Fotos Bryan Elkus
HÁ POUCOS MINUTOS MEUS PENSAMENTOS eram só ordens militares do meu cérebro para meu corpo. Afunde os calcanhares na água! Estenda os braços! Olhe para onde quer ir! Ensopados e salgados, meus circuitos neurais tentavam desesperadamente manter o controle de tudo: corpo, pipa, prancha, velocidade, equilíbrio. Até que, de repente, tudo silenciou e não pensei em mais nada. Nem o barulho do vento eu ouvia mais. Virou tudo uma coisa só – eu, o mar, o vento, os equipamentos. Nem percebi direito como isso aconteceu. A pipa, inflada, me arrasta e pela primeira vez está obediente. Minhas pernas, com um recém adquirido sistema de suspensão inteligente, adaptam a prancha ao sobe e desce das ondas. Olho pro horizonte, de peito aberto pro Atlântico. Posso ir assim, meio voando e meio surfando, para o lado que bem entender.
Tudo se encaixa tão bem que, pela primeira vez desde que resolvi aprender esse esporte , consigo relaxar e até pensar em outras coisas. E lembro da matéria que li há três anos na Outside norte-americana sobre o lugar onde estou agora, Cape Hatteras, e sobre a Real Watersports, supostamente a melhor escola de kitesurf de mundo, e grande responsável por aquele momento nirvânico. Na reportagem, intitulada “O windsurf foi cancelado”, o jornalista Michael Behar fala de quando, depois de muito esforço, entrou na “the zone” – um estado em que o velejo passa a fluir, como num clique. Ri, sozinha, no meio do mar, e gritei para meu professor, Sam Bell, que me acompanhava num jet ski: “Estou na zona!”
Foi a reportagem de Michael que me fez procurar a Real e a Cape Hatteras, no estado da Carolina do Norte (EUA). Eu havia feito seis aulas esparsas ao longo dos últimos três anos. E não tinha chegado muito longe, devo admitir. Aprendi o básico em Jericoacoara (CE), tentei de novo em Aruba, retomei em Caraíva (BA), depois em Ilhabela (SP). Após toda essa peregrinação, conseguia ficar de pé na prancha e velejar a favor do vento (arribar), mas não contra (orçar). E esse é o crux do esporte.
No Carnaval deste ano, fui para São Miguel do Gostoso (RN), um dos muitos picos de velejo sensacionais do Nordeste brasileiro, e passei cinco dias como criança em frente a vitrine de doces: babando. Às vezes eu conseguia alguns minutos de velejo tenso, só para depois me transformar num saquinho de chá, mergulhado e sacudido no mar pela pipa. Era o vento quem estava no controle, não eu.
Quando dava tudo certo, eu entrava no mar numa ponta da praia, ziguezagueava vento abaixo por uns cinco minutos, depois tinha que sair da água e caminhar de volta os 500 metros de areia até o ponto onde eu tinha começado – com a pipa no ar me puxando na diagonal e causando bolhas de sangue nos meus pés. Quando dava errado (e, acredite, há muitas maneiras de algo dar errado no kite, começando pela inconstância e imprevisibilidade do vento, e acabando na minha incompetência), o banho podia durar até uma hora: pipa caída no mar, correnteza me puxando, à deriva à espera do resgate caridoso de algum kitesurfista e windsurfista camarada. Além de me dar mal, eu ainda atrapalhava a alegria dos outros.
Não, não era divertido. E eu estava a ponto de desistir de vez, irritada, desanimada e com o orgulho ferido. Faço todo tipo de esporte desde pequena, por que diacho estava tomando essa surra, a essa altura da vida? Não tinha percebido, mas estava aprendendo a primeira lição do kite: humildade.
OK, ENTÃO EU PRECISAVA DE MAIS AULAS. Liguei para a Real Watersports e contei meu drama para Carl Giordano, diretor de marketing da escola, um nova-iorquino que pirou tanto com o kite que largou dez anos de carreira em Wall Street para morar em Cape Hatteras e trabalhar com o esporte. “Há poucos meses eu estava exatamente na mesma situação que você: muito perto de ultrapassar a barreira, mas sem conseguir deslanchar. Te garanto que você sai daqui sabendo”, ele afirmou.
