Dia sem fim


PÉ NA ESTRADA: Trecho de um dos 800 quilômetros da Dalton Highway, paralela ao oleoduto que transporta o petróleo do Ártico para o resto dos EUA
(Foto: Paul A. Souders)

Por Laís Duarte
Fotos Rogério Cunha de Paula

LONGE É UM LUGAR QUE NÃO EXISTE até se chegar lá: um pedaço de chão onde um dia não se resume às 24 horas do relógio. Ali, pode levar seis meses até o sol se esconder no horizonte. Noites não amanhecem durante o outro semestre – é a noite eterna, ou o darkness, como dizem os moradores. No inverno de escuridão as temperaturas atingem 40 graus negativos. A neve pinta de branco montanhas e lagos, e embala o sono dos animais. Ao sul, sob a chuva implacável, a águia, símbolo norte-americano, namora as geleiras azuis. No extremo oposto, a raposa branca se diverte na vegetação. Imensas, no Alasca, são as expectativas e a tranquilidade. O maior estado dos Estados Unidos foi comprado da Rússia há 140 anos por US$ 7 milhões, uma pechincha. Nesse gigante cravejado de rochas e gelo vivem 626 mil habitantes. Muitos são forasteiros que desbravaram a terra chucra à força em busca de ouro e petróleo. Outros tantos são esquimós, americanos de uma América invisível, homens e mulheres franzinos, calorosos em meio ao frio. Nos dialetos locais não existe uma palavra para expressar “frio”. Não se conhece nada diferente.

Os nativos habituaram-se a viver do que a natureza oferece. Para eles, a caça e a pesca são permitidas. Salmão fresco é quase “arroz-com-feijão”. Tudo é aproveitado: o couro do peixe é costurado com precisão pelas mulheres, vira uma capa de chuva. Das peles do urso, lobo ou lontra, tratadas por mãos habilidosas, surgem botas, agasalhos.

Ole Jacks, da etnia inuit, cresceu vestindo os casacos costurados pela mãe. “Caçava e pescava com meu pai. Na natureza, o homem é o que quiser ser. É livre”, conta o inuit, hoje com 74 anos. Ole migrou para Anchorage, a maior cidade da região, onde é o representante da tribo: vende peles e artesanatos feitos com marfim de morsas e barbatanas de baleias. São obras de arte tradicionais entre os nativos, e protegidas por lei. Parte do que arrecada na loja envia para a vila de onde veio. Prova ser um esquimó cosmopolita sem nunca ter saído do Alasca: conhece gente do mundo todo e coleciona moedas estrangeiras. Animado pelas coincidências batendo à porta, mostra a nota de R$ 1 presa à parede. Acima de tudo, o hoje sorridente senhor se orgulha de ter nascido homem. “O mundo não se abre para as mulheres”, define. “É tudo mais fácil para os homens”.

Seguir para o norte do estado é descobrir que o que parece inóspito pode transbordar vida. No início da viagem, baleias belugas enfeitaram a paisagem. Depois, montanhas emolduraram a estrada, quietas e fascinantes companheiras. Raras são as cidades, os postos de gasolina, os hotéis, os bares. Uma casa ou outra ladeia a rodovia, sempre decorada com chifres de alces e cabeças de renas. Ao cruzar o Círculo Polar Ártico, a solidão é o contrapeso do cansaço. Apenas um outdoor mostra que, a partir dali, o viajante está dobrando o planeta.


VIDA ANIMAL: Raposa vermelha nos campos do Ártico

(Fotos: Rogério de Paula)

QUEM SE AVENTURA A CORTAR O ALASCA enfrenta a famosa e escorregadia Dalton Highway. São 800 quilômetros de rodovia onde o asfalto respinga aqui e ali. Boa parte do trajeto é de permafrost, um terreno que, ao longo dos milênios, prensou camadas de vegetação, minerais, terra e gelo. Com o aquecimento global, em alguns trechos o solo “derrete” sob os pneus. Perigoso? Nem tanto. É possível dirigir horas a fio sem encontrar um carro sequer, mas caminhões a serviço da companhia petrolífera passam a mil.

