Por Caco Alzugaray
"VOCÊ VIU QUE CORTA-VENTO à prova d’água é obrigatório? Você tem algum levinho?", perguntei pro Zé Caputo, meu parceiro de prova nos três dias e quase 90 quilômetros somados da Cruce de los Andes, uma ultramaratona de montanha que anualmente larga da Patagônia argentina e chega na chilena.
"Tenho um leve, na verdade leve demais para a Patagônia. Se estiver frio na largada, coloco um mais pesado. E o que eles querem dizer com levar um polar como equipamento obrigatório? Será que os ‘boludos’ só correm prova com freqüencímetro? Rárárá!", riu Zé, se referindo à marca de relógio e não a de vestuário de frio.
"E rango, vamos de gel? Será ‘socação’ e não dará pra engolir nada sólido. Por via das dúvidas, levamos carne seca defumada embalada a vácuo e temos um salzinho pra emergência", sugeri.
"Fechado. E para o acampamento entre etapas? Vamos comprar o vale-refeição para a comida servida pela organização? No máximo levamos no nosso container uns salgadinhos e umas garrafinhas de vinho pra relaxar", disse Zé.
"Vinho?", pensei, comemorando. "Ele pensa em levar vinho pra noites entre as etapas? Caraca!" Ali tive certeza que tinha escolhido o parceiro certo.
A 15 dias da largada, a conversa na mesa do restaurante, para variar, era insuportavelmente monotemática. Eu, Zé, minha esposa Ana Carina, a esposa do Zé, Cris Carvalho (minha treinadora, que também iria correr) e o casal de amigos Said e Sílvia, acaváramos de sair de um espetáculo musical em São Paulo e só conseguíamos falar sobre equipamentos, desnível de percurso e estratégias.
Cris, a ex-atleta de elite do triathlon – hoje também da linha de frente dos esportes de aventura, como mountain bike, trail running e corrida de aventura – não escondia um divertimento sarcástico e competitivo quando desafiava nossa dupla, minuto sim, minuto não. Na seqüência, ela fazia questão de nos lembrar que eu e Zé havíamos a abandonado na hora de encontrar uma pessoa para formar a dupla e que por causa disso, ela nos atropelaria na prova. Se a abandonamos à sorte, Deus por sua vez foi mais cavalheiro, pois a enviou Alexandre Ribeiro como parceiro de dupla, ninguém menos que o bicampeão mundial do Ultraman do Havaí. Mesmo sabendo que a dupla mista era seguramente mais forte que a nossa, aceitamos o desafio e seguíamos nos divertindo, ali e durante toda a prova.
SEXTA-FEIRA, 8 DE FEVEREIRO, 8H50. Faltavam 10 minutos para a largada à margem do lago de degelo Mascardi. Despedimos-nos dos familiares, que somente veríamos dali a três dias. A paisagem, que se seguiria nos dias seguintes, era de amolecer as pernas: uma cadeia montanhosa dramática, com cumes nevados. Um pouco abaixo, na zona subalpina, bosques nativos de uma só espécie, cruzados por inúmeros rios e riachos que deságuam em lagos sempre cristalinos.
"Cuatro, tres, dos, uno: vamos [lê-se "bamos"] chicos, diviértanse!". Assim Sebastian Tagle, o esforçado organizador do evento, dava a largada para a sexta edição da Cruce de los Andes. A Cruce (cruzada, em espanhol) é uma ultramaratona em montanhas, sempre sediada em algum lugar diferente da Patagônia norte. A prova tem três etapas de aproximadamente 30 quilômetros cada, uma por dia.
Era a primeira vez dos quatro e estávamos curiosos para conhecer o tipo de desconforto físico gerado, um mix de ingredientes para o sofrimento: corrida em trilha, em montanha, em dupla e com o peso da mochila dos obrigatórios e de toda a água, pois a prova não tem postos de hidratação, apenas natural. E em qual pelotão ficaríamos entre as 500 duplas? Claro que não tínhamos a mínima pretensão de chegar entre os dez primeiros, pois éramos corredores multiesportivos, ou seja, não treinávamos apenas corrida.