Me animei. Vinte dias depois desembarquei em Norfolk (Virginia, EUA), peguei um carro alugado e dirigi por mais 2,5 horas até o Parque Nacional de Cape Hatteras, o mais visitado dos Estados Unidos, grande destino de verão dos norte-americanos. O lugar parece a realização do sonho delirante de um projetista fanático por kitesurf. A insólita geografia é perfeita para o esporte, em todos os sentidos. Dê uma olhada no mapa da página 87 e você vai entender. Hatteras fica no Outer Banks, um longuíssimo banco de areia, com 320 quilômetros de extensão. A seqüência de ilhas, conectadas por pontes, corre de norte a sul, paralela à costa da Carolina do Norte, antes de fazer uma curva de 90 graus e seguir de leste a oeste. As ilhas têm esse formato porque é bem ali que as correntes que vêm do norte e do sul do Atlântico se encontram.
Uma estrada de mão dupla, a North Carolina Highway 12, percorre toda extensão das ilhas, e de cada lado da estrada há pouco mais 200 metros de terra até a água. No lado do mar aberto, estão alguns dos melhores picos de surf da costa leste dos Estados Unidos, que recebem os swells oceânicos com força total e os transformam em ondas pesadas e tubulares. Do outro lado fica Palmico Sound: 55 quilômetros de mar liso e raso, na altura da cintura, separando a ilha do continente. Se você cair ali, em vez de quase se afogar tentando lidar com a pipa enquanto sua prancha fica para trás, simplesmente fica de pé, anda até sua prancha, coloca ela de novo nos pés, redecola e sai velejando de novo. E como em água rasa não navegam barcos de médio e grande porte, aquele piscinão de luxo fica reservado para brinquedos à vela e para os jet skis com que os instrutores da Real acompanham de perto o aluno, gritando instruções e garantindo a segurança.
Com tanto litoral, não há crowd. E há vento, muito vento. Sem montanhas ou árvores para bloqueá-lo, ele sopra insistente e consistente. Durante toda a semana em que estive lá, ele ficou acima dos 25 nós. E é assim quase o ano inteiro, vindo do continente ou do mar. Às vezes, o vento é até muito: a região já foi algumas vezes atingida por furacões que destruíram e inundaram tudo. Por isso as casas são todas elevadas.
Enquanto a maioria dos picos de kite depende que o vento venha de uma determinada direção, aqui, por causa da curva de 90 graus no banco de areia, sempre tem um lugar em que ele está na direção certa. O kitesurfista só tem que decidir se prefere um mar com ou sem ondas, e então ver onde é o melhor lugar pra velejar naquele momento. Com isso, a temporada de velejo nos Outer Banks dura praticamente o ano inteiro, com uma média e 20 dias de vento por mês. Quem pratica algum esporte que depende dessa força invisível, o ar em movimento, sabe o quanto isso é raro e precioso.
TRIP FORMAN, 41 E MATT NUZZO, 33, sabem muito bem disso. E por isso escolheram a vila de Waves, bem no meio do Outer Banks, para instalar sua escola de kite, uma das primeiras dos Estados Unidos.
Os dois se tornaram amigos quando davam aula de windsurf no estado norte-americano de Rhode Island. Em 1999, Trip teve o primeiro contato com o kite e correu para mostrar para Matt. Na época, o windsurf dava os primeiros sinais de cansaço. “Trip era uma figura importante da cena do wind, superapaixonado pelo esporte. Ele tinha uma van enorme, sempre cheia de pranchas gigantes em cima”, lembra Matt. “De repente ele aparece com o kite, botando pilha para eu aprender”, conta. Os dois foram desvendando o esporte, autodidatas. “Era o velho oeste do kite. Os equipamentos, às vezes, não funcionavam, e ninguém sabia direito o jeito certo de fazer as coisas”, ri.
Trip mudou para Hatteras em 1998, e foi quem levou o kite para a ilha. Matt foi logo depois, em 2000. No começo, cada um tinha a própria escola, até que decidiram unir forças. “Começamos eu e Matt, numa garagem, em 2001”, conta Trip. “Depositamos 100 dólares cada um numa conta bancária, instalamos um número 0800 e montamos o site. Conseguimos uns equipamentos em consignação para vender, outros como doação para dar aula, e fomos crescendo conforme a grana ia entrando”, completa Matt. Logo no começo convidaram Jason Slezak, nativo da Pensilvânia que também dava aula de kite na ilha, e que era companheiro de velejo da dupla. A Real era agora três amigos, determinados a fazer o kite voar por muito tempo – ao contrário do que estava acontecendo com o windsurf.
