Por Mario Mele
PELO OITAVO ANO CONSECUTIVO, a Mostra Internacional de Filmes de Montanha dominou as sessões noturnas do carioca Cine Odeon BR – entre os dias 22 e 25 de outubro –, chamando atenção para um tema que, a cada ano, ganha mais força no Brasil: a vida outdoor, que montanhistas-diretores brasileiros levaram com muita competência até as telas do cinema, mesmo sem os recursos que os gringos têm nas mãos. O evento reuniu 37 filmes, com 17 produções nacionais, sobreviventes de uma pré-seleção que peneirou 40 filmes inscritos para a mostra competitiva. Esses filmes verde-amarelos disputaram os prêmios de melhor direção, filme, fotografia e trilha sonora, esta uma categoria inédita (veja no quadro a seguir os vencedores, divulgados na data de fechamento desta reportagem).
Além dos brazucas, 20 filmes gringos foram importados do Banff Mountain Film Festival, circuito anual que roda 28 países exibindo o que há de mais nobre no cinema de montanha, como os bem produzidos King Lines e Aerialist. O primeiro segue o rastro do norte-americano Chris Sharma – que veio prestigiar a mostra brasileira – por suas sucessivas tentativas de encadenar um cabuloso arco de 70 metros sobre o agitado Mediterrâneo. Já Aerialist dá um close na adrenalizante vida que Dean Potter, outro escalador norte-americano, leva nas montanhas. “Mas o cinema brasileiro de montanha ainda não desfruta do mesmo nível técnico dos estrageiros”, explica Alexandre Diniz, organizador da mostra no Brasil. “Recebemos até filmes gravados em celulares e máquinas fotográficas, enquanto que lá fora eles captam com câmeras HDV e 16 mm”, analisa. Mas estamos na trilha certa. Pelo menos nossos montanhistas-diretores são autênticos e criativos, com roteiros que nem sempre relacionam o ápice do filme à óbvia conclusão do objetivo de subir uma montanha – apesar de haver excelentes produções ainda com esse foco. “O brasileiro está percebendo que um filme deve contar uma boa história, além de ter bom enquadramento e trilha sonora bem-feita”, analisa o cineasta alemão Sylvestre Campe, um dos jurados oficiais da mostra competitiva.
O escalador goiano Stefano Braggio é um dos que aprenderam a lição. Foi ele quem filmou, dirigiu, estrelou e musicou Infinito, um documentário que não prima pela qualidade na captação de imagens, mas segue uma linha despojada, com boas tomadas que conseguem prender a atenção durante os 23 minutos de filme. A trilha sonora, original e bem-casada com as imagens, foi outro ponto a favor. Já Gruna foge da pieguice e traz uma relação inusitada: o jovem cineasta e escalador Pablo Micael diz que os escaladores e os catadores de diamantes têm realidades parecidas. A produção de 21 minutos não conta um desafio pessoal, mas passa a sensação de uma aventura real que vale a pena ser vivida.
Neste ano, pela primeira vez, uma animação brasileira concorreu ao prêmio. E venceu: foi Uruca, em referência a uma via fictícia aberta no Totem, aquele bloco de pedra cravado ao lado do Pão de Açúcar, onde se desenrola uma história inteligente e bem-humorada. “A idéia nasceu em 2006 graças a ‘causos’ engraçados contados por amigos escaladores”, resume o designer e escalador Erick Grigorovski, diretor e idealizador do projeto. Assim como Erick, quem pretende se jogar na produção de um filme de montanha precisa assumir múltiplas funções. “Pelos desafios que uma montanha exige, é mais fácil um montanhista se tornar cineasta do que o contrário”, diz Alexandre. Mas o esforço anda rendendo: quando a mostra competitiva rolou pela primeira vez, em 2004, 12 filmes foram inscritos. Em 2008, esse número mais que triplicou. E, para 2009, a organização pretende incluir na programação uma oficina de cinema, talvez ministrada por Sylvestre Campe. Roteiro, trilha, argumentação, fotografia e edição serão abordados e, depois disso, só faltarão boas idéias – e uma câmera de alta definição – para assistirmos a muitos filmes brazucas de primeira linha.
E a Mostra 2008 vai para…
Melhor filme: Uruca Melhor
direção: Erick Grigorovski
Melhor fotografia: Ápice Melhor
trilha sonora: Infinito
Os vencedores acima são os escolhidos pelo júri oficial, composto por Clemente Borges, Gustavo Gama, Rodrigo Rodrigues e Sylvestre Campe. Infelizmente fechamos esta reportagem antes da divulgação dos vencedores escolhidos pelo júri popular, que podem ser conhecidos no site filmesdemontanha.com.br.
