Por Jimmie Briggs
“VOCÊ É NEGRO!”, exclamou Dorian “Doc” Paskowitz. Pequeno e bronzeado, com cabelos grisalhos embaraçados, o médico de 86 anos de San Diego estava descalço em um apartamento de Tel Aviv, vestido com bermudas cáqui e uma camiseta branca com o símbolo da Surfing For Peace, a nova iniciativa de Doc para unir juventude israelense e Palestina sob a bandeira da fraternidade dos surfistas casca-grossa.
Estávamos no lar do surfista israelense de 28 anos, Arthur Rashkovan, a poucas quadras do break na praia de Hilton, na costa do Mediterrâneo. Doc tinha acabado de acordar de uma soneca; quando ele saiu do quarto, eu já tinha passado horas com o lacônico Arthur, que trabalha como distribuidor de bebidas e editor de uma revista de surf, e dois dos filhos adultos de Doc – David, de 48, e Joshua, de 32, ambos tão esguios quanto seu pai é baixinho. Joshua, que trabalha como cineasta, ostentava um mullet, um chapéu de feltro tipo Blues Brothers e tatuagens do pescoço até os pés. David, que é músico, tinha uma aparência mais tradicional, com óculos e mechas grisalhas.
“É o Jimmie Briggs!”, gritou Arthur. Doc deu um sorriso e abriu os braços para me dar um abraço. Doc não é nada tímido; já vínhamos conversando há meses pelo telefone, mas tanto Israel como a comunidade surfista são povoados basicamente por caras brancos. Ele pareceu muito feliz em ver um negão de 1,92 metro e tranças rastafári saído do Bronx.
Era uma noite quente do começo de outubro em Israel, menos de uma semana antes do lançamento da Surfing for Peace, e o clima era de agitação e um pouco de nervosismo. O sonho de Doc parecia simples: usar o surf como uma ponte entre árabes e judeus, fazendo as crianças aprenderem o esporte ao lado de seus supostos inimigos. Iam começar com um concerto de música, algumas oficinas de surf e, quem sabe, poderiam acabar virando uma fundação. Para lançar o projeto, ele convocou dois dos maiores nomes no esporte: o octacampeão mundial Kelly Slater e o menino prodígio de 23 anos do surf de grandes ondas do Havaí, Makua Rothman, que com 18 anos surfou uma onda de 20 metros.
O plano era armar uma semana de oficinas de surf em Tel Aviv e Gaza, culminando em um grande concerto na noite de sexta. Kelly e Makua dividiriam o palco com a popular banda israelense de rock, Malca Baya. David Paskowitz havia composto uma música chamada “One Voice” para a iniciativa e, em uma coincidência fortuita, a organização de paz OneVoice International, liderada por um judeu mexicano que mora em Nova York chamado Daniel Lubetzky, estava organizando sua própria manifestação para o dia anterior ao show, com apresentações simultâneas em Tel Aviv e Jericó comandadas pelo roqueiro canadense Bryan “Cuts like a Knife” Adams. O momento não podia ser mais propício. Isso ia ser grande. Shows! Surf! Astros do rock! Paz!
Claro que alguém tem que pagar a conta. Kelly é patrocinado pela Quiksilver, e o grosso da grana para o lançamento da Surfing for Peace vinha do distribuidor da Quiksilver em Israel, a Sakal Sports, dirigida pelo surfista e ex-soldado de elite, Haim Sakal. Kelly era a peça-chave para todos terem uma semana de sucesso. Não apenas ele é parte árabe (seu bisavô era sírio), mas alguns de seus mais fervorosos fãs vêm da única nação judaica do mundo. Só havia um problema: Kelly ainda tinha que chegar de competições na Europa e ninguém tinha certeza exatamente quando isso ia acontecer. “Não sabemos se ele está em Mundaka, na França ou sei lá onde”, explicou Joshua.
Os Paskowitzes também estavam preocupados com como as coisas iam se resolver. Eles haviam se encontrado com a Sakal Sports e saíram com a impressão que os eventos da semana não seriam tão puros quanto tinham imaginado. Em vez de discretas oficinas de surf, viam o começo de um circo da mídia. “Dorian, você não entende o que venho tentado te falar”, disse Arthur para Doc. “Estou aqui tentando fazer isso acontecer desde que você e David foram embora em agosto. Só tivemos dois meses para organizar tudo”.