“Fiz windsurf de 1976 a 2000”, conta Trip. “Vi o esporte ir do nada a esporte do momento, e depois morrer. Não havia escolas e ninguém tentava formar novos praticantes. A modalidade foi ao topo, mas não havia nada embaixo. Só sobraram os equipamentos mais técnicos e extremos”, afirma. “No fim dos anos 1990, se você não estava velejando a 40 nós, nem surfando ondas de 10 metros, você não estava fazendo wind. Por isso o windsurf é quase um dinossauro hoje”, cutuca. Matt tem a mesma percepção. “Comecei a fazer wind quando tinha 14 anos, e estava sempre com uma galera de 40 anos, porque não tinha ninguém da minha idade praticando o esporte. Não havia espaço para iniciantes. Era preciso muito equipamento para praticar, muito tempo para aprender e muito vento para se divertir”, diz Matt.
A IDEA DO TRIO, então, foi criar uma escola que construísse uma base sólida do esporte. E para isso eles se inspiraram num modelo que funciona bem e se sustenta há séculos: o das estações de esqui. “Quando você chega numa estação de esqui, tem toda a infra de aulas, hospedagem e alimentação. Adaptamos isso para o kite. Você não precisa ficar correndo atrás de um instrutor, como acontece em muitas praias. Todo dia, às 9 da manhã, 30 deles estão aqui, esperando para ensinar alunos de todos os níveis”, explica Trip. “Depois da aula, pode comer, curtir e relaxar com outras pessoas que estão ali para praticar o mesmo esporte”. Os instrutores passam por treinamentos que a Real desenvolveu a partir dos cursos para guias de montanha. “Os instrutores são profissionais e ganham bem. Eu e Matt queríamos um lugar onde as pessoas pudessem transformar sua paixão em trabalho, e ganhar decentemente por isso”, diz.
Oito anos depois, a Real é hoje um verdadeiro império eólico, com papel dominante no mundo do kite. Além de maior escola do mundo – mais de 30 mil alunos já passaram por seus kitecamps, seis mil deles somente em 2008 –, ela é a principal revendedora de equipamentos dos Estados Unidos, já ganhou vários prêmios com sua série de DVDs instrucionais, e tem entre seus instrutores alguns dos melhores atletas da modalidade (Sam e Jason são dois deles). A Real é tão respeitada pela indústria do kite que as principais marcas pedem opiniões e sugestões da escola antes de fazer mudanças em seus equipamentos.
O ano passado foi especialmente bom. Trip e Matt foram apontados como duas das 10 pessoas mais influentes do esporte, segundo a revista Kiteboarding, e a Real entrou para a Ink 5000, que lista as pequenas empresas que mais crescem nos Estados Unidos. Hoje, 73 pessoas trabalham em tempo integral na empresa, que inaugurou ano passado sua nova sede: um prédio de três andares em frente ao “Slick” (“escorregadio”), uma área de água excepcionalmente lisa, e um dos picos favoritos dos kiteboarders que freqüentam a ilha. No térreo ficam a loja e as salas de aula teórica. Nos andares superiores os escritórios administrativos, de marketing e comercial – e uma bela sala de reunião de onde se vê a galera velejando. No gramadão em frente ao prédio, os alunos têm as primeiras aulas com a pipa, ao lado dos 12 jet skis que os esperam, prontos para entrar na água. A poucos metros, o recém-inaugurado Watermen’s Retreat, um lodge de alto padrão, hospeda alunos e não alunos que querem ficar no centro de toda a ação, e a poucos metros do mar. “Criamos um resort de vento”, resume Trip.
