercourt, sugerindo para ela a graduação WI 7+. WI corresponde a water ice (designação para escalada em água congelada) e 7+ é o nível de dificuldade. Para se ter noção do tamanho do enrosco, sites especializados definem o grau 7 como “completamente vertical, em gelo técnico, fino e medíocre, e formações delicadas que não admitem falhas”. O sinal positivo após o numeral indica que é uma via um pouco mais complexa do que uma de sétimo grau puro. Em resumo, a Centercourt é um verdadeiro pesadelo. “É uma das escaladas em gelo mais difíceis já feitas até o momento”, afirmou Benedikt, depois do feito. “Senti o limite sutil entre uma escalada dura e uma missão suicida”, acrescentou Albert.
Curiosamente, em menos de um mês depois da escalada de Albert e Benedikt, a Centercourt já ganhou duas repetições. Ambas as equipes – uma de escaladores eslovenos e outra de austríacos – atestaram o grau WI 7+ proposto pelos pioneiros. No começo de fevereiro, Albert falou à Go Outside sobre os detalhes da escalada e explicou por que uma via que ficou esquecida por mais de uma década se tornou um dos focos da escalada em gelo nessa temporada.
GO OUTSIDE: Você chegou a conversar com Hans Zlöbl, o cara que identificou essa linha de escalada? Por que ele nunca tentou a subida?
ALBERT: Conhecemos Hans em Gastein e tomamos uma cerveja juntos. Quando eu lhe disse que as condições estariam boas para escalar, ele imediatamente perguntou se eu desafiaria a “via do meio”. “Sim”, foi a minha resposta. Então ele passou a nos motivar. Hans é uma verdadeira lenda da escalada e já abriu diversas vias difíceis na década de 1990. Ele identificou a Centercourt naquela época, mas nunca achou que as condições estavam boas o suficiente para tentar a via. Apesar do Hans já estar fora dessa “brincadeira” de escalar em gelo, sei que esteve mentalmente conosco durante toda a nossa escalada.
O que motivou vocês a encarar a Centercourt?
Antes dela escalamos as vias vizinhas, Supervisor e Seidenraupe, e me senti atraído a tentar aquela linha de gelo fina. Mas a grande motivação veio de Hans, que conversou conosco na tarde anterior.
Olhando essa via da base, que riscos foram possíveis de calcular?
Vendo de baixo, já imaginamos que a via estava no limite do possível. Levamos todos os nossos equipamentos de escalada em rocha e garantimos uma proteção extra. Do chão, o crux parecia mais fácil e seguro do que realmente foi. Mas levamos uma hora e meia para vencê-lo. Garanto que não é algo que você gostaria de viver todos os dias.
Como você lida com o medo?
O medo é como um alarme. Geralmente, quando estou escalando – no gelo ou na rocha – procuro escutar meus pressentimentos. Se percebo que alguma coisa está errada, retorno ou então nem começo a escalar. Normalmente isso acontece apenas uma vez durante a temporada. Quando vou escalar, estou 100% decidido e o medo não pode interferir quando tudo está correndo bem.
Como é o entrosamento entre você e Benedikt?
Essa foi a nossa terceira temporada juntos. Quando o conheci era apenas um novato, mas entusiasmado e extremamente talentoso. Ele evoluiu muito nesses últimos anos, ficou forte, e agora já temos o mesmo nível técnico. Além de ser um grande escalador, ele sabe tomar decisões. É agradável estar com ele, sempre ampliamos nossos limites e fazemos coisas fantásticas.
Poderia nos explicar de onde vem o nome da via Centercourt?
É porque ela está no meio de outras duas vias, abertas por Hans: Rodeo e Land Under. Esta última nunca foi repetida. Os escaladores que estão na Centercourt, que em português quer dizer “quadra central” podem ser vistos por qualquer outro escalador que estiver naquela região. Ou seja, quando você está escalando ali, você se torna o centro das atenções.
É possível fazer uma comparação entre a Centercourt e outras vias difíceis que você já conquistou?
A Centercourt é única, diferente de tudo o que já escalei. Nos 300 metros de ascensão foi muito raro encontrar um lugar ideal para fixar um parafuso no gelo – a camada é tão fina que é possível ver a rocha por trás. A maioria das outras rotas difíceis que fiz eram extremamente verticais, mas com boa proteção. A Centercourt é incomparável e nos exigiu muito, técnica e mentalmente.
A Centercourt foi o seu maior desafio até hoje?
Em escalada puramente em gelo, com certeza. Mesmo quando eu estava passando pelo crux não tinha certeza de que aquele gelo seria “escalável” até o topo. Vencer toda essa insegurança para seguir foi, definitivamente, o grande obstáculo que ela nos impôs.
Em menos de um mês a Centercourt ganhou duas repetições. Por que isso?
Os melhores escaladores sabem que nesse tipo de via pode haver apenas uma chance para a repetição. E trate de fazer isso imediatamente após a primeira ascensão, já que pode levar anos até ela estar novamente em boas condições. Nossa escalada também foi falada na mídia e, portanto, outros escaladores ficaram instigados. Mas eles tiveram uma grande vantagem: já sabiam que era possível.
Qual o seu próximo plano suicida?
Uma rota no gelo de 700 metros, ao norte da Noruega, saindo do nível do mar. Eu e Benedikt partiremos para essa tentativa no dia 22 de fevereiro.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2010)
SÓ CORRER PRO ABRAÇO: Com cara de missão cumrida, a dupla Albert (à esquerda) e Benedikt poda para um auto-retrato
CRUCIAL: Albert trabalha duro para que nada dê errado durante a passagem pelo crux da Centercourt
REVEZAMENTO: Benedikt toma as rédeas e guia a terceira enfiada rumo ao topo