“Eu entendo isso, Arthur”, retrucou Doc. “Mas o Haim me deu a palavra dele que tudo seria como a gente quisesse”.
Fiquei folheando uma revista em hebraico até as coisas se acalmarem e Doc foi se deitar de novo. Uma coisa ficou clara: para lançar um movimento pela paz, é preciso manter o foco e o trabalho em equipe. E esses caras são surfistas.
ESTA É UMA HISTÓRIA SOBRE SURF, embora haja muito pouco surf de fato rolando nela. Começa mais de meio século atrás, em 1946, quando um jovem judeu surfista de Galveston, Texas (EUA), se formou em medicina pela Universidade de Stanford e se tornou clínico geral. Doze anos, dois casamentos fracassados e três filhos depois, Dorian Paskowitz se casou com Juliette, uma cantora de ópera mexicana de 1,83 metro que conheceu em um bar na ilha Catalina. Eles acabariam criando nove crianças, incluindo as três de Doc, viajando de praia em praia em um trailer de 25 metros, dando aulas eles mesmos para a molecada e trabalhando em clínicas médicas quando faltava grana. Paskowitz se tornou uma lenda do surf. Foi um dos primeiros a desenvolver o conceito de acampamentos instrutivos, abrindo em 1972 o Paskowitz Surf Camp em San Onofre, na Califórnia, que agora é dirigido pelo seu filho Israel.
Em 1956, logo depois de se casar com Juliette, Doc decidiu que precisava dar seu apoio ao jovem estado de Israel e alistou-se como voluntário na guerra contra o Egito pelo controle do canal de Suez. As Forças Armadas Israelenses o recusaram, mas os freqüentadores das praias, não. Passou quase um ano viajando para a linha de frente como civil e surfando nas pequenas ondas do Mediterrâneo, introduzindo o esporte em Israel. Cinqüenta anos depois, as praias estão repletas de adolescentes e homens de meia-idade em cima de pranchas, e a maioria das grandes marcas de surf distribui seus produtos aqui.
Como Doc adora dizer, “Se dá para surfar junto, dá para viver junto”. Depois de retornar a Israel em 2000, 2003 e 2006 para visitar amigos e levar pranchas, ele voltou no verão passado com David, visitando as praias de Tel Aviv e da fronteira com a Faixa de Gaza. Lá, encontrou os surfistas palestinos se virando com equipamentos antiquados ou improvisados, devido ao isolamento econômico e social quase total da área sob controle cada vez maior do movimento político islâmico do Hamas.
A idéia para a Surfing for Peace foi se desenvolvendo ao longo dos anos, de um único show no Havaí para, após a visita de 2006, oficinas em Israel e Gaza. Depois que o show de Tel Aviv foi marcado, uma das primeiras pessoas que Doc procurou foi Kelly Slater. Ele conhecia o surfista desde o final da década de 1970, quando os Paskowitzes estacionaram seu trailer em frente à casa de Slater em suas visitas a Cocoa Beach, na Flórida. “Você devia vir a Israel”, disse, “dar umas aulas para a garotada, tocar umas músicas.” Quando Kelly falou que tinha ascendência síria, Doc quase teve um troço.
“Isso é perfeito!” disse à Kelly. “Você é árabe e eu sou judeu. A gente devia se odiar, mas a gente se adora!”
É claro que os planos ficaram por aí. E agora aqui estava Doc em Israel, decidido a criar um legado. “Sofro com problemas de coração e há pouco tempo coloquei uma prótese na bacia”, ele me contou um dia em Tel Aviv. “Fazer isso acontecer vai ser uma das melhores coisas que fiz na vida”.
SE VOCÊ QUISER SABER por que não existe um processo de paz que funcione no Oriente Médio, tente orquestrar a movimentação de algumas dezenas de surfistas judeus israelenses, árabes israelenses e palestinos a partir de um apartamento em Tel Aviv.
O plano era trazer alguns surfistas árabes de um bairro pobre chamado Jaffe, assim como cerca de meia dúzia de surfistas palestinos adolescentes ou na casa dos vinte de Gaza que receberam pranchas de Doc quando ele e David os visitaram dois meses antes. Mas os Paskowitzes chegaram a Israel só para descobrir que seu contato em Jaffe havia sido preso, supostamente por vender haxixe, e provavelmente não sairia da cadeia antes da primavera. Enquanto isso, Arthur ficou sabendo que parte do contingente de Gaza, se não ele inteiro, era formado por simpatizantes do Hamas, o que por si só não constituía problema – ainda são surfistas, no final das contas –, a não ser pelo fato de que a fronteira estava agora fechada. Os surfistas palestinos não podiam vir para Tel Aviv e os israelenses não podiam entrar em Gaza.