Toda essa estrutura só nasceu quando (e porque) o kite se tornou um esporte mais seguro. “Há 10 anos, só megatletas e megateimosos faziam kite. Era arriscado mesmo”, diz Trip. Jason Slezak explica melhor onde morava o perigo: “Os equipamentos não eram confiáveis. As linhas podiam ter comprimentos diferentes, a pipa podia explodir, a barra podia quebrar. Quem procurava o kite estava disposto a aceitar esse risco. Eram montanhistas, escaladores, caiaquistas e esportistas extremos que aceitavam essa responsabilidade”, diz.
Hoje, ufa, a coisa está tranqüila, a ponto deles afirmarem que podem ensinar qualquer pesso, de qualquer idade, mesmo sem experiência anterior em esportes de prancha e vento. “Posso te colocar na água com um vento superforte; se tiver algum problema, você simplesmente larga a barra e a pipa perde a força. Antes ela continuava te puxando, você tinha que conseguir se soltar, depois ir atrás da pipa, redecolar. Além disso, as pipas modernas são muito mais fáceis de redecolar quando caem na água”, diz Sam.
“Fico feliz”, respondi. Não sei se ele percebeu o sarcasmo em minha voz. Até então, eu nunca tinha conseguido colocar as palavras “kite” e “fácil” na mesma frase.
NO DIA EM QUE CHEGUEI a Cape Hatteras, ansiosa para cair na água, o anemômetro (que mede a velocidade do vento) marcava mais de 35 nós. “Melhor você relaxar hoje. Amanhã parece que vai diminuir um pouco e começamos as aulas cedo”, me disse Sam, escolhido para me levar das trevas à iluminação. “E agora temos reunião dos instrutores”, completou.
Subi para meu apê no Watermen’s Retreat e sentei na varanda para ver a galera velejando. Havia umas seis pessoas se divertindo horrores, cruzando o Slick de um lado pro outro, e às vezes para cima. Logo chegaram outros 10, e os vôos e manobras se intensificaram. “Parece campeonato, só tem pró”, pensei. “Será que vim pro lugar errado?” Descobri depois que a reunião dos instrutores tinha sido cancelada, porque o vento estava muito bom, e todos tinham corrido pra água e protagonizado o espetáculo que eu vi naquele fim de tarde. De certa maneira, acontecera um campeonato, sim – uma competição construtiva em que vários feras mostravam o que sabiam, forçando todos a buscar novos limites. “Se eu vejo o Sam fazendo uma manobra nova, não sossego enquanto não fizer também”, me disse Jason mais tarde. “Estamos à frente do esporte simplesmente porque passamos mais tempo na água”, completou Trip. Se aqueles caras não conseguissem me ensinar, era melhor eu aposentar a pipa.
Na manhã seguinte, ainda na cama, abri os olhos e já vi as bandeirolas da Real, que ficam no gramado dando a direção do vento. Elas pareciam engomadas, paralelas ao chão. Sam Bell me esperava no gramado, com a caneca de café aguado na mão. Contei a ele minha experiência anterior, e disse que meu objetivo era aprender a ir contra o vento, a recuperar minha prancha e a redecolar a pipa quando ela caísse. “Quero parar de passar perrengue”, resumi. Ele riu, como se eu estivesse pedindo para dar um passeio de unicórnio. “Vamos pra água ver em que pé você está”, respondeu.
Sam acaba de fazer 26 anos e passou quase todos os verões de sua vida em Hatteras, onde sua mãe nasceu, até mudar de vez para a ilha, em 2001. “Eu já surfava desde moleque. Quando mudei pra cá e vi as pessoas começando a fazer kite, pirei. Não sosseguei enquanto não aprendi. Tive que pedir demissão do meu trabalho como construtor, porque não agüentava ficar vendo a galera velejar e não ir pra água”, conta. Das obras ele foi para uma loja de equipamentos, e de lá para a Real. Sempre sorrindo e brincando com o piercing que atravessa sua língua, Sam é um dos poucos instrutores contratados em tempo integral da escola, e é também patrocinado por uma marca de equipamentos que paga um salário para que ele use os produtos. “Não curto competição”, ele me diz. “A única de que participo é a Triple S, porque é uma verdadeira reunião de amigos”, diz, sobre o evento que a Real organiza na ilha há cinco anos, somente com atletas convidados.
