Quatro filmes entre o céu e a terra

Por Mario Mele

“VAI PLANANDO, PLANADOR, POR ESSE ESPAÇO SEM FIM; vai fazendo desse espaço, planador, um imaginário jardim.” Os versos saem musicados do pequeno gravador do repentista Jacobina, que na outra mão carrega o violão que o ajudou na composição. Ao seu lado, sentado na asa de um Schleicher ASH 25, um moderníssimo avião planador de dois lugares, o piloto e empresário Sergio Andrade, 64 anos, ouve atentamente o som que foi feito em sua homenagem. “Linda letra”, ele exclama em seguida.

Sergio e Jacobina interpretam eles mesmos no documentário Rumo ao Nordeste, que conta a aventura de onze amigos, todos amantes do voo, pelas térmicas de uma das regiões mais bonitas do Brasil. Andrade tirou brevê em 1968, e voa de planador há quatro anos. Hoje, segundo seus cálculos, ele já acumula cerca de 500 horas de voo nesse tipo de aeronave. Jacobina tem o mesmo nome da cidade onde nasceu, no interior da Bahia, e foi incumbido pelo diretor Sylvestre Campe de compor a música principal do filme. Feliz escolha. Graças à originalidade do compositor baiano, Rumo ao Nordeste abraçou a estatueta de “Melhor Trilha Sonora” na sessão competitiva da 9ª Mostra Internacional de Filmes de Montanha, que este ano aconteceu em outubro, no Rio de Janeiro, e exibiu treze produções rodadas inteiramente ao ar livre. Usando desafios esportivos, viagens expedicionárias e o instinto de preservação como tema principal, esses filmes contribuíram para desvendar um Brasil ainda pouco conhecido.

O próprio Rumo ao Nordeste não teve somente os acordes de Jacobina ou os rasantes e decolagens de Sergio a seu favor. Para quem não está acostumado com a liberdade de voar, as tomadas panorâmicas são as mais impactantes. Essas cenas, captadas de dentro e de fora do cockpit das aeronaves, revelam grande parte do relevo e da vegetação – e a falta dela – do nordeste brasileiro.

“Era quase impossível acompanhar e registrar o voo dos planadores”, admite Sylvestre. “Eles se transformam em verdadeiras lâminas no ar”, completa o diretor, que usou micro câmeras para conseguir transmitir as sessões de adrenalina e os bons momentos vividos por esses pilotos. Depois de dez dias intensivos de produção em campo, Sylvestre passou a enxergar o voo autossuficiente de uma maneira quase poética. E o que era para ser um breve relato de quinze minutos acabou virando um empolgante filme de uma hora.


PANORÂMICA: Imagem do filme Rumo ao Nordeste
(Foto: Nader Couri)

CONSAGRADO PELO JÚRI ESPECIALIZADO como o “Melhor Filme” da mostra competitiva, Ciclos também tem o espaço aéreo nordestino como cenário. Nele, o diretor Pedro Dumans mostra a saga de três amigos na tentativa de percorrer uma distância inédita a bordo de um parapente.

Em 2007, depois de um mês suando sobre o sertão, Frank Brown, Marcelo Pietro e Rafael Saladini se espalharam pelo ar na tentativa de encontrar as melhores térmicas. Eles voaram próximos um do outro, cruzaram os estados do Ceará, Piauí e aterrissaram no Maranhão, depois de completarem a distância de 461,8 quilômetros. A marca é, até hoje, o recorde mundial homologado pela Federação Aeronáutica Internacional (FAI), já que o sul-africano Nevil Hulett parece não ter cumprido alguns procedimentos exigidos quando voou 507 quilômetros sobre seu país, em 2008. Já o trio brasileiro teve muita paciência para ganhar intimidade com os ares de Quixadá, no Ceará – de onde os pilotos içavam seus velames diariamente para uma nova decolagem – e cumprir à risca as normas de horários e navegação, mesmo tendo que despistar alguns pilotos gringos que estavam ali em razão de uma competição e que, sedentos por boas informações sobre o local, chegaram a atrapalhar a concentração dos brasileiros.

Apesar de ainda pouco explorada pelo turismo, Quixadá sedia há mais de dez anos o XCeará, um campeonato anual que reúne os melhores do parapente mundial. Portanto, não era segredo que os meses de setembro, outubro e novembro guardam boas condições para o voo livre. “No entanto, esses brasileiros descobriram que há dias realmente clássicos dentro da temporada, e que cada semana reserva um dia desses”, diz o diretor Pedro Dumans, justificando os intervalos que inspiraram inclusive o título do filme. “Eles ainda perceberam que é possível decolar a partir das 8 da manhã no sertão. Com isso, ganhavam três preciosas horas diárias no ar”, completa. Essa sacada foi fundamental para quem precisou ficar dez horas sem sentir os pés tocarem o chão.