Acrescente a isso a esperança na aparição de Kelly, as negociações com a Sakal Sports a respeito de seu cronograma quando ele chegasse de fato e o estilo organizacional discreto dos Paskowitzes, e o progresso praticamente travou. Kelly, enquanto isso, estava fazendo o que sempre fazia. “Achei que a gentia ia tocar umas músicas, surfar um pouco e levar uns moleques para a água”, disse mais tarde. Ele não sabia que os planos de seus amigos dependiam totalmente dele. “Eles sempre fizeram as coisas em um estilo caseiro, bem simples”, contou. “Tipo ‘Vamos nos encontrar na praia para dar uma surfada’”.
Parece que o esquema deles é esse mesmo. Conheci a família no domingo de noite. Segunda de manhã, voltei para o apartamento de Arthur para me encontrar com Doc, que tinha acabado de chegar de uma nadada. “Estou uns dois quilos acima do peso”, anunciou, agarrando os pneuzinhos enquanto explicava sua receita para uma vida plena, descrita em detalhes no livro que publicou por conta própria do ano passado, Surfing and Health [Surf e Saúde, sem tradução para o português].
“Você é boa-pinta, tem traços marcantes”, Doc disse, olhando para mim, “mas se perdesse uns 10 ou 15 quilos, ia ficar mais produtivo na sua vida pessoal, no seu trabalho como escritor e sexualmente. Estou te falando, você precisa fazer algum exercício, ou, melhor ainda, surfar”.
“O homem não foi feito para a paz”, explicou. “Pode rolar um cessar-fogo entre duas guerras, um cansaço do derramamento de sangue, mas a paz está sempre a séculos de distância”. Ainda assim, acrescentou, “os homens podem conquistar uma sensação de paz, uma tranqüilidade para si mesmos, comida para encher a barriga, um lugar para descansar, abrigo das intempéries”. A alegria que o surf proporciona pode levar isso ao próximo nível, avançando os “princípios da tranqüilidade”, disse. “É minha chance de ver o começo da estrada para a paz”.
Enquanto Doc e eu conversávamos, a gangue foi se reunindo. Um terceiro irmão Paskowitz, o cineasta de 46 anos Jonathan, chegou de Nova York, onde estava promovendo um documentário, o Surfwise, sobre o clã Paskowitz. Makua Rothman estava lá, também, com seu pai, “Fast Eddie” Rothman, conhecido no Havaí como o maioral do North Shore. Ambos os Rothmans são baixos, intensos e muito, muito bronzeados.
Aparentemente, as oficinas de surf teriam de esperar até Kelly chegar. Isso os deixava com os ensaios do show. Makua nunca tinha tocado no palco e o resto do grupo Paskowitz-Rothman-Slater tinha trabalho a fazer antes de estarem prontos para a estréia. A noite de segunda foi dedicada a ensaiar em um estúdio apertado no distrito dos armazéns do sul de Tel Aviv.
A terça trouxe mais espera. Em toda Tel Aviv, o número de falsos avistamentos de Kelly Slater crescia em ritmo constante, mas ele ainda não havia chegado e era difícil dizer se alguém estava em contato direto com ele.
Na dúvida, surfe. E assim o clã foi para a praia de Hilton, onde, quando as ondas estão boas, pode haver mais de cem surfistas. Hoje tinha uma dúzia. Arthur manobrava ao redor dos outros com sua pranchinha enquanto David pegou algumas ondas antes de ir falar com os nativos. Makua saiu dando braçadas enquanto seu pai, que não tirava seus óculos de sol com alças nem mesmo à noite, assistia da praia.
Doc reclamou de dor na barriga antes de se jogar em uma cadeira de plástico. Ele vinha se sentido mal há vários dias, deixando a maior parte da organização nas mãos de seus filhos – embora não estivesse sempre satisfeito com os resultados. “Meus filhos”, disse mais tarde, “são um colossal pé no saco. Eu respeito a tremenda habilidade coreográfica de David; respeito a incrível capacidade do Joshua de entreter; respeito as habilidades de Jonathan no surf e a intensidade com que se envolve em ajudar os outros. Mas com esse respeito vem a sensação que esses desgraçados vão me deixar maluco!”
