Morando na bike


RAINHA: Dani, feliz e realizada, depois de se tornar a primeira latino-americana a completar e vencer a prova

Por Fernanda Franco
Foto por Gilvan Barreto

Go Outside: Você já tinha ouvido falar da Race Across America?
Dani Genovesi: Conhecia a prova do meu primeiro contato com o ciclismo. No final de 1999, começo de 2000, fiz um curso de formação de instrutores de spinning aqui no Brasil, e o criador da modalidade, o Johnny G, falou muito dessa prova. Ele criou a bicicleta de spinning para treinar e conseguir concluir a RAAM na sua segunda tentativa. Eu sempre fui muito competitiva, participava de provas bodyboard, corrida e jiu-jitsu, e já sonhava com a RAAM. Cheguei a tentar fazer em dupla, mas não consegui apoio. Quando soube que o 24 horas de Fortaleza [em novembro de 2008] seria a seletiva da RAAM aqui no Brasil, cancelei minha inscrição no La Ruta dos Conquistadores, uma prova de mountain bike na Costa Rica que iria acontecer exatamente no mesmo final de semana. Optei pelo 24 horas e consegui a vaga na RAAM.

Depois que você se classificou, como foi seu treinamento?

Como já era fim de ano e de temporada, eu estava treinando, mas não muito forte. Meu treino mais longo era de três horas. Em dezembro e janeiro, treinei bastante mountain bike. Em janeiro fui para o Picoerá, uma prova de mountain bike de quatro dias no interior do Piauí em que você enfrenta um calor desgraçado, já pensando na RAAM. Em fevereiro fui deixando o mountain bike de lado e aumentando os treinos de estrada, mas o mais longo ainda era de 6 horas. Em março, quando encontrei o Claudio Clarindo [ciclista brasileiro que completou a prova duas vezes na categoria solo – em 2007 e 2009, quando bateu o recorde brasileiro na competição], tudo mudou. Ele me orientou em relação a como treinar para a RAAM e elaborou uns simulados para eu fazer. Junto com meu treinador, Valter Tushi, montamos uma sequência. Minha meta na prova eram 400 quilômetros por dia e no final do treino estava fazendo 1.200 quilômetros por semana. O maior volume que fiz foram 1.700 quilômetros em uma semana. Teve um treino muito legal que fiz com minha equipe, dando a volta no estado do Rio de Janeiro. Pedalamos o percurso de 1.000 quilômetros de uma prova que vai rolar no ano que vem chamada Tour do Rio, nos moldes do Tour de France. Também fiz treinamento físico com o Orlando Cani, duas vezes por semana, durante uma hora. Ele mistura ioga, alongamento, relaxamento e agilidade. Não usava nenhum acessório, só o peso do corpo.


O que mudou com as dicas do Claudio Clarindo?

Eu estava muito presa em planilha, treinamento e progressão, mas na verdade deveria passar o maior tempo possível em cima da bicicleta. Qualquer brecha tinha que sentar na bike. Não adianta ter planilha. Você tem que fazer tudo na bike, descansar pedalando, se locomover de bike. Tem que viver na bike.

O que você trouxe da sua experiência de outros esportes para a RAAM?

Experiência faz toda diferença na RAAM. Na categoria solo não tem moleque. A mulher mais nova tinha 38 anos. Das provas de corrida de aventura eu trouxe o astral da equipe, de estar num momento de sofrimento, sem dormir, num super desconforto e não deixar de aproveitar o que está ao redor, como o visual e as pessoas. Senão é sofrimento do começo ao fim – porque vai haver sofrimento, não tem jeito. Até do jiujitsu eu usei minha experiência. Na luta, às vezes, você está num sufoco, sem buraco para respirar. Aí você se acalma e sabe que daqui a pouco vai ter uma saída. Então eu sabia que tinha que tentar olhar para o lado e aproveitar o momento, sem ficar presa ao que estava faltando. Curti a paisagem, as brincadeiras com o pessoal do apoio. Foi divertido. A prova foi pior do que qualquer coisa que já fiz. Foram muitos dias, quase duas semanas. Às vezes, de manhã pegava um calor infernal e de madrugada um frio de bater queixo. Era muito desgastante. Só ali mesmo.

