LEVOU UM ANO DE TRABALHO DURO, mas em 17 de dezembro de 2008 o escalador norte-americano Chris Sharma finalmente conseguiu encadenar (escalar sem cair ou descansar) pela primeira vez a via Golpe de Estado, no município espanhol de Siurana, na província de Girona. “Foi bem mais difícil do que todas as rotas 9a+ [graduação francesa que equivale a um XX no Brasil] que fiz até hoje”, contou, justificando sua proposta de graduar a via como um 9b, o que a tornaria uma das mais difíceis do mundo. Três meses antes, Sharma dera a mesma graduação a um outro projeto arrematado na Califórnia, o qual batizou de Jumbo Love.
Estabelecer o grau de dificuldade de uma via causa polêmica no esporte. O primeiro atleta a encadenar a via recebe a recompensa de sugerir a graduação daquela rota, já que foi ele quem sentiu nos músculos a exigência de força e técnica desde a primeira até a última agarra, sem descanso ou queda. Mas, até outra pessoa completar a mesma via, a avaliação não passa de uma especulação – principalmente quando o nível proposto é alto, como no caso de Sharma.
A febre de apadrinhar uma via – e suas divergências – não é assunto recente. Um dos casos mais famosos aconteceu em 1996, quando o francês Fred Rouhling causou espanto na comunidade escaladora ao afirmar que seu projeto Akira (uma via em Charentes, França) merecia graduação 9b, sendo que não existira nem um 9a+ naquele ano. Ou seja, ele simplesmente pulou um grau, potencializando sua conquista. Como ninguém repetiu a via e faltam documentos que comprovem o feito, pairam dúvidas quanto à graduação e à sinceridade do francês. “Sempre haverá discordâncias, já que o grau da via deve ser estabelecido depois de um consenso entre diversos escaladores que dominam aquele grau”, explica o escalador brasileiro Eliseu Frechou, responsável por abrir algumas das vias mais difíceis do país, como a Fullon, em Minas Gerais, um 10a confirmado por quem a encadeou.
Outro problema é que, quando se trata de um nível elevado, existem poucos escaladores gabaritados a fazer o test-drive, confirmando a pré-graduação. Não é sempre que os melhores do mundo estão dispostos a se aventurar em vias alheias, dando a cara a tapa e tendo chances de fracassar. “Tem dia em que você está ‘corajoso’, noutro ‘medroso’”, explica Eliseu. “Muitos fatores influenciam o corpo e a mente dos escaladores na rocha, e por isso é comum haver divergências”, explica.
Outro escalador brasileiro, Marcio Bruno, esteve recentemente no Frey, uma frequentada montanha de rocha na Patagônia Argentina, e constatou a diferença da graduação com as próprias mãos. “Em enfiadas com regletes, que são agarras minúsculas, a graduação era levemente aumentada, ou seja, exceto pelos regletes, a via era mais fácil do que o grau proposto”, conta. “Mas essa imprecisão acaba sendo uma das peculiaridades da escalada”, conclui o paulista.
As tentativas de estender os limites da escalada esportiva sempre existiram, como fica evidente no quadro a seguir. A vantagem dos tempos modernos são as caprichadas produções de vídeo, que registram os feitos e ajudam a acabar com as dúvidas em relação a uma graduação – como o recém-lançado DVD Dosage V (produtora, site e preço), que registrou o duro trabalho de Chris Sharma na Golpe de Estado, e fez com que a comunidade acreditasse que ele realmente completara um 9b.
Linha do tempo
A evolução da graduação nas duas últimas décadas
>> 1984 a 1991: O alemão Wolfgang Güllich fez crescer quatro vezes a tabela da escalada esportiva mundial em menos de uma década. Em 1984 ele inaugurou um 8b pela tabela francesa (via Kanal im Rüchen, Alemanha). Em 1985 fez um 8b+ (Punks in the Gym, Austrália). Em 1987 sugeriu o primeiro 8c (Wallstreet, Alemanha). Mas ele é mais lembrado pela Action Directe (em que país?), a reconhecida, testada e aprovada primeira via 9a do mundo.
>> 1990: Um ano antes da Action Directe, o inglês Ben Moon estabeleceu o primeiro 8c+: a Hubble (Inglaterra).
>> 1995: O francês Fred Rouhling sugere o primeiro 9b do mundo. A via Akira nunca foi repetida e, na época, muitos escaladores receberam a notícia como uma piada e o tacharam de farsante.
>> 1996: Os brasileiros Helmut Becker e Luis Cláudio Pita iniciam os trabalhos de abertura da Coquetel de Energia, o primeiro 8b+ da América Latina (primeiro 10c pela tabela brasuca). Helmut só a encadenou no final de 1998. “A maioria das pessoas não enxergava a menor possibilidade de escalar ali”, lembra ele, que deixou a via de lado durante alguns anos por falta de técnica para superar o crux (o movimento mais difícil de toda a rota). “Foi uma jornada fantástica, que eu ainda olho com saudade”, relembra.
>> 1998: O espanhol Barnabé Fernandez sugere um 9a+ para a Orujo, encadenada em Málaga (Espanha).
>> 2001: Chris Sharma deixa a comunidade boquiaberta ao encadenar a francesa Biographie, um 9a+. Na França, quem abre a via dá o nome; no entanto, pelos padrões norte-americanos, Sharma ganhara o direito de rebatizá-la depois de encadenar, e a chamou de Realization. Hoje a rota é conhecida pelos dois nomes e já ganhou cinco repetições (Sylvain Millet, Patxi Usobiaga, Dave Graham, Ethan Pringle e Ramón Julián Puigblanque).
>> 2003: No estado do Colorado, o norte-americano Tommy Caldwell conclui a Flex Luthor, também graduada em 9a+. “Foi a coisa mais difícil que já fiz na vida”, declarou na época. No mesmo ano, o japonês Yuji Hirayama completava a Flatmountain (9a+), a mais difícil do oriente. Na Espanha, o polêmico Barnabé Fernandez propôs 9b+ para a Chilam Balam. Muitos desacreditaram que ele concluíra uma via deste nível, já que faltara comprovação.
>> 2004: Depois de 15 anos, o inglês John Gaskins volta ao projeto Violent New Breed, um 9a+ na Inglaterra, e, mais preparado tecnicamente, consegue encadená-la. Na Suíça, François Nicole propõe 9a+ para a Bimbaluna.
>> 2005: A espanhola Josune Bereziartu completa a Bimbaluna, ratificando o grau sugerido por François.
>> 2007: Dani Andrada sugere 9b para a encadenada Ali-Hulk, em Rodellar (Espanha). Esta via é um boulder estendido: o escalador começa praticamente sentado no chão (como num boulder), mas a via tem mais de 20 movimentos, o que a caracteriza como uma rota para cima (por isto a graduação tradicional e não de boulder, mesmo ela sendo feita sem corda).
>> 2008: Chris Sharma mostra ser o Güllich do século 21. Depois de finalizar a Jumbo Love, na qual trabalhara desde abril de 2007, o rapaz voou para a Espanha e se deu bem na Golpe de Estado, também sugerida como um 9b.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2009)
O MELHOR DO MUNDO: Chris Sharma, que provavelmente subiu as vias mais difíceis do planeta
Foto por Corey Rich