David estava segurando a maior parte da barra. “Fazer isso acontecer se tornou uma das coisas mais importantes da minha vida”, repetiu ele diversas vezes durante a semana. Mas, na quarta-feira, ainda sem qualquer sinal de Kelly, as coisas estavam ficando tensas. Arthur estava pondo sua atenção no show de sexta, em trazer os surfistas de Gaza para Tel Aviv e em tentar driblar as exigências corporativas da Sakal Sports. “Estou tão, tão cansado disso!”, acabou desabafando. “Eu só queria fazer algo simples voltado para o surf. Agora ninguém está mais me escutando”. Para piorar, o show planejado pela OneVoice em Jericó foi cancelado por questões de segurança. Agora Bryan Adams não viria mais e a OneVoice estava abandonando ambos os shows.
Justo quando eu estava começando a achar que ia tudo cair por terra, soubemos que Slater estava vindo da França. Na quinta de noite, todos se enfiaram no carro alugado de David e seguiram para o aeroporto. Era uma galera bem heterogênea, que incluia Joshua e seu chapéu de feltro, bermudas e tatuagens de pintas de jaguar e pedaços de textos.
Kelly passou pelo portão de desembarque com representantes da Sakal Sports, abraçou David e Joshua e acenou para o resto de nós. Ele parecia despreocupado e feliz de estar aqui. Até onde ele sabia, deveria ficar um dia para participar do show e da oficina. A Sakal Sports já tinha arranjado compromisso para a manhã – algumas crianças com deficiências iam aparecer depois do café da manhã para uma demonstração e autógrafos.
O que aconteceu foi um pouco mais complicado que isso. Na manhã de sexta-feira, em Herzliya, um bairro chique e estiloso de Tel Aviv, na praia atrás do Hotel Dan Accadia, centenas de fãs adultos, paparazzi, crianças desorganizadas e espectadores atentos cercaram os surfistas profissionais. Enquanto guarda-costas vigiavam da praia, dezenas de fotógrafos se enfiavam na água para tirar fotos de Kelly e Makua tentando pegar uma das poucas ondas decentes e ajudar as crianças a subir nas pranchas.
Crianças judias e árabes se amontoavam ao redor de Kelly e, em menor grau, ao redor de Makua, enquanto cartazes da Quiksilver se espalhavam pelo evento. Na água, a molecada e os repórteres cada vez mais animados tentavam ficar o mais perto que conseguissem de Kelly.
“Galera, relaxa!”, gritou ele. “Todo mundo vai ter sua chance de pegar uma onda”.
E no final, tiveram mesmo. A criançada adorou, incluindo uma menininha de nove anos chamada Amna. “Estou feliz e animada”, ela me disse, completamente encharcada, mas com os cabelos cobertos por um véu cor-de-rosa, camisa de manga longa e calças. “Vou surfar mais vezes”.
Após mais de uma hora no sol quente da manhã, Kelly conseguiu sair da praia e entrar em um carro preto que o aguardava. Uma dúzia de crianças saiu correndo atrás dele, pedindo autógrafos. Após assinar alguns e com aparência visivelmente esgotada, Kelly disse, “Isso é tudo, galera” e entrou no carro.
O LANÇAMENTO DA SURFING FOR PEACE aconteceu naquela noite em uma praia no centro de Tel Aviv, em um bar a céu aberto chamado Clara. Duas horas antes, durante o crepúsculo, David, Arthur e Kelly mergulharam no Mediterrâneo com mais de cem fãs árabes e judeus para uma roda de surfistas, onde todos poderiam oferecer uma prece ou dizer algumas palavras de camaradagem. Mais uma vez foi um pandemônio. Todo mundo gritando, tentando fazer os participantes, que estavam sentados em suas pranchas, ficarem quietos para ouvir o que Kelly tinha a dizer – o que era virtualmente impossível devido à música disco de péssima qualidade saindo dos autofalantes do Clara.
“Estamos nos reunindo”, gritou Kelly. “Obviamente, não estamos fazendo um bom trabalho juntos agora, mas o mais legal é que estamos todos aqui pela mesma razão, porque adoramos o surf. Espero que a gente esteja aqui também para tentar amar o próximo e conviver em paz”.
No Clara, a multidão de 3.000 pessoas, a maioria judeus israelenses na casa dos vinte e trinta, estava agitava. Arthur subiu no palco para dar início às festividades. “Estamos aqui graças a ele”, disse, apontado para Doc. “Mostrem respeito pelo cara!”