Como você formou sua equipe de apoio, de 10 pessoas, que contava com a sua filha, marido, mecânico de bike, médico e mestre de ioga?

Foi o mais difícil de montar. Tive ajuda de um grande amigo corredor de aventura, o Rafael Campos, que foi fundamental na visão de como seria a equipe idelal. Como capitão da equipe, ele foi imprescindível, pois botava as coisas para funcionar e liderava o grupo. Era muita gente, não foi fácil de coordenar dez pessoas juntas por 11 dias, com pouco sono, correndo atrás de um objetivo. Mas todos se entrosaram bem. Apesar de ninguém ter experiência na RAAM, alguns já tinham lidado com ausência de sono. O Orlando Cani não entrou no início da formação da equipe. Foi o patrocinador que me sugeriu que eu levasse um massagista, aí pensei em levar o mestre e foi fundamental para minha recuperação diária. Eu só precisei me preocupar em pedalar.

Como você definiu seu ritmo ao longo da prova?

No primeiro dia consegui pedalar quase 500 quilômetros, porque larguei muito forte. Estava ansiosa e minha frequência chegou a 170 batimentos por minuto. Percebi que não podia seguir nesse ritmo, porque não era uma prova de quatro horas. Mas só consegui me controlar no dia seguinte. Teve dois dias em que fiz 460 quilômetros. Íamos controlando a quilometragem e pensando na logística para dormir. Perto da meta diária, a equipe de apoio procurava um hotel em beira de estrada e eu descansava entre três e quatro horas. Teve um dia em que fiz 386 quilômetros, senão eu ia dormir em altitude, e seria ruim para mim Percebi que estava me recuperando bem, então nas duas últimas duas noites dormi apenas duas horas no motor home que nos servia de carro de apoio.

E quanto às suas adversárias? Você se preocupou com elas ao longo da prova?

Por recomendação do Clarindo, não queria saber onde elas estavam. Mesmo gostando de competir, não me preocupei com isso. No terceiro dia, alguém não se aguentou e me falou, e eu quase rosnei. Mas depois que passei a Janet xxxxxxxxxxx, decidi que queria abrir quatro horas de vantagem para poder descansar e ainda relargar na frente dela. Aí ficava perguntando toda hora a quanto tempo ela estava de mim. Acabei me envolvendo com esse espírito competitivo nos últimos 800 quilômetros, quando percebi que estava melhor fisicamente.



VARIAÇÃO: Dani enfrentou no mesmo dia temperaturas entre 5 ºC e 35 ºC

Então a sua ultrapassagem não foi planejada?

Não, não foi. Todo final de tarde eu juntava quem estava no carro de apoio que me seguia para tirar uma foto. E no dia que a ultrapassei, uma das pessoas do apoio sabia que a adversária estava 10 minutos na frente. E eu parada lá tirando foto, mas ninguém me avisou. Depois de uns 15 minutos disso eu a ultrapassei pela primeira vez. Foi quando vi que estava bem fisicamente. Fui falar com ela e ela não conseguia nem responder. Ela estava pedalando pessimamente e eu solta na bike, tinha acabado de dar umas gargalhadas. Por volta da meia-noite, parei num hotel para dormir. Achei que ela fosse abrir na madrugada, porque quando eu descansava ela me passava, pois ela dormia menos do que eu. Nesse dia quis dormir apenas três horas e acordei planejando alcançá-la na hora do almoço. Mas com 20 minutos de pedal vi o carro de apoio dela e a passei de novo. Foi só manter a estratégia e segurar a ansiedade que a distância foi aumentando naturalmente.


Em algum momento você teve medo de não completar a prova?

Sim, quando faltavam 180 quilômetros. A equipe toda já estava comemorando, quase me abandonando, naquele clima de “já ganhou”, quando meus joelhos começaram a doer muito, pedalando leve ou forte. Consegui pedalar até um ponto de apoio da prova a 120 quilômetros da chegada. Descansei duas horas, fiz muito gelo e tomei uma injeção de antiinflamatório. Como recusei analgésico durante a prova, acho que nessa hora fez efeito. Aí deu para suportar até o final.

