Doutor Fritz


IMPONENTE: A pedra Fritz e seus 755 metros verticais de rocha

Por Mario Mele
Fotos por Arquivo Projeto Paredes de Minas

FINALMENTE O PODER DO FRITZ foi superado. Não estamos falando de nenhuma entidade espiritual (apesar do esforço quase sobre-humano que envolveu a conquista), mas de superação descomunal de limites. Durante nove dias, os escaladores mineiros Gustavo Piancastelli, Emerson Azeredo e Marcus Vinicius Rufino enfrentaram chuva e detonaram as mãos em fendas e ascensões pela corda para, no dia primeiro de outubro, chegar ao cume do tal Fritz – um enorme bloco de granito que é a maior referência turística da cidade de Nanuque, no leste de Minas Gerais.

É possível chegar ao alto do Fritz caminhando por uma trilha na face positiva. No entanto, é o outro lado, onde ele se transforma num paredão negativo de 755 metros de altura, que seduz montanhistas audaciosos.

Não foram muitos que já se penduraram ali. Em 2000, os experientes Bito Meyer e Edmilson Padilha abriram a via Welcome to Tihuana (7+ A3), que não chega ao topo. No ano seguinte, os escaladores Eduardo Ralf, Nelo Aun e Gisely Ferraz repetiram essa via e, ao término dela, abriram uma rota inédita, finalizada a 50 metros do cume.

“Nós também pensamos em desistir. E isso foi em nosso oitavo dia de trabalho intenso na rocha, quando tínhamos acabado de repetir a via conquistada pela equipe do Eduardo Ralf”, recorda Marcus Vinicius. Foi uma situação de “tudo ou nada”: ou eles encaravam a última cordada, ou voltavam para casa. “Tínhamos pouca água e a comida também já estava no fim. Além de a escalada no Fritz exigir técnica e conhecimento de equipamentos móveis, nos últimos metros as fendas estavam cheias de barro, o que significou um trabalho extra de limpeza”, explica Marcus. Qualquer imprevisto àquela altura poderia acabar com as energias do trio, que estava há mais de uma semana duelando com o paredão e que não queria deixar escapar a chance de se tornar o primeiro grupo de escaladores a pisar no alto do Fritz. Eles decidiram continuar.


MISSÃO POSSÍVEL: Marcus Rufino subindo com ascensor

ESCALADAS DEMORADAS EM PAREDES EXTENSAS são uma modalidade conhecida como big wall. Nela, é comum o uso de equipamentos como estribos e outros aparelhos de ascensão para progredir – ou seja, não é apenas a rocha que é usada como agarra.

Emerson é um dos pioneiros da escalada big wall no Brasil. Em 1994, no Pico do Baiano, no município de Catas Altas, ele abriu a longa Odisséia ao Crepúsculo (5º VII A1 E4), a primeira via conquistada nos grandes paredões de Minas.

Em 2007, Marcus desbravou o Pico do Baiano. Com Gustavo Viana e Marcelo Terrazoni, ele conquistou a via Metamorfose Ambulante (7º VI A3 E4), de 750 metros de extensão, depois de 12 dias vendo somente pedras, cordas e mosquetões.

Gustavo Piancastelli, outro conhecido escalador mineiro, integrou a expedição responsável pela abertura da via Linda de Morrer (7º VIII A3 E3), no lado direito do paredão da cachoeira do Tabuleiro. O nome diz tudo: apesar de estar um dos lugares mais admirados de toda a cordilheira do Espinhaço, o eixo do montanhismo mineiro, a Linda de Morrer é bem perigosa. Quem quiser encará-la terá que se pendurar em blocos de quartzito – um tipo de rocha instável, que deixa a escalada em equipamentos móveis bem arriscada. Como os próprios mineiros costumam dizer, “só sendo solteiro e sem filhos” para se jogar nela.

