Sem luz no fim do túnel


DESINTERDITADAS: No dia 18 de abril, 12 cavernas foram liberadas para a visitação, amenizando um pouco a má situação dos moradores do Petar

Por Daniel Nunes Gonçalves

FOI COMO LEVAR DOIS GOLPES de uma só vez. No fim de fevereiro, a população do Vale do Ribeira, no oeste paulista, recebeu duas más notícias: a primeira dizia que o Ibama tinha aprovado a viabilidade ambiental da construção da Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto, primeira de uma seqüência de quatro represas que vai impactar o rio Ribeira de Iguape – o último grande rio não represado do estado –, inundando uma área de 52 quilômetros quadrados em quatro municípios e alterando para sempre a paisagem de uma região que concentra 21% da Mata Atlântica remanescente no país. A segunda bomba era a interdição das cavernas dos três principais parques turísticos que sustentam a economia do Vale: a Fazenda Intervales, o Parque Caverna do Diabo e o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar). Teve início então uma série de protestos com o objetivo de alardear, à sociedade e às autoridades, que o Vale do Ribeira precisa de socorro.

Mesmo sendo problemas distintos e aparentemente sem conexão entre si, as duas ameaças tiraram o sono de parte da população dos 24 municípios que integram o Vale porque dão vida a um velho pesadelo da região. Há décadas os moradores sofrem problemas econômicos por viverem, ironicamente, no pedaço de natureza mais preservada do estado, com mais de 10 mil espécies de fauna e flora declaradas pela Unesco como reserva da biosfera por sua diversidade. Em cidades como Iporanga, coração turístico do Vale, tudo em volta do núcleo urbano é tombado. O que significa que quase ninguém pode investir na roça, construir uma indústria ou explorar a natureza como se fazia antigamente – cortando palmito, vivendo da mineração, produzindo pinga em alambiques. E o ecoturismo, que há uma década passou a abastecer os bolsos dessa população carente, é o alvo mais direto dessas notícias recentes.

No epicentro do drama do fechamento das cavernas está o Petar, principal destino de excursões escolares do estado e que já chegou a receber 40 mil visitantes por ano – 70% deles estudantes. Neste mês de maio, o parque completa 50 anos de criação e 25 anos de implementação em pleno inferno astral. “Tivemos um enorme trabalho para desenvolver o turismo aqui de forma a proteger o lugar sem prejudicar a população”, diz o espeleólogo Clayton Lino, primeiro diretor do Petar e atual presidente da ONG Reserva da Biosfera, que atua diretamente nesses três parques, onde estão cadastradas nada menos que 404 cavernas. Quando o parque foi criado, lembra Lino, 80% de sua área era explorada por doze mineradoras e três serrarias. Foi um longo caminho de conflitos até que a população abrisse mão de seus antigos ganha-pães e entendesse que o parque não era um inimigo, mas sim uma alternativa para o desenvolvimento sustentável do lugar. As atividades de extração foram banidas, inclusive as plantações de cana-de-açúcar que abasteciam oito fábricas de cachaça que hoje estão fechadas.

Um passo fundamental do processo de profissionalização do turismo ecológico foi dado com os cinco cursos de formação de monitores que cadastraram 215 guias e fizeram do Petar uma referência nacional em educação ambiental. “Hoje são os guias quem mais têm interesse no desenvolvimento do turismo ecológico seguro e no plano de manejo das cavernas”, defende Jurandir Aguiar dos Santos, o Jura, primeiro monitor ‘não funcionário’ do parque.

A INTERDIÇÃO DAS CAVERNAS partiu de uma cobrança do Ministério Público em função da inexistência de planos de manejo que estabelecessem normas definitivas para a exploração turística responsável desses lugares. E a engajada comunidade local aproveitou o baque que levou para pressionar as autoridades a acelerarem a execução e implementação do tal plano. “Os próprios guias combinaram de recusar a visitação até às cavernas de fora dos parques, que não estão interditadas, como forma de pressionar por uma solução verdadeira e de longo prazo”, conta o guia Darci dos Santos, conhecido como Ki-suco, irmão de Jurandir.