Ao lado da estrada, um longo oleoduto atravessa o estado, desenhado no sobe-e-desce das montanhas. Foi construído na década de 1970 para levar o petróleo do Ártico (a maior reserva em território americano) até a região de Valdez, no sul do Alasca. A estrutura de metal já faz parte do ambiente para os animais. Bois-almiscarados, ameaçados de extinção, descansam sob a tubulação. A família de lobos cinzentos passeia por ali sem pudores. Castores nadam serenos nos lagos.

Ali perto fica Nenana, uma vila florida que viu Joanne Hawkins nascer. Desde que se entende por gente ela sobrevive graças à loja de souvenir e à música. Com vários cedês gravados, toca banjo em um conjunto da cidade. Mas não é a simpatia da proprietária o maior atrativo para os visitantes. Cabeças de peixes, secas e geladas, penduradas em um varal, aguçam a curiosidade. Para os forasteiros a placa explica: o couro dos peixes passa o verão exposto às nesgas de sol. No inverno, a pele seca é moída e armazenada. Servirá de ração para os cães que puxam trenós sobre a neve, um dos meios de transporte mais comuns naqueles confins de mundo. E para quem acusa os locais de maus-tratos aos caninos, a justificativa vem a seguir: a quantidade de nutrientes no peixe seco é suficiente para garantir a saúde dos melhores amigos do homem.

No inverno, Joanne fecha a loja, escolhe um destino quente no mapa e faz as malas. Além dos esquimós, poucos são os que se arriscam a permanecer no Alasca durante a escuridão. Em Denali, vilarejo construído para oferecer um mínimo de infraestrutura aos turistas que visitam o parque xará da comunidade, só os sinais de trânsito trabalham nessa estação. Piscam o farol amarelo durante seis meses consecutivos, como se soubessem que ninguém vai passar por ali. Para fugir das nevascas, todos abandonam as casas. O hotel e os restaurantes têm amplos cartazes nas portas informando aos desavisados que só funcionarão quando o sol voltar. Denali se torna, oficialmente, uma cidade fantasma.

Quanto mais ao norte, mais frio. Quanto mais frio, mais deserto. Não desaparecem somente as pessoas. As árvores são cada vez mais raras, até sumirem. Não há florestas no fim das Américas. O último pinheiro da estrada virou ponto turístico: recebeu uma placa com o título de Última Árvore dos EUA.

No extremo norte do Alasca, onde só restam arbustos na paisagem, uma cidade vive para abastecer um país. De Deadhorse (Cavalo Morto), na baía de Prudhoe, saem 30% do petróleo consumido pelos norte-americanos. A vila tem hoje cerca de 400 habitantes, mas nenhum deles mora exatamente ali. Tudo existe em função da extração do óleo. Operários trabalham em escalas de duas ou três semanas e folgam no sul, pelo mesmo período. Não há crianças, nem velhos. Não há clubes, escolas, cinemas. Apenas a infraestrutura montada pela companhia de petróleo para atender às necessidades básicas dos funcionários.

Quem aporta em Deadhorse está no topo do mundo, mas não pode vê-lo por si só. O encontro do solo americano com o oceano Ártico é área de proteção nacional. É preciso autorização do governo para se aproximar do mar. A beleza do espelho d’água se unindo às pedras da praia dá a Lacey Irwin a sensação do sonho conquistado. Aos 24 anos, ela descobriu o próprio destino na parte de cima do mapa. Lacey é natural do estado de Montana (EUA). Aceitou de bom grado o convite para ser uma das poucas mulheres de Deadhorse. Ela exercita a enorme capacidade de adaptação às imposições da natureza: aprendeu a lidar com os meses de noite sem fim e com a insônia que assola os moradores da região enquanto o sol não se põe. Lacey é atendente do mercado.

Sua única preocupação: ursos-polares que, às vezes, dão o ar da graça em pleno horário de expediente. “É como ser militar. Moramos isolados, longe da família. Com a diferença de que somos bem pagos pelo serviço. E tem mais: ver a aurora boreal é inesquecível”, elogia. Durante o verão que sustenta “agradáveis” 5 graus positivos no termômetro, a balconista nem liga de fazer hora extra. Na noite eterna, quando a aurora boreal tinge de verde, amarelo, lilás os céus, Lacey sorri feliz. Ela sabe que o fim do mundo não é ali. No Alasca as Américas estão apenas começando.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2009)







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