A primeira foi a etapa mais dura para mim, pois o Zé estava ligeiramente melhor condicionado e puxava o ritmo com carinhosos gritos motivacionais "bora, Cacôôôô! Vamos pegar os caras, c*%&@!*®, acredita!". Também foi uma etapa importante para descobrirmos como nossa dupla funcionaria. Fiquei feliz de perceber que a diferença era bem pequena e que dava para eu acompanhar o ritmo do Zé, de cabrito na subida e de cavalo picado por abelha na descida. A diferença, basicamente, era que enquanto ele "apenas" sofria muito e eu já passara essa fronteira, e corria pedindo força extra a Deus.
E deu certo. Depois de 28 quilômetros de muito sobe e desce nas encostas do exuberante Mascardi, nossa dupla, a Go Outside/Núcleo Aventura, concluiu o percurso no bom tempo de 3h8min. Também comemoramos o fato de ficarmos "apenas" a 18 minutos da Cris e do Alê e na 33a colocação entre as 490 duplas.
Descansávamos no acampamento à margem do mesmo lago verde esmeralda do qual largamos. Cris e Ale, que compunham a dupla Núcleo Aventura/Pró Ribeiro (nome composto pelas marcas suas respectivas assessorias de treinamento) e que chegaram em primeiros na categoria mista e em 12o na geral, já sabiam quem eram seus adversários: uma dupla argentina, que chegou 10 minutos depois e outra formada por uma argentina e um queniano, 12 minutos atrás. A disputa da minha dupla – saudável, gostosa e tudo o mais que seja politicamente correto, mas d-i-s-p-u-t-a – se desenhava com dois brasileiros gente boa, Leal e Braga da assessoria Trilopez, que chegaram 4 minutos atrás de nós.
Passamos a tarde fazendo contas de tempo, comendo o escasso rango disponibilizado pela organização (massa ou frango), curtindo a praia do lago e acabando com a primeira caixinha longa-vida de vinho vagabundo. Tudo aquilo era definitivamente muuuuito mais tranqüilo que as corridas de aventura longas, nas quais ficamos cinco ou seis dias correndo, pedalando ou remando sem parar.
ERAM 5 DA MANHÃ e os atletas acordavam. Aproximadamente mil lanternas de cabeça cruzavam raios de luz no frio da madrugada, enquanto desmontávamos as barracas, juntando as tralhas nos containeres disponibilizados pela organização. Tínhamos que tomar café e colocar todos os equipamentos nos caminhões até às 6h30, para largar dali mesmo às 8, uma "pagação" de sapo desnecessária, ainda mais por que garoava e mal tínhamos aonde nos abrigar.
Em ponto largaram os primeiros 50 colocados da geral do dia anterior, e a cada 4 minutos os 50 seguintes, num formato que dá certo, pois evita ultrapassagens desnecessárias nas estreitas trilhas, não interferindo nos tempos finais das duplas. Para mim e pro Zé foi muito bom porque nos empolgamos nesse pelotão "soca bota" e terminamos a etapa de 19 quilômetros e menor desnível entre os 23 primeiros, em 1h33min.
Cris e Alê comemoraram muito o tempo de 1h27min e, mais do que isso, a manutenção da posição geral: eram de novo os primeiros da categoria mista. A felicidade só não era completa porque a nossa disputa com os brasileiros se acirrou: a Trilopez chegou dois minutos na nossa frente. Agora só tínhamos 2 minutos na frente deles, no acumulado, quase um empate técnico. A última e mais dura e longa etapa definiria quem eram os melhores em montanha.
Nesta noite dormimos à margem do Manso, um rio de degelo dos glaciares. O acampamento foi no Pampa Linda, um sítio de apoio a turistas e escaladores que visitam o Tronador, um dos picos mais altos da Patagônia, com 3554 metros de altitude. Nem preciso descrever o visual.
