Ouro de brotas


CHOCOLATE: Nas águas escuras do Mendoza, a equipe brasileira Alaya Bozo D’água faturou o ouro e a pontuação máxima do pan-americano

Por Fernanda Franco
Foto por Rodolfo Maschio

SER O MELHOR DO MUNDO em algum esporte traz bônus e ônus. O bônus: obter respeito e reconhecimento pelo bom desempenho, objetivos almejados por quase todo atleta. O ônus: estar sempre à prova, sentindo-se desafiado a todo instante. Foi nessa condição que a equipe brasileira de rafting Alaya Bozo D’água chegou a Mendoza, na Argetina, para o Pan-Americano do esporte, que aconteceu entre 27 e 29 de novembro deste ano. Atuais campeões mundiais e também pan-americanos no último campeonato em 2006 (aliás, eles ganharam todos os campeonatos de que participaram desde 2005), os nove rapazes de Brotas (SP) chegaram à Argentina com a responsabilidade de preservarem o favoritismo. Muito forte e técnica, a equipe tinha que provar que estava segura e era humilde o suficiente para suportar a tensão. “Todas as outras equipes queriam dar uma beliscada na gente. Um segundo a menos em qualquer disputa era igual a uma vitória para a equipe adversária”, conta Rafael Andrade, o Leão, sobre o clima que rolou por lá.

Para se preparar para o campeonato, a Alaya passou dez dias em Bariloche, também na Argentina, entrosando a remada nas águas do rio Manso, de características semelhantes às do rio Mendoza: ondas grandes e temperatura baixa. Lá eles já perceberam a moral que os Bozos têm. “Fomos recebidos como estrelas e demos muitas entrevistas. Não esperávamos por isto”, conta Fabio Lourenção. Já em Mendonza, eles se depararam com um rio de corredeiras classes III e IV que estava com o nível acima do normal por causa do calor que derretia a neve das montanhas. Suas águas escuras, parecidas com uma calda de chocolate, vêm do derretimento de neve e gelo dos Andes, arrastando muitos sedimentos e terra.

A quantidade de equipes deste Pan em relação à última edição, realizada na Costa Rica em 2006, mais que dobrou: foram 16 times masculinos e nove femininos contra sete e três da edição anterior. Os outros concorrentes ao título eram as equipes locais da Argentina, acostumadas a remarem neste rio, e as boas equipes da Costa Rica e do México.

No primeiro dos três dias de prova, o capitão Lucas Coré e seu time demonstraram o resultado do consistente trabalho em equipe que a Bozo vem realizando. Na prova de sprint (na qual dois botes largam juntos e o mais lento é eliminado) eles ultrapassaram com facilidade a equipe dois da Argentina, na primeira bateria. Já na disputa contra a Venezuela, a Bozo largou atrás por um erro da organização, e só conseguiu ultrapassar a adversária na última curva, garantindo a vaga para a semifinal. “Quem ganha a bateria tem direito de escolher o lado da margem da largada seguinte. Como tínhamos escolhido o lado direito na anterior, a organização supôs que escolheríamos o mesmo lado. Só que a linha do rio havia mudado e por isto largamos atrás, tendo que buscá-los. Foi difícil chegar na frente”, diz Leão sobre a suada vitória sobre os venezuelanos, que depois ainda sofreram uma penalização de 20 segundos por fecharem o bote brasileiro.

A dificuldade desta bateria só atiçou a raça dos brasileiros e os times seguintes, do Chile e da Costa Rica, não tiveram chances: o primeiro lugar do sprint com a equipe de Brotas, aumentando a confiança do grupo. “Nos superamos mentalmente e seguimos sintonizados para o restante da prova”, diz Leão.

No dia seguinte, na prova de slalom (em que um bote por vez deve contornar uma série de balizas), apenas a equipe brasileira e a do México zeraram a prova, não tocando nenhum dos obstáculos. E para finalizar o último dia, na prova de descenso (na qual quatro botes seguem juntos rio abaixo), os brotenses largaram forte, abrindo uma enorme diferença, e terminando cerca de 40 segundos na frente da Costa Rica.

Ao vencer todas as modalidades, a Alaya Bozo D’Água finalizou a competição com a pontuação máxima de 1.000 pontos e angariou mais um título para o currículo. “O campeonato na Argentina não foi o mais técnico, mas foi o mais difícil psicologicamente. Fomos testados e desafiados o tempo todo”, desabafa Leão.