Cheio de energia, Doc entrou no palco. “Primeiro, para que todo mundo me entenda, quero desejar a todos Shalom Aloha!”, gritou no microfone, socando o ar. “Amor, da galera do Havaí!”
Agora é a vez dos cinco membros do Malca Baya encararem muita microfonia com suas guitarras. Depois da primeira música, em hebraico, juntaram-se a eles Makua com sua ukelele, uma guitarra havaiana; Kelly, com um violão; e Joshua e David Paskowitz. David ficou na frente do palco, cantando “One Voice”: “Hear me, brothers and sisters, there’s no time for later!” (“Ouçam-me, irmãos e irmãs, não há tempo para depois!”). Atrás dele, Joshua cantava em um estilo meio ska, meio reggae. “Turn it to the heavens, and ask Him one big favor!” (“Volte-se aos céus e peça a Ele um grande favor!”)
A multidão foi ao delírio com Kelly, que judiava de seu violão e cantava com o coro antes de uma balada chamada “Trouble”, que ele escreveu sobre um período de sua vida – embora o sentimento parecesse combinar muito bem com a ocasião. Em uma questão de horas, as tensões e o tédio dos cinco dias anteriores evaporaram. Pelo menos por uma noite, a Surfing for Peace existiu de verdade.
OS ESFORÇOS DO GRUPO acabaram aparecendo nas manchetes internacionais, mas não do jeito que todos queriam. Depois do show de duas horas e meia, dos autógrafos e de se esconder por 35 minutos na sala VIP dos bastidores enquanto os seguranças bolavam um jeito de Kelly escapar, parte da turma foi para uma boate, onde Kelly conheceu Bar Refaeli, uma modelo israelense que já namorou Leonardo DiCaprio. No final da noite, do lado de fora do seu hotel, Kelly teve uma discussão com os paparazzi, agarrou a câmera de um fotógrafo israelense e foi empurrado, dando início a uma confusão. Passou o resto da noite na delegacia.
Na manhã seguinte, sábado, todo mundo estava esgotado. “Nem tenho certeza se posso te contar o que tirei disso tudo”, Kelly me disse. “Foram 36 horas de sobrecarga mental e emocional. Não esperava que as coisas saíssem do controle daquele jeito”. Ele riu. “Mas quando tem tanta energia rolando, essas coisas acontecem. Sei que não vou voltar para lá amanhã, mas volto um dia”.
Kelly concordou em adiar sua partida até sábado de noite para se encontrar com um pequeno grupo de surfistas árabes em Jaffe, uma parte bem menos chique de Tel Aviv, longe das câmeras e do esplendor de Herzliya. Um grupo de meia dúzia de garotos de nove anos ou mais apareceu para tirar fotos. Mohammed, de doze anos, deu a Kelly um troféu simbolizando o apreço da comunidade, assim como um kaffiyeh, uma echarpe síria em xadrez preto e branco.
“Obrigado por tudo”, comoveu-se Kelly. “Eu me sinto honrado”.
“Eu surfo só há um mês”, disse Mohammed em um inglês perfeito. “Estava na internet e vi os vídeos de Kelly Slater. Meus amigos me ensinaram a surfar. Acredito que podemos fazer paz quando saímos com os amigos. Isso deixa a vida mais amigável”.
Um surfista na casa dos trinta, o mentor das crianças, assistia tudo de perto. “É uma ótima idéia usar o surf como uma ponte entre israelenses e palestinos”, disse. “Minha preocupação é que isso fique só na praia. Fora da água rola muito racismo aqui, muita segregação”. Mas ver Slater lhe deu um ânimo. “Quando eu disse para os garotos que Kelly Slater era sírio”, continuou, “foi tipo, ‘Como é? Não pode ser! Um cara árabe que venceu no mundo’. Isso dá esperanças às pessoas”.
Depois das fotos, os garotos de Jaffe caíram nas águas para curtir as ondinhas de um metro. Não havia logomarcas, paparazzi ou fãs alucinados. Subiram em suas pranchinhas – algumas enfeitadas com a bandeira da Palestina ou ícones de mártires – e imitaram as manobras que viram em vídeos de seu irmão árabe famoso, que observada tudo da praia.