Sebastian anunciou o que viria pela frente: 33 quilômetros por uma trilha utilizada na lendária corrida de aventura Eco-Challenge de 1999, com muita subida e, conseqüentemente, muita descida (ou "despenking", como costumamos brincar), tudo ladeando pelo glaciar do Tronador, passando pelo passo das Nubes (nuvens), que pelo nome presumíamos que não era um passo baixo. Enfim, um percurso que exigia habilidades específicas dos que desejavam socar a bota.
AINDA ERA NOITE quando foi dada a largada da terceira etapa para as primeiras 50 duplas. Chegara a hora de cada um colocar seu bicho pra fora. Na tarde anterior, quando procurávamos o que fazer além de tomar vinho ao pé do Tronador, conversamos com outros times. Era interessante notar que cada competidor, buscando ou não colocações no ranking, tinha seu próprio fantasma naquele último dia. Podia ser se dar bem nas disputas do pelotão, não quebrar (ou seja, ultrapassar o limite físico), sofrer menos nas subidas, forçar mais o ritmo, ou agüentar o sofrimento do limiar aeróbio alto durante muito tempo. Mas depois de correr os primeiros 100 metros com aquele inevitável desconforto de início de prova, os bichos começavam a se desapegar do corpo.
Zé Caputo havia sugerido outra estratégia: não largarmos tão forte e tentarmos crescer ao longo da prova, enquanto nossos concorrentes provavelmente perderiam o ritmo. Custei a concordar, pois defendia que nosso ritmo cairia de qualquer jeito no último terço do percurso, tendo ou não largado pra morte. Mudei de idéia quando a contagem regressiva para o início batera os dez segundos. "Zé, beleza! Vamos sair mais tranqüilos", disse. O que o medo do desconforto inicial não faz.
Zé se mostrou certíssimo. Quando meu relógio GPS (mais do permitido, muito utilizado pelos corredores neste tipo de prova) marcava 20 quilômetros corridos, já havíamos ultrapassado fazia tempo tanto a Trilopez quanto outros concorrentes de pelotão. E para nossa surpresa, avistamos Cris e Alê, dez metros à frente.
"Criiiiiiiiiiiiiiiiiiiiis!", berrei, com sarcasmo. "Acelera porque a outra dupla mista está na nossa bota, a 20 metros". Minha treinadora olhou para trás, se perguntado em silencio "que m. vocês estão fazendo aqui?", mas a sua boca soltou um "caramba, não tinha uma notícia melhor pra me dar? Acelera Alê!".
Desta forma, orgulhosos pelo nosso desempenho e com o psicopata do Zé querendo passar a esposa e o Alê de qualquer jeito, seguimos até a linha de chegada, já no Chile. Nossas últimas frases antes da chegada, a 300 metros piramba acima, foram:
"Caco, você acha que dá pra buscar a Cris e Ale? É um tirinho…"
"Zé, eu tenho família pra criar".
A Cris e o Alê terminaram a etapa em 3h47min, ganhando a etapa e vencendo a prova na categoria mista. Foi um orgulho para o Brasil, já que as cinco primeiras duplas mistas eram muito fortes, formadas por corredores e/ou triatletas de elite. Eu e o é fizemos o trecho em 03:48 min, terminamos o terceiro dia em 13o na geral e ficamos em 19o no acumulado.
Participaram desta versão do Cruce de Los Andes 982 atletas de 18 países. Entre as 12 duplas melhores colocadas ao final da competição, tinham atletas de seis países: Argentina, Espanha, Etiópia, Brasil, Uruguai e Bélgica.
A dupla vencedora no geral foi a argentina Columbia Challenge, em segundo chegou a também Argentina Optitech e em terceiro o Team Teva, composto por um espanhol e um Etíope.
Trouxemos para o Brasil as memórias (corporais e mentais) de uma das provas mais lindas e difíceis que já corremos e a certeza de que vinho entre etapas de competições (tudo bem…moderadamente…) , se não ajudar, pelo menos não atrapalha a performance: YES!!!
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2008)
CRUZADA: Caco ( na frente ) e Zé Caputo morro acima
SOCIAL DA PROVA: Acampamento
TRAVESSIA: Rios de águas geladas
VERDES MATAS: Single track pela floresta patagônica