Como era sua alimentação?

Quem elaborou minha alimentação ficou no Brasil. Levei um médico para me monitorar, porque a orientação da minha nutricionista era de que eu não podia perder mais que 10% do meu peso. Usava isotônicos e cápsula de sal para evitrar a desidratação. De hora em hora, botava alguma coisa pra dentro como gel, nozes e barrinha. Fazia duas refeições por dia combinando arroz, batata, frango, macarrão e atum. No final do dia eu repetia o cardápio do almoço ou comia qualquer coisa que tivesse vontade, como sanduíche ou pizza. Nem precisava parar para comer pizza, juntava duas fatias e pedalava comendo. Tudo funcionou muito bem. Até meu intestino funcionou como um reloginho.

O que você acha que foi mais importante para a sua vitória: treinamento, alimentação, logística, equipe de apoio?

Desde que acabou a prova eu fico pensando nisso. E acho que o êxito se resume em ficar atento aos detalhes. Cada um estava responsável por algum detalhe: navegação, manutenção da bike, estratégia. Isso tudo junto junto fez a diferença. Tiveram as reuniões que fizemos antes, o momento de formar a equipe. A recuperação é muito importante também. O Orlando me fez massagem até eu dormir todas as noites. Me pegava destruída e me mexia como um boneco. Me sentia uma marionete na mão dele. Ele me botava na cama, fazia um reiki, e eu apagava. Depois me acordava, começava com os exercícios de alongamento e aquecimento, e me botava em cima da bike. Ter marido e filha lá também foi importante. Minha filha cuidava das minhas coisas e preparava o café da manhã. Também tive tranquilidade e ajuda para os treinos, pois quando pedalava 400 quilômetros, voltava à noite e precisava de um carro comigo. Minha mãe e meu filho me deram a maior força para cuidar do meu filho pequeno. Foi um trabalho em equipe. Definitivamente eu não consegui isso sozinha.

O que você viu de sofrimento que te impressionou?

Fiquei abismada de ver os caras não aguentarem segurar o pescoço. As pessoas tinham dificuldade de descer da bike, de subir de volta. Me surpreendi comigo mesma: sofri de dor na perna, no joelho, mas não cheguei a ficar naquele estado lastimável. As dores que surgiram no meu corpo não progrediram. Nos primeiros dias que pedalei muito forte, minhas pernas ficaram muito doloridas. Mas depois do terceiro dia acabou a dor na perna. Andava normalmente, subia e descia do motor home sem precisar de ajuda. Ri o tempo inteiro como uma fuga, um remédio para tirar a tensão. Minha ideia era fazer o filme virar outra coisa, como o roteiro de A Vida É Bela.


Você faria a prova de novo na categoria solo?

Até dois dias atrás, eu achava que não. Mas ontem eu estava conversando com um amigo sobre a prova e quando ele começou a falar fui vendo as coisas com outros olhos. Tenho vontade de fazer em equipe, porque solo, se eu fizer de novo, nunca será como essa. Foi tudo muito encaixado. Acho que não iria ser tão legal como foi o entrosamento do momento, a equipe. Fazer em equipe é uma possibilidade – talvez uma equipe mista, ou mesmo quatro mulheres para fazer história.


Qual o conselho que você daria para quem vai participar dessa prova na categoria solo?

Eu repetiria exatamente o que o Clarindo me falou. A pessoa tem que encarar a bike como uma filosofia de vida. Se vai sair, deve usar a bicicleta como meio de transporte. Ter um rolo em casa ou uma bike de spinning, sentar nela e ficar o máximo possível também é bom. No jantar que a gente teve na véspera da largada, veio um senhor, que já tinha tentado seis vezes completar a prova, falar comigo, que me disse exatamente a mesma coisa: só saia da bike pra dormir e fazer as necessidades. Você vai ter que encarar seu sofrimento, o mal estar e a dor pedalando, e não fora da bicicleta.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2009)