Por Mario Mele
O FORTE VENTO CONTRÁRIO e o calor cearense que não costuma dar trégua complicaram a vida dos ciclistas durante a 6ª edição do Desafio 24 Horas de Fortaleza, uma das provas de endurance mais importantes do país, que rolou dias 15 e 16 de novembro. Nem os experientes Cláudio Clarindo e Wagner Comodoro tiveram forças para fazer as rodas girarem até o final. Mas como é na dificuldade que as superações costumam aparecer, o desafio também foi marcado por quebras de recordes e triunfos.
Ao término das 24 horas, o campeão Rogério Pacheco, de 36 anos, somou 51 voltas no ondulado circuito de 13 quilômetros montado em frente ao complexo aquático Beach Park. A distância de 663 quilômetros rodada pelo mineiro é igual à de sua cidade natal, Belo Horizonte, até Santos (SP), cidade do ciclista Cláudio Clarindo, campeão do Desafio em 2005 e 2006. Com a vitória, Rogério (que também venceu em 2007) e Clarindo se tornaram os únicos bicampeões do evento. “Só acreditei que venceria depois que o relógio marcou 8 horas da manhã do domingo, encerrando o pedal”, desabafou Rogério, antes de levantar o cheque de R$ 2 mil. “Esse dinheiro vai me ajudar, e muito”, contou o mineiro, que precisou dar quatro voltas a mais para bater o próprio recorde na competição.
Com uma volta a menos, Rosival de Lima, de 32 anos, não se contentou com o segundo lugar. Depois de ter se reabastecido fora da área reservada para o apoio, o alagoano radicado em São Paulo foi penalizado em 5 minutos. “Fui injustiçado. Um cara do staff ofereceu água. Eu não fui o único a aceitar, mas o único penalizado”, lamentou. “Não precisavam disso. Acho que, de qualquer forma, o Rogério me ultrapassaria. Ele mereceu a vitória”, completou Rosival, que pedala há apenas quatro anos e liderou o desafio por 8 horas seguidas. No ano passado, ele foi campeão do 800K Sundown Road Distance, outra competição do ultraciclismo nacional.
No Desafio, Rosival pedalou literalmente solo: sem nenhum apoio, ele contou com a boa vontade dos integrantes de outras equipes para substituir a caramanhola vazia por uma cheia. “Foram meus amigos de bairro que me incentivaram a entrar nessa vida louca de ciclista. Meu treino diário é rodar 70 quilômetros, entre carros e caminhões. Vou e volto de Pirituba, onde moro, para a Mooca, onde trabalho”, conta.
Apesar de perigoso, o treino nas ruas de São Paulo deu gás ao atleta, que deixou para trás Fabio Biasiolo, terceiro lugar. O famoso ciclista italiano de 46 anos disse que “além de pedalar contra esses inquebráveis brasileiros”, enfrentou ventos fortes e constantes ao quais não está acostumado, se referindo às potentes rajadas que ultrapassaram os 30 quilômetros por hora. De 1996 até hoje, Fabio participou de todas as edições da Race Across America (RAAM), prova que corta os Estados Unidos de oeste a leste.
Mas Fabio não foi o único gringo que suou a camisa em Fortaleza, afinal os vencedores da categoria solo (um homem e uma mulher) ganhariam uma vaga para a RAAM. Foi por isto que o norte-americano Rob Kish – 54 anos, tricampeão (1992/94/95) e recordista absoluto de participação na RAAM (20) – correu o Desafio pelo terceiro ano consecutivo. Este ano não foi a sua bike que quebrou, mas o próprio Rob – em 2006 a magrela teve problemas de câmbio e em 2007 o quadro trincou. “Acho que, por causa do calor, me senti mal um dia antes da largada. Durante a prova, percebi que ainda não estava 100% aclimatado”, contou. Mas apesar do ritmo lento, ele pedalou até completar 41 voltas, terminando em quarto lugar.
ALÉM DE SUPORTAREM longas distâncias e condições climáticas extremas, os ultraciclistas contam também com a sorte. Depois de exigirem que o corpo funcione a todo vapor durante horas, ingerindo apenas líquido, é praticamente impossível prever como a “máquina” vai reagir depois da primeira refeição sólida. Foi o que aconteceu com Claudio Clarindo que, pela primeira vez, não conseguiu chegar até o fim da prova. Às 21 horas, quando a prova somava 13 horas, o santista iniciou uma luta física depois de devorar um pote de macarrão instantâneo. A comida parece ter caído como cimento em seu estômago e seu rendimento – bom antes do jantar, quando acelerou para se manter entre os três primeiros – despencou. Seu tempo médio por volta, que era de 28 minutos, passou para 42 minutos. Ele ainda tentou forçar, o que não foi uma boa escolha: vomitou o macarrão e quase meio litro de energético. Sem alternativa, depois de 15horas e meia, ele desceu da bike, tirou o capacete e sentou no meio-fio, inconformado com o breque que o corpo lhe impôs. Enquanto isso, fãs e amigos cercaram-no, impressionados com o suor que encharcara o guidão de sua bicicleta.
A poucos metros dali estava o paulista Wagner Comodoro, outro especialista em provas longas, esparramado numa cadeira de plástico. “Minha cabeça quer continuar, mas meu corpo não deixa”, ele dizia à equipe de apoio. Wagner sentiu fortes dores abdominais que o impediam de respirar nas subidas e o fizeram abandonar a prova depois de quase 14 horas.
Entre as mulheres a dificuldade não foi menor. Apesar de a categoria solo ter sido dominada pela carioca Daniela Genovesi, campeã em 2005 da extinta prova Extra Distance de 800 quilômetros, a holandesa Caroline Van Den Bulk não deixou a disputa esfriar. “Quando percebi que a vitória só dependia de mim, me deu uma ansiedade, porque ainda faltavam 16 horas”, disse Daniela.
“Comecei a pensar nos meus filhos, no meu marido e nos amigos. Não queria decepcioná-los por nada”. Às 6h30 do domingo, faltando apenas 1 hora e meia para o fim, a brasileira tinha aberto cinco voltas em Caroline. E, mesmo sabendo que a vitória não lhe escaparia mais, partiu para mais uma volta, a 42ª. “Foram os quilômetros mais desgastantes. Eu não tinha mais de onde tirar energia. Quando desci da bicicleta, até senti calafrios, mas não queria me esquentar no sol de jeito nenhum”, recorda. Daniela, que mudara em cima da hora sua agenda e treinos para poder correr o Desafio, trocou em seguida as dores e cãibras pelo seu maior sonho: pedalar na próxima RAAM, que largará dia 17 de junho de 2009. O seu ingresso e o de Rogério Pacheco já estão garantidos.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2008)
DE BH A SANTOS: Foi quanto o campeão do Desafio pedalou num circuito fechado de 13 quilômetros
(Foto: Fernando Braga)