Por meio de animações gráficas, Ciclos mostra também os efeitos gerados pelos imensos monólitos espalhados pelo sertão. Eles esquentam o ar e, dessa forma, favorecem os voos de parapente, asa-delta ou qualquer outro veículo planador. Já no solo, as captações foram feitas de dentro do carro de apoio, um possante 4×4 que ignorava trilhas quase fechadas para acompanhar o vôo dos pilotos e transportá-los de volta a Quixadá, onde descansavam para decolar novamente no dia seguinte.


FRAME: Parapente sobrevoa o sertão nordestino no filme Ciclos
(Foto: Rafael Saladini)

EM TERRA, QUEM SE DEU BEM mesmo na 9ª Mostra Internacional foi o escalador capixaba Oswaldo Baldin. Foi ele quem idealizou, produziu e dirigiu o curta-metragem Com a Macaca. Pelo enorme empenho, concentrando em si praticamente todas as funções sem comprometer a qualidade final, ele foi compensado com o almejado prêmio de “Melhor Diretor”.

“Sempre quis focar a escalada no Espírito Santo, que sem sombra de dúvida é um dos estados com maior potencial para a conquista de novas vias”, garante. Em Com a Macaca, ele mirou a lente de sua câmera para o morro do Moreno, uma das mais importantes áreas de escalada daquele estado. Cravado numa área urbana de Vila Velha, município da grande Vitória, essa formação é também conhecida como morro da Macaca, graças à pitoresca aparência de um babuíno deitado. “Além de ser um lugar de fácil acesso aos escaladores, é possível praticar outros esportes por ali, como mountain bike e voo livre”, garante o diretor. Para aqueles que pretendem apenas caminhar tranquilamente, há diversas trilhas no meio do mato que costuram a Macaca.

Apesar de ter somente 23 minutos, esse filme mostrou a escalada esportiva e a escalada em boulder de diferentes ângulos. Oswaldo ainda acrescentou depoimentos de bikers e trekkeiros para construir sua narrativa. Em suas constantes idas ao local, ele teve uma demonstração da boa fase que desfruta a escalada capixaba: o crescimento do esporte entre as mulheres. “Agora quero propiciar ampla divulgação do morro do Moreno por meio do filme, para que esportistas de outros estados também possam usufruir dessa área”.


FRAME: Escaladora no curta-metragem Com a Macaca
(Foto: Oswaldo Baldin)

Como todo crescimento gera degradação, o capixaba se preocupou em abordar também iniciativas de conservação como o Programa Adote uma Montanha (PAM) – uma ação da Federação de Montanhismo do Estado de São Paulo (FEMESP) posteriormente difundida a outros estados pela Confederação Brasileira de Escalada (CBME). O objetivo é incentivar os clubes de montanhismo a atuarem na conservação ambiental em áreas de montanha e serra. “No morro do Moreno”, explica Oswaldo, “isso já acontece desde 2004, depois que membros da Associação Capixaba de Escalada (ACE) começaram a ajudar na manutenção do local, minimizando o impacto ambiental gerado pelos frequentadores menos conscientes.”

O impulso de preservação realmente foi um ponto forte das sessões do festival de cinema. A vida dos macacos muriquis, uma espécie seriamente ameaçada, é mostrada no filme Entre Montanhas e Muriquis, que venceu na categoria “Fotografia”. O documentário todo se passa na serra do Brigadeiro, uma das poucas áreas remanescentes de Mata Atlântica, no norte de Minas Gerais, onde se concentra uma população de 350 muriquis do norte que utilizam a copa das árvores como moradia e meio de locomoção.

O filme foi uma ideia conjunta do biólogo Leandro Moreira, que desde 2004 pesquisa essa espécie para seu mestrado de primatologia, e do diretor de cinema Paulo Vilela, que está mais acostumado com vídeos publicitários. Eles se conheceram durante uma gravação de escalada no povoado de Casa Branca, em Minas Gerais. O equilíbrio para a produção do filme parece ter sido perfeito: enquanto Leandro descreveu seus três anos de imersão na mata Atlântica para se aproximar e estudar os muriquis, Paulo se desdobrou, montando seu equipamento de filmagem no alto das árvores. “Os muriquis nunca pisam no chão, eles vivem em galhos de até 40 metros de altura”, conta. “Para complicar, a serra do Brigadeiro é extensa, e fica sobre um terreno bem acidentado”, continua Paulo, que depois de 18 meses de filmagem havia colecionado cem horas de material bruto, de onde saíram os 38 minutos do filme.

Nesse tempo, Entre Montanhas e Muriquis mostra uma sequencia de imagens que o coloca entre os documentários mais fascinantes de natureza. Além de ser motivado pela nobre causa de preservação, o filme é uma amostra de que o Brasil, visto da copa das árvores, também pode render uma boa história.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2009)