Depois de dar uma olhada no anemômetro (25 nós), Sam entra no prédio e volta com uma pipa tamanho 4,5. O tamanho corresponde à área de vela, medida em metros quadrados. Quanto mais forte o vento e mais leve o velejador, menor a pipa. Eu, com meus 56 quilos, nunca havia usado nada menor do que uma pipa 9, e agora ia cair na água com uma que era metade do tamanho. Vai vendo a força do vento.
Montei na garupa do jet e fomos para uma grande área de mar flat, sem ninguém por perto. De pé, com o mar na altura da cintura, exercitei o controle e me adaptei à pipa, bem mais arisca por ser menor. Depois de meia hora me observando, Sam se convenceu de que eu não iria me matar e me passou a prancha. Saí velejando, como já sabia fazer. A diferença estava na força e na constância do vento. Era como se eu tivesse saído de uma mobilete, lenta e sacudida, e montado numa motocross de 250 cilindradas.
Sam me acompanhava no jet, gritando instruções que eu aplicava na hora. Quando eu caía, ele pegava a prancha e entregava em minha mão, e em poucos minutos eu já estava velejando de novo. A idéia de Trip e Matt de usar jet skis é genial: o tempo em cima da prancha é muito maior, e você ouve as dicas do instrutor na hora, a tempo de se corrigir. Lembrei de Caraíva, onde depois de cada queda eu levava mais de meia hora para voltar à prancha, já que o professor, que ficava na areia, tinha que sair nadando e ir buscá-la para mim. Depois de duas horas, saí da água exausta e faminta – mas já sentindo que tinha evoluído. “Vai comer alguma coisa e daqui a duas horas voltamos pra água”, disse Sam. Me joguei nos tacos do Mojo, um café bem gostoso de frente para o gramado, onde a galera se reabastece para as sessions e se reúne para ver o por do sol.
Na aula da tarde, encaramos o meu fantasma: o tal do upwind (orçar), a grande barreira do som no kitesurf. Imagina você, preso a uma pipa, tentando ir contra o vento, contra a natureza e contra a lógica. Difícil pacas. Mas é preciso orçar para ganhar autonomia, se livrar das bolhas de sangue e poder se auto-intitular kitesurfista. Na cruel seleção natural desse esporte, quem persevera um dia aprende. Talvez aquele fosse o meu dia.
“O segredo de orçar é olhar para onde você quer ir e girar levemente os ombros nessa direção. Tem que afundar bem os calcanhares, pra prancha não descolar da água. Ah, e não esquece de deixar o corpo ereto”, começou Sam.
“Ok”, respondi, já confusa.
“Também não adianta já querer sair orçando, tem que ir um pouco a favor do vento e quando pegar velocidade, você vira contra o vento, girando os ombros. Mas tem que virar pouco, se virar muito você breca. Não pode ter ganância: pode ser que você demore umas três idas e vindas para voltar ao ponto que quer”, finalizou ele.
Respirei fundo, repeti mentalmente a lista de instruções, encaixei a prancha no pé e fui. Uma casa branca e linda na beira da praia era a minha referência. Eu tentava não deixar o vento me levar embora, para longe dela. Bem, nesse primeiro dia não rolou. O corpo ainda não conseguia executar todas aquelas ações ao mesmo tempo. Quando eu prestava atenção no calcanhar, esquecia do ombro, e vice versa. Lenta e irremediavelmente, eu fui sendo levada pelo vento e a casa branca ficou para trás.
Mas no dia seguinte foi diferente. Depois de um começo meio tenso, consegui aos poucos aplicar os detalhes de corpo, ângulo e equipamento. De repente ouço o grito de Sam: “Você está orçando!”, disse, feliz como se fosse ele próprio que tivesse conquistando essa vitória. Comecei a ir e vir em direção à casa branca, que agora ficava ali, paradinha no lugar. E foi numa dessas idas que entrei na zona.
SAÍ DA ÁGUA vibrando feito criança que aprende a andar de bicicleta. “Se você conseguiu orçar neste vento superforte, quando voltar para as condições mais amenas do Brasil vai ser moleza”, disse Sam. “Agora você precisa praticar, ficar o maior tempo que puder na água, em cima da prancha. Te aconselho a fazer downwinds nos próximos dias que ficar aqui”, me disse Sam. Ele estava me dando “alta” da escola.
