Por Fernando Tucori EU NUNCA TINHA OUVIDO A PALAVRA “PERRENGUE” ser pronunciada tantas vezes até topar fazer esta matéria sobre o Ecomotion/Pro 2007. De fato, eu estava feliz. Ia cobrir a maior prova de corrida de aventura da América Latina para a revista de esportes de aventura mais importante que conheço. A largada seria no dia 21 de outubro, domingão, no bairro da Urca, Rio de Janeiro. Porém, para mim, a prova começou antes, na quinta-feira, quando conheci o fotógrafo Alexandre Cappi. Conversando com ele, percebi estar pouco preparado para a cobertura: não tinha um saco de dormir, não sabia para que servia um isolante e não fazia a mínima idéia do que seria um anorak. Por sorte, Cappi tinha cada um desses itens sobrando na casa dele e foi pra lá que eu fui, 24 horas antes de partir rumo ao Rio. Ele repetia a pergunta que o pessoal da redação fizera pra mim: “você tem medo de passar perrengue?”. Diante da minha negativa, eu e Cappi traçamos um plano base. Ele iria para o Rio antes e, lá, nos encontraríamos. Acompanharíamos a equipe da videorrepórter Renata Falzoni, e teríamos disponível um carro oficial da organização e a agilidade para acompanhar as equipes que quiséssemos. Pra mim, o ideal.
Dormir no mato não me metia medo. O único problema seria se chovesse, mas o Rio não via chuva há coisa de seis meses e não era justamente agora que a conta iria falhar. Pois é. Dizem que para fazer Deus rir, basta contar a Ele seus planos para o futuro. Então, naquele momento, Deus deveria estar rachando o seu divino bico da nossa ingenuidade.
O ônibus que levaria a imprensa até Búzios, ao norte do estado do Rio, onde as 55 equipes participantes já se concentravam, teria saído às 22 horas não fosse um maldito repórter que não apenas se atrasou, mas também desligou seu celular e ninguém sabia onde o bastardo estava. Aproveitei esse tempo para fazer amizades importantes como o Leco, do Studio Leco de fotografia, que ia contando para mim e para o pessoal do programa de TV Gravidade Zero, de Londrina (PR), que cada dólar investido em esporte representa 100 dólares de economia em construção de presídios, recuperação de infratores e em combate às drogas. A equipe médica, formada por legítimos heróis do corpo de bombeiros de São Paulo e comandada pelo folclórico doutor Clemar Correa, trocava suas impressões a respeito do BOPE e do Tropa de Elite e impressionava pela capacidade de recitar diálogos completos do filme de José Padilha. Perguntamos para Gabriela Toledo, da assessoria de imprensa, quem é que estávamos esperando para ir embora e ela respondeu que só faltava o repórter da Go Outside, um tal de Fernando Tucori. Não que o idiota tivesse chegado atrasado. Na verdade, ele chegou meia hora antes, não avisou ninguém e deixou seu celular desligado dentro da mochila que guardava seu assento no ônibus. Isso não fazia dele menos idiota, mas, pelo menos, nos credenciava a partir.
Durante a viagem, a única coisa que me preocupava é que eu não havia comprado o estoque de barra de cereais que Cappi havia me aconselhado a comprar. Consegui fazer isso na segunda parada, já em Rio Bonito, e, tomando o café da manhã na mesma mesa que o Leco, testava o limite de nossa insanidade. “Leco”, eu dizia, “e se a gente comprasse um desses tatus de madeira e desse de presente pro pessoal da Sole, como amuleto, pra eles carregarem durante toda a prova?”. Ele ria com gosto. O tatu em questão devia pesar coisa de 50 quilos de madeira maciça. “Ótimo!”, ele dizia, “a gente podia dar um peso-morto desses para cada uma das equipes gringas. E, se é pra levar um tatu, vamos levar também uma tartaruga. Pra quem a gente daria a tartaruga?”, perguntou. “Acho que seria uma boa dar pra Buff”, eu disse. Era uma decisão lógica. A norte-americana Vivo Sole ganhou o último Ecomotion e a espanhola Buff Coolmax ganhou o penúltimo. A gente não ia sacanear com nenhuma equipe brasileira, ia?
Durante toda a prova, boa parte das piadas do pessoal da imprensa girava em torno de um tatu chamado Gérson e de uma tartaruga chamada Jussara. Parecíamos retardados rindo de uma coisa tão absurda, mas ninguém se importava. Num certo ponto, a brincadeira virou mania e até os jornalistas gringos estavam fazendo piadas com Xérson e Xiussara.
Para o sábado estava previsto um almoço de confraternização, com presença de todas as equipes e apoios, imprensa e o staff da organização. Foi ali que a prova, de fato, começou. O restaurante poderia estar acostumado a servir almoço para coisa de cem ou duzentas pessoas, mas ninguém no mundo poderia prever o que acontece quando se junta aquele tipo de gente em volta de apenas três mesas servindo comida. Atente ao detalhe: pelo menos 220 pessoas – quatro atletas de cada uma das 55 equipes – estavam prestes a se embrenhar no mato e, provavelmente, passariam dias sem comer uma refeição como aquela. E eles comiam como equipes: teciam estratégias, faziam alianças e não aceitavam roer nenhum osso. Ninguém queria esperar a próxima fornada sair e, por isso, não havia mesa que bastasse a todos.
Um apoio de uma equipe estrangeira rosnava sentado na mureta do jardim, reclamando que não iria comer como um cão. O cachorrão aqui já havia sitiado uma das mesas e, empunhando uma pinça gigantesca de pegar alface, passava a tarrafa em uma travessa de peixe cozido, servindo porções generosas a toda uma equipe e mais alguns apoios e staffs. Na parede perto da cozinha, um quadro com um cardume de tubarões-martelo não parecia tão faminto quanto o ambiente em torno das mesas. Durante a sobremesa, reencontrei Cappi, que me apresentou à “vovó” Falzoni. Apesar de ela ter implicado com o maço de cigarros no meu bolso, o seu olhar era o da autenticidade em forma de pessoa. Não havia como aquilo sair errado.
Combinamos que, no dia seguinte, às 15 horas, eles me buscariam no hotel e iríamos todos para a largada. “Hoje você pode curtir. Amanhã você é nosso”, disse Cappi. Terminamos a noite numa boate de Búzios, em uma equipe de três jornalistas incumbida de dividir 50 reais em cerveja e voltar para o hotel tão rápido quanto fosse possível. No café da manhã, ficamos sabendo que um de nós – não conto quem – chegou ao quarto do hotel onde estávamos hospedados e tentou urinar dentro das botas de um dos fotógrafos.
No domingo, Cappi e Falzoni apareceram no hotel exatamente no horário previsto e nós pegamos a estrada para o Rio de Janeiro.
Encontramos um entardecer de cartão-postal no bairro da Urca. O sol baixava vagarosamente no céu vermelho, por detrás do Cristo Redentor, maravilha recém-eleita. Se Cristo abria seus braços para o Ecomotion/Pro 2007, a Associação de Moradores do bairro da Urca cruzava os seus. Eles já não andavam muito satisfeitos com a decisão de transformar o Cassino da Urca – tombado pelo