Escalar o Fritz é outra tarefa pouco convidativa, já que o lugar está longe de ser dos mais apropriados para se passar um fim de semana em família. Mesmo quem desconhece as lendas locais – que vão desde bolas de fogo que brotam do cume e sobem em direção ao céu, até uma enorme onça pintada que era freqüentemente vista zanzando pela região – teme o paredão, que impõe respeito. “Na aproximação à base do Fritz, tive a nítida impressão de estar num ambiente completamente hostil”, revela Gustavo. “Nos deparamos com um esqueleto gigante de cobra. Eu nunca tinha visto nada parecido com aquilo em toda a minha vida”, recorda.

Gustavo conheceu Nanuque, a cidade do Fritz, em 2007, quando foi convidado a palestrar no Eco-Fritz, um projeto criado em 1998 pelo professor Antônio Carlos Aranha e que, desde então, vem mostrando a crianças e adolescentes a importância da preservação ambiental no lugar. O escalador fez sua primeira tentativa naquele ano, mas não imaginava que o paredão se mostraria tão complexo. Sem todos os equipamentos necessários para atacar o cume, Gustavo decidiu nãos air de lá de mãos abanando e abriu, com a ajuda dos escaladores César Albertoni e Ricardo Delmonte, uma rota de 170 metros, batizada de Leões da Montanha.


EQUIPE: Gustavo, Emerson e Marcus comemoram

Este ano, decididos a escalarem até topo do Fritz, Gustavo, Emerson e Marcus Vinicius dividiram em suas mochilas mais de cem quilos de equipamentos. Os quatro primeiros dias foram reservados para a reconquista da Leões da Montanha. Nesse período, trabalharam pesado durante o dia e à noite desciam até a base da pedra, onde estava montado o primeiro acampamento da expedição. “Logo na primeira cordada, fomos surpreendidos por uma chuva de granizo com raios assustadores, principalmente para quem estava colado na parede, cheio de ferragens junto ao corpo”, recorda Gustavo.

No quinto dia, a missão foi montar o segundo acampamento, num platô a 180 metros do chão. E foi exatamente ali, nas alturas, que eles passaram as noites seguintes. “Nosso abrigo tinha quatro metros de comprimento por 50 centímetros de largura, ou seja, dois metros quadrados. O Emerson improvisou uma rede, enquanto eu e o Gustavo dormimos espremidos no chão”, explica Marcus.

Do lar improvisado, eles levaram quase três dias para vencer a via aberta anteriormente por Edmilson, Nelo e Gisely, para depois então se lançarem ao desafio derradeiro: realizar uma cordada inédita, de 50 metros, até o cume do Fritz. E foi esta cordada, já no oitavo e último dia de escalada, que deu o que falar.

Gustavo assumiu a ponta da corda, iniciando os trabalhos da escalada artificial. Até que acabou a bateria da furadeira que ele usava para rasgar a rocha e colocar as proteções móveis. Sem alternativa, Marcus então se dispôs a fazer os furos à mão. “Por ser negativa, a via te cospe pra fora o tempo inteiro. Eu tinha que procurar um vão para entalar a mão e cavar entre a vegetação, tirando o barro e tentando achar as fendas escondidas”, conta.

Depois de oito dias agarrado no Fritz, as mãos dos três escaladores já estavam em carne viva, e nem os esparadrapos enrolados davam conta de minimizar o atrito com a rocha. A saída radical foi isolar as feridas com Super Bonder. “A cola seca vira uma espécie de pele artificial”, explicou Gustavo.

No cume, a 755 metros de altura, eles intitularam a novíssima conquista de Micafrak de 3 Pontas (7º VIII A2+ E3). “Em outras palavras, quisemos dizer ‘resolve isso rápido porque o bicho tá pegando’”, disse Gustavo, tentando justificar o nome dado. “Para pisar no teto do Fritz, tem que escalar pesado. É uma pedra que te toma todas as forças, físicas e mentais”, concluiu. Mas o espírito do Fritz já estava dominado, e a Micafrak de 3 Pontas é a prova disso.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2008)