Embora a interdição tenha ocorrido nas cavernas, e não nos parques, o turismo caiu a quase zero mesmo com os ingressos temporariamente gratuitos. O bairro da Serra, comunidade de 680 habitantes a 3 quilômetros da portaria principal do Petar, a do Núcleo Santana, ganhou ares de cidade fantasma, sem viva alma nas ruas. Nos fins de semana não se via movimento nem dos turistas que costumam praticar bóia-cross, rapel ou mountain bike. “O Vale do Ribeira atrai os turistas essencialmente por suas cavernas, os outros passeios são secundários”, explica Idati Diniz, proprietária da pousada que leva o seu nome. “Ninguém viaja 300 quilômetros desde São Paulo só para uma trilha ou um banho de cachoeira, quando existem programas assim mais próximos da capital”, argumenta. Nos feriadões da Páscoa e de Tiradentes, seus quartos para 38 hóspedes e gramado para 10 barracas ficaram às moscas, num cenário deprimente. O guia Jurandir, agora dono de uma pousada e uma agência, riscou da agenda as reservas de quatro excursões na pousada e de 150 turistas da agência.

Os comentários pelas ruas do bairro da Serra são desoladores. Pelo menos oito guias deixaram a cidade com destino à capital para trabalharem como peões de obra, onde suas formações em primeiros-socorros e técnicas verticais seriam subaproveitadas. Desempregada, a cozinheira de uma pousada da região foi catar papelão nas ruas de Apiaí, segunda cidade-base do Petar, a 40 quilômetros de Iporanga. No único restaurante do centro de Iporanga, o proprietário Abel Palma teve que reagir ao desaparecimento dos turistas cortando na própria carne: “dispensei três dos meus seis funcionários porque meu movimento caiu 90% em dois meses de parques fechados”. Iporanga, com uma população de 4.500 habitantes que diminui ano a ano, viu fechar até a única farmácia e o único banco em função da crise econômica deflagrada com o sumiço dos turistas – um cenário que lembra a pobreza que existia na região antes do ecoturismo surgir como um caminho viável. “É a maior crise que vejo em 16 anos nessa cidade”, conta o gaúcho Abel, que já chegou a alimentar 600 turistas num único dia de feriado.

A SOLUÇÃO DO IMPASSE NÃO É SIMPLES. A execução de um plano de manejo é um processo que dura em torno de dois anos e que praticamente inexiste em outras cavernas famosas do Brasil, como as da Chapada Diamantina (BA) e da Serra de Ubajara (CE). “Se as cavernas permanecerem fechadas durante esse tempo todo, viveremos uma tragédia social”, diz o guia Jurandir. A única luz no fim do túnel é a realização de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), um documento que permite que algumas cavernas sejam visitadas enquanto o plano de manejo é finalmente capitaneado pela Fundação Florestal, órgão da Secretaria Estadual do Meio Ambiente que administra os parques – e acusada pelo atraso na execução do plano. Durante 10 dias do mês de abril, uma comissão encabeçada pela Fundação vistoriou 29 cavernas no intuito de averiguar quais delas deveriam receber ajustes para voltar a abrigar ecoturistas. “Temos pressa na investigação, pois queremos dar um ar para que a comunidade possa respirar”, diz o líder da expedição, o geógrafo Cristiano Ferreira, analista ambiental do CECAV, o Centro de Estudo, Proteção e Manejo de Cavernas, ligado ao Instituto Chico Mendes (novo órgão federal que substitui o Ibama nos assuntos de conservação e pesquisa de recursos naturais).