Mesmo sendo as estrelas do evento, os brasileiros não se negaram a dar dicas aos adversários de como empunhar o remo ou sentar no barco, apadrinhando, por exemplo, uma jovem equipe da Venezuela durante todo o campeonato. “Mas não entregamos 100%”, brinca Fabio. Para Jean-Claude Razel, treinador e administrador do time desde 2005, os brasucas tiveram um excelente desempenho principalmente por causa da maturidade adquirida. “Eles não estavam acostumados com a pressão, mas lidaram muito bem com isso lá.” Agora, o próximo desafio é o campeonato mundial em maio, na Bósnia, onde eles defenderão o título conquistado na Coréia do Sul, em 2007.

Uma corredora de aventura no rafting

Por Silvia Shubi Guimarães

EM AGOSTO DE 2008 fui convidada para fazer parte da equipe brasileira feminina de rafting, a Brasil Canoar, que ganhara aqui a vaga para representar o país no Campeonato Pan-Americano na Argentina, em novembro. Além de mim, a equipe foi formada por Lucinéia Mariano, a capitã, mais Fátima de Oliveira, Camila de Araújo, Patrícia Linger, Maia Midori, Mônica Cidras e Gabriela Garuti. Era tudo novidade para mim: minha primeira competição de rafting, eu não conhecia o público e não tinha idéia do nível das equipes e dos competidores. Então, minha expectativa era zero. Eu sentia apenas muita motivação e ansiedade.

Estou acostumada a remar, mas treinar especificamente para o rafting foi uma novidade. Ao todo, foram três meses de treinos até o dia 24 de novembro, quando chegamos a Mendonza. A competição foi nas proximidades de Pueblo del Rio – como o próprio nome diz, uma pequena vila na beira do rio Mendonza, a apenas 60 quilômetros do Aconcaguá.

Já nas primeiras remadas no local percebemos que o rio era diferente: achocolatado, gigante, gelado e com muita força, o Mendonza é formado pelo degelo e, dependendo da temperatura do dia, seu nível cresce ou diminui. Além do grande volume de água, ele é um rio de ondas e refluxos, e não de desnível e pedras.

No primeiro dia aconteceram as provas de tiro de velocidade, com tomadas de tempo individuais. Fiz tanta força que no final dos 400 metros de percurso achei que meu braço iria cair e o meu coração sair pela boca. Fiquei impressionada como dava pra cansar tanto em menos de 2 minutos. Mas o esforço valeu a pena: para surpresa de todos, fizemos o melhor tempo.

A partir da colocação no sprint foram montadas as chaves para a próxima prova, sprint paralelo (baterias de dois botes que eliminam o mais lento). Na primeira descida ganhamos das nossas conterrâneas (a Canoar foi a campeã brasileira e a Brasil Hydra foi a vice em 2008) e na segunda enfrentamos as canadenses. Cada bote desce de um lado da margem, e isto faz com que às vezes o rio favoreça uma equipe. A margem direita, a nossa, tinha sido a melhor no começo da tarde, mas depois o nível baixou, criando um remanso na saída. Largamos com força total, mas o bote parecia estar preso. Perdemos 4 segundos e não conseguimos mais buscar as canadenses.

Já na última bateria disputamos o terceiro lugar com as eslovacas, campeãs mundiais convidadas pela organização. Largamos à esquerda. Batemos numa onda e elas nos passaram. Tentamos ultrapassar pela esquerda, sem sucesso. Seguimos pela direita, os botes se chocaram. Estávamos quase lado a lado, os remos brigando, a linha de chegada muito perto e o público na margem aos gritos. Que disputa acirrada. Finalmente vencemos com um terço do bote na frente, ganhando das melhores do mundo. Terminamos o primeiro dia em segundo lugar.

No segundo dia aconteceu a prova de slalom, a mais difícil – e pior ainda neste rio, por causa do volume e da força da água. Montaram uma pista com 11 balizas, sendo quatro de remonta (subindo o rio). Cada equipe desce duas vezes, e vale o tempo da melhor descida. Na primeira perdemos quatro portas. Na segunda estávamos indo bem, quando em uma das manobras a Néia caiu na água. Só percebi quando ouvi “me puxa, me puxa!”. Mesmo no meio do resgate, continuamos remando e ainda conseguimos fazer uma porta a mais, e de remonta. A nossa segunda descida foi melhor, mas não mais do que das canadenses e das eslovenas.

No último dia aconteceu o descenso, com 12 quilômetros. Desde a largada brigamos e trocamos posições com as duas mesmas adversárias, até que a Eslováquia escolheu uma melhor linha e tomou a liderança. Perto do final passamos o Canadá mais uma vez, só que batemos numa pedra, o bote quase virou e ficamos no refluxo. Elas nos passaram novamente.

Terminamos o campeonato em terceiro, com o Canadá em primeiro e a Eslováquia em segundo. Mas como esta não ranqueia pelo pan-americano, nos sagramos vice-campeãs pan-americanas. Nada mal pra uma equipe de “novatas” no Pan.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2009)