Downwind é o downhill do kite: só alegria, adrenalina e diversão. Você sai de um ponto e vai ziguezagueando o quanto quiser até outro ponto, vento abaixo. Cape Hatteras tem dezenas de opções de downwinds – a Real fez até um mapinha, nos moldes dos mapas das pista de esqui, com percursos, quilometragens e graus de dificuldade.
Naquela tarde fomos de carro até Salvo, 5 quilômetros acima, e velejamos 1h30 até a Real. Daria para ter feito em 40 minutos, se o objetivo fosse velocidade – era só encaixar a pipa na área de maior pressão do vento e descer em linha reta. Mas eu queria praticar minha nova brincadeira, arribar, então demoramos mais. Ia em direção ao horizonte até a perna queimar, depois virava e voltada até começar a conseguir enxergar as pessoas na praia.
Fechei a session com drinques no café Mojo. Outros velejadores, que tinham acompanhado minha saga nos dois dias anteriores, brindaram comigo aquele grande dia: primeiro upwind, primeiro downwind. Logo Trip, Carl, Matt, Sam e Jason aparecem para a cerveja de fim de tarde. Conversamos sobre kite, claro, mas mais especificamente sobre o futuro da modalidade. Que caminho o kite tomará? Será que a proposta da Real de construir uma base sólida está se concretizando? “A última pesquisa de mercado, publicada em 2008 na revista Kiteboarding, diz que existe hoje meio milhão de praticantes no mundo”, diz Carl, o marqueteiro. “Acho que o kite veio para ficar.”
“A maioria dos alunos que nos procura tem de 20 a 40 anos, de todos os lugares do mundo e todos os níveis de experiência. Antes era só gente que vinha de outros esportes de prancha, e hoje tem muita gente que nunca fez nada parecido”, diz Sam, o instrutor.
“Acho que os esportes de água vão cada vez mais se fundir, e que a pipa será cada vez mais uma ferramenta, e não um esporte. Tem muito surfista aprendendo a usar o kite para adicionar o vento ao esporte que já pratica”, diz Trip, o visionário.
“Eu tenho usado o kite, em vez do jet ski, para surfar ondas grandes. Já fiz isso no Havaí, Indonésia, Papua Nova Guiné, e tem sido alucinante. Estamos na era de descobrir novos picos para kite em ondas”, afirma Jason, o big rider. “No tow-in, você se solta do jet ski e está livre, não precisa se preocupar com mais nada. Mas usa gasolina e depende de outra pessoa. Com o kite, é só você e o vento. E o vento te ajuda a sair da onda se você estiver numa situação complicada”, compara. “Além disso, o kite permite surfar alguns picos em que há arrecifes e o jet ski não pode andar.”
Vendo a galera reunida ali, conversando e se ajudando a desmontar e guardar os equipamentos, eu, a iniciante, penso que há um fator a mais a ser adicionado a esse mosaico. Acredito que o kitesurf merece e terá uma longa vida porque há empresas como a Real cuidando para que isso aconteça, e também porque a galera que pratica é genuinamente apaixonada pela esporte. Afinal, só quem quer muito aprende. Não há egos inflados e todo mundo valoriza os pequenos progressos de quem busca o esporte, porque todos já tiveram sua lição de humildade (como eu tive). Todos precisam de ajuda, seja para decolar ou aterrissar a pipa, seja para ser resgatado quando alguma coisa dá errado. É uma “peneira” cruel e maravilhosa, e estava muito feliz de finalmente ter passado nela.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2009)
MAIS QUE VENTO: Cape Hatteras tem também as melhores ondas da costa leste norte-americana. Aqui, Trip Forman se diverte num downwind até o sul da ilha
ESCORREGADIO: O Slick, uma das áreas favoritas do velejo da galera que vai para Cape Hatteras, e sala de aula para os alunos da Real
DE PERTO: Sam Bell, o instrutor que ensinou a autora desta reportagem, num momento de lazer
TEM DE TUDO: Além do mar aberto, as ilhas possuem vários canais para o velejo, que podem ser explorados em downwinds quase infinitos
GALERA: Andre Philip, o melhor kitesurfista do mundo, passa alguns meses por ani em Cape Hatters, e este ano competiu no Triple S, campeonato só para convidados que a Real realiza todo ano