Acompanhado de homens da administração dos parques e guias representantes das associações de monitores como Jurandir dos Santos, Cristiano visitou as cavernas e apresentou uma série de restrições que mudarão a rotina dos turistas quando o TAC estiver assinado pelos órgãos competentes – Fundação Florestal, CECAV, IBAMA e o Ministério Público. As novas condicionantes para que o turismo seja realizado provisoriamente incluem a obrigatoriedade de calças compridas, calçados fechados e lanternas para cada visitante, e a abolição absoluta do carbureto, que escurece as paredes das cavernas. Comes e bebes serão proibidos e serão retiradas as lixeiras e a iluminação artificial da caverna do Diabo, a maior do estado, que passará a ter apenas iluminação de emergência. Cada caverna terá um número limitado de visitantes por dia, um horário fixo de visitação (ninguém mais pode visitar caverna à noite) e um intervalo entre um grupo e outro. Um monitor passa a ser indispensável para cada grupo de oito visitantes – acabando com a graça, infelizmente, de quem gosta de explorar por seu próprio risco. O camping do Petar continuará desativado.

Algumas decisões são mais trabalhosas – como a obrigatoriedade de um sistema de comunicação de emergência, algo inexistente na entrada do núcleo Santana, o mais visitado no Petar. A idéia é evitar a repetição das sete mortes que aconteceram nos parques (a maior parte delas dentro das cavernas) e mancharam a imagem do Petar nos últimos anos, permitindo um contato mais rápido com os monitores que fazem parte do GVBS, o Grupo Voluntário de Busca e Salvamento. A caverna Santana retirará o horrível portão de sua fachada, mas passa a tolerar apenas 104 visitantes por dia (um terço dos 300 turistas permitidos anteriormente). Ficou proibido o trecho de rapel na caverna Ouro Grosso. Na Água Suja, ninguém entra quando o rio estiver cheio, e um dos corredores permanece vetado. Na Alambari de Baixo, o acesso só está liberado pela entrada seca – a entrada pelo rio continua interditada. Em outro núcleo, a caverna Casa de Pedra permanece interrompida, assim como os polêmicos planos de construção de uma plataforma de bungee jumping em uma de suas bocas.

Outra caverna à qual os turistas não terão acesso por um bom tempo é a Sítio Novo, que a equipe de Go Outside teve o privilégio de visitar junto com os técnicos do CECAV. Seus riquíssimos espeleotemas – observados apenas depois de uma seqüência de rastejamentos e escaladas com uso de cordas – pareceram frágeis demais para Cristiano Ferreira. Quem mais sai prejudicado com a decisão, além dos aventureiros, é seu José Moura, que vive pertinho da boca da caverna, a 500 metros de altitude e acessível após uma pirambeira de 4 quilômetros percorridos em uma hora e meia. “Tenho ciúmes dessa caverna, fui eu que a descobri quando eu tinha oito anos”, conta o velho, há 66 anos vivendo num casebre dentro do parque – como acontece com outras 30 famílias, que ainda sofrem com o fantasma da desapropriação. Com a interdição da caverna, a casa de seu José já não receberá as visitas esporádicas dos turistas que pagavam por um cafezinho de fogão à lenha ou pelo artesanato em palha de milho feito por sua esposa Zilda. “O fechamento da caverna foi um estorvo pra gente”, conta ele, que cuida de uma roça de milho e feijão, além de criar duas mulas, oito porcos e 15 galinhas.

Enquanto a liberação das cavernas não ocorre, de fato, a população passa aperto. Em sinal de protesto, uma série de faixas foi colocada nas ruas do bairro da Serra, diante de pousadas e no caminho para o parque. “Sem cavernas, sem futuro” e “Devolvam nossos empregos, devolvam nossas cavernas”, diziam algumas delas. Paralelamente, a ONG Associação Serrana Ambientalista (ASA), que desde 1995 congrega 180 militantes e deu início à Associação de Moradores, tenta brigar na Justiça, participando de audiências e fazendo contestações técnicas. “Queremos uma compensação financeira pelos prejuízos da comunidade”, brada o agrônomo Antônio Sodrzeieski, o Mamute, que trabalha com agricultura familiar e preside a ASA. “Vamos propor que a compensação seja a instalação de um sistema de coleta de esgoto no Bairro da Serra”, emenda sua esposa, Maria Sílvia Müller, assistente de saúde que chega a caminhar 10 quilômetros para visitar os moradores mais distantes de Iporanga, cidade que não tem sequer um hospital.

FORASTEIROS QUE SE APAIXONARAM PELO LUGAR e para lá mudaram há 20 anos, os aguerridos Mamute e Maria Silvia já têm mira certa quando o pesadelo da interdição das cavernas acabar: a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), do grupo Votorantim, que há 17 anos luta para construir a Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto. A briga, nesse caso, é mais pesada, e as manifestações contrárias não têm a discrição das faixas do bairro da Serra contra o fechamento das cavernas. A Frente de Apoio ao Vale do Ribeira e o Movimento dos Ameaçados por Barragens (MOAB) chegaram a juntar 600 pessoas em protestos na cidade de São Paulo. Em uma das batalhas, os moradores do bairro lotaram oito ônibus.

A causa conquista a simpatia de entidades ligadas à causa sócio-ambiental porque as quatro represas previstas – Tijuco Alto, Funil, Itaoca e Batatal – vão afetar, direta e indiretamente, muito mais que a rica natureza local. Quando a obra for realizada, poderá destruir uma dezena de resquícios arqueológicos ainda pouco explorados e alterar a vida de moradores dos arredores, como pequenos proprietários rurais, aldeias indígenas, caiçaras que vivem da pesca no Complexo Estuarino Lagunar de Cananéia-Iguape-Paranaguá e moradores da maior concentração de comunidades quilombolas do Brasil.

Embora seja uma fonte geradora de energia elétrica limpa, renovável e menos perigosa que a nuclear, e tenha a vantagem de poder evitar enchentes e suprir a demanda por água potável e para irrigação, a usina hidrelétrica tem um impacto social enorme, provocando alterações marcantes. Durante a obra, as represas empregam milhares de pessoas ao longo de uns cinco anos, mas as cidades dos arredores não possuem estrutura básica – saúde, educação, saneamento básico – para comportar esse excedente. Os críticos alegam que a energia será usada essencialmente pela CBA, e não pelo povo, e que a grande quantidade de homens trabalhadores atrai problemas como a prostituição e a criminalidade. Ao fim das obras, dizem, os forasteiros perdem seus trabalhos e passam a viver à margem, em favelas. “Descobri que, para a gente da minha terra, é melhor eu brigar contra a barragem do que contribuir com ela”, diz o guia Ki-Suco, que chegou a trabalhar por um tempo em pesquisas de exploração do terreno da represa.

A primeira batalha está perdida, e os moradores do Vale do Ribeira sabem disso. A CBA já comprou quase todas as terras das centenas de moradores que terão suas propriedades inundadas. Na questão ambiental, nova derrota da comunidade: indo contra a tendência de desativação das represas, que se percebe no mundo hoje – nada menos que 180 foram destruídas nos Estados Unidos nos últimos dois anos e um movimento semelhante acontece na França, na Austrália, no Canadá e no Japão –, o Ibama aprovou a obra com base num estudo de impacto ambiental apresentado pela CBA. “A solução para geração de energia poderia ser a construção de pequenos geradores em quedas d’água menores”, propõe Mamute. “Mas não essa destruição de grandes proporções”, completa (procurada pela nossa reportagem, a CBA disse que tudo o que ela tem a dizer sobre o assunto esta no site usinatijucoalto.com.br).

O levantamento oficial da CBA não ressalta o bloqueio das rotas dos peixes migratórios ou a destruição dos ecossistemas aquáticos, e alega que apenas duas cavernas serão inundadas: a gruta do Rocha e a gruta da Mina do Rocha. A comunidade espeleológica duvida. Diz que o impacto não se reduz a isso e que as conexões subterrâneas das regiões calcárias podem provocar conseqüências também em outras preciosidades geológicas da região. Ao mesmo tempo, a Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE) denuncia que circula no congresso um projeto de lei que reduz a importância das cavernas para a União, autorizando que algumas delas sejam destruídas, diferentemente do que consta na Constituição de 1988. Enquanto a lei não é alterada, as cavernas permanecem como o único empecilho para que a CBA ganhe a licença de instalação que permitirá dar início às obras de Tijuco Alto. E que altere, mais que o fechamento temporário das cavernas, a paisagem e a rotina do Vale do Ribeira.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2008)