Boca a boca
A pedido da Go Outside, montanhistas e escaladores brasileiros assistiram – antes da divulgação dos campeões – a alguns filmes que participaram da mostra competitiva. Eis seus comentários: “Se eu tivesse me deixado levar pela impressão causada pela resenha seca e curta na capa da animação Uruca [Rio de Janeiro, 2008, 8 min., direção e produção de Erick Grigorovski], eu teria, sem dúvida, perdido uma boa oportunidade de diversão.
Com trilha sonora inédita de Caio César Braga a animação em vídeo de Erick Grigorovski, o filme reproduz fielmente uma situação comum aos escaladores de rocha, experimentados ou iniciantes, e que, dependendo do humor do escalador, pode ser entendida como trágica ou cômica. Para quem escala, é inevitável se identificar com as situações apresentadas segundo a segundo, até o último deles. É para assistir, refletir e se divertir.” O montanhista Nelson Baretta foi protagonista do filme Extremo Sul, de 2004 “Ápice [Paraná, 2008, 14 min., direção de Guilherme Kirrian Neto, produção de Guilherme e Thiago de Andrade], com imagens tão puras quanto cruas, não deixa claro sua intenção. As escaladas de alto grau de dificuldade são mostradas por meio de uma câmera trêmula, cujos movimentos e luz não contribuem para o conforto visual do espectador. Mesmo fazendo uso de imagens captadas por diferentes ângulos, em um ambiente natural, boa parte das delícias e das dores das escaladas desse vídeo fica de fora do contexto. Até mesmo o sentimento medo, verbalizado por uma voz em off no início do filme, é pouco trabalhado nas imagens.” (N.B.)
“Dedicar uma arte a alguém que se foi e deixou saudade é algo delicado. A videorreportagem Expedição Aconcágua Invernal [Rio de Janeiro, 2004, 40 min., direção e produção de Guilherme Rocha] conta a história da escalada realizada por Vitor Negrete e Rodrigo Raineri ao cume do Aconcágua, durante o inverno de 2004 – dois anos antes de Vitor falecer após chegar ao topo do Everest.
O filme arrisca-se logo de início com uma dedicatória que ao fim deixa transparecer que é mais uma oportunidade post mortem do que propriamente um vídeo realizado com o intuito de ser dedicado a alguém. O tema da videorreportagem foi outrora abordado na televisão aberta com duração inferior. Agora, acabou caindo na seleção de filmes do festival, mas a completa falta de técnica nas filmagens omite quão árduo e burocrático é chegar ao cume de uma das montanhas mais cobiçadas do planeta numa época do ano tão especial quanto o inverno. Com arriscadas cenas de pseudojornalismo, improvisadas por um sorridente autor, o vídeo ganha valor na espontaneidade dos personagens e na generosidade de importantes figuras do montanhismo que se deixam ver.
A trilha sonora emprestada de filmes como Imensidão Azul, de Eric Serra, e de grupos como Led Zepellin deveria enriquecer o trabalho; no entanto, causa efeito e resultados confusos quando escutamos músicas associadas ao mar em um filme cujo pano de fundo é sempre a montanha. Talvez fosse melhor o vídeo ter permanecido na televisão, para a qual foi elaborado com qualidade e apresentado com propriedade.” (N.B.) “Infinito [Goiás, 2008, 23 min., direção e produção de Stefano Braggio] mostra um dos locais mais privilegiados na face da Terra para o boulder: o Parque Estadual dos Pirineus, em Pirenópolis (GO), referência nacional e internacional em quantidade e qualidade de boulders já abertos ou a ser descobertos. Infinito é um título mais que adequado para um lugar onde o escalador pode passar a vida inteira tentando linhas conhecidas, abrindo ou descobrindo novos setores.
O filme não tem inovações tecnológicas, muito pelo contrário. Com imagens simples mas com ricos detalhes capturados pelo próprio escalador e diretor Stefano Braggio, a obra revela a essência da modalidade: a busca incessante pelo bloco e pela linha mais bonita; a liberdade de poder escalar sem necessidade de um parceiro; e a paciência e a troca com a natureza ao tentar resolver problemas de boulders em uma evolução solitária, porém sem deixar de registrar momentos únicos a cada linha escalada. Com trilha sonora muito agradável e compatível para os boulders, o filme é uma excelente opção para o bom entendimento da modalidade e motivador para conhecer esse paraíso dos blocos e da tranqüilidade.” André Berezoski acumula, em 16 anos de escalada, mais de 130 competições no currículo, além de ser tetracampeão brasileiro e vicecampeão sul-americano
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2008)
GARIMPANDO: Gruna faz uma relação entre os escaladores e os estratores de diamantes
ÁPICE: Imagem do filme paraense que ganhou a mostra competitiva na categoria melhor fotografia