Para Doc Paskowitz, aquele dia nas ondas lavou grande parte do desapontamento e da frustração. “Você não pode imaginar o prazer que senti com aqueles meninos”, ele me disse depois por telefone. “Fez eu me sentir muito orgulhoso e grande. Fazer com que seu inimigo, por assim dizer, aperte sua mão e te dê um abraço é uma bela medalha para se ter no pescoço”.
Jimmie Briggs é o autor de Innocents Lost: When Child Soldiers Go to War (Inocentes perdidos: quando soldados-criança vão à guerra, sem tradução para o português)
DROPANDO PARA FORA DA ONDA?
Desde 2007, quando Kelly Slater não conseguiu seu terceiro título mundial consecutivo de surf, rumores sobre sua aposentadoria se espalharam. Aqui, o octacampeão fala com Jimmie Briggs sobre a vida após as competições, os perigos de falar o que se pensa, e o que acontece quando você tenta juntar surfistas israelenses, palestinos e um ícone mundial no mesmo break.
OUTSIDE: Você disse que não está pensando em se aposentar, mas vai “pegar leve” na próxima temporada. A perda do título influenciou nessa decisão?
SLATER: Não. Eu costumo pular de cabeça nas coisas e depois fico entediado. Esse lance de competição está começando a me encher o saco. Há novos desafios quando aparece gente nova, mas isso acontece todo ano. Já não é tão excitante como costumava ser.
Você acha que pode ganhar no ano que vem?
Acho que sim, se eu me dedicar. É uma coisa psicológica, a concentração. Aprendi que só se deve ficar se estressando com uma situação ou resultado por alguns minutos. Se não, você fica na defensiva e nunca consegue sacar a situação como um todo.
Que tipo de legado você acha que está deixando para trás?
Eu estava pensando outro dia no que o surf significou para mim. Estou casado com o esporte há 15 anos. Ele me ofereceu muita coisa, mas desisti de muitas outras também. Minhas contribuições terão que ser julgadas pelos outros.
Se pretende pegar leve, o que está planejando fazer com seu tempo livre?
Não sei se tenho sonhos de grandeza. Tenho que descobrir o faz sentido para mim. Eu realmente admiro as pessoas que ajudam os outros, em um nível pessoal.
Foi isso que o atraiu na Surfing for Peace?
Essa galera vive em guerra há tanto tempo, mas têm uma coisa em comum, que é o surf. A galera está surfando nas mesmas ondas em Gaza e em Israel. A idéia é que temos aqui uma coisa que todos amamos e podemos estar surfando exatamente na mesma onda ao mesmo tempo. Tem algo de espiritual nisso. Maior que os outros problemas que parecem tão grandes.
Como foi essa experiência?
O tempo todo que estive lá, eu pirei. Tinha mais de mil pessoas num dos dias, na praia. Não sabia que tanta gente sabia quem eu era. Todo mundo estava feliz. Ao mesmo tempo, a idéia da Surfing for Peace é tentar trabalhar em conjunto, mas a gente não estava conseguindo fazer isso de verdade.
Durante seu envolvimento, você se sentiu puxado pelos vários lados em Israel?
Eu provavelmente simpatizo, de muitas maneiras, com as dificuldades que os palestinos enfrentam. Israel tem mesmo um tremendo apoio dos Estados Unidos, tanto financeiro como militar. É quase como se fosse uma guerra racial. Tanto os israelenses como os palestinos vivem com medo e não confiam uns nos outros. Não acho que qualquer um dos lados está certo ou errado. Vejo muita coisa errada, mas não acho que qualquer um dos lados esteja certo.
As pessoas te enchem muito por falar sobre um assunto como a paz?
Mandaram algumas cartas para revistas e sites de surf. “Não queremos ficar ouvindo um surfista qualquer falando de política”. Por que não? Sou uma pessoa como qualquer outra. Provavelmente tenho uma visão mais cosmopolita que a maioria, já que tive a oportunidade de conhecer muitas culturas diferentes. É fácil apontar o dedo para mim e dizer, “Ora, ele é bem-sucedido, tem um monte de dinheiro, por isso é fácil para ele ficar falando”. Isso é verdade, mas enfiar o nariz nas coisas mostra que estou disposto a aprender coisas novas.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2008)
CENTRO DAS ATENÇÕES: Crianças israelenses cercam Kelly Slater e Makua Rothman na praia de Herzliya, em Tel Aviv
FLÓRIDA: Kelly Slater em Cocoa Beach, novembro de 2007
CLÃ: Doc com os seus filhos Jonathan, Joshua e David (a partir da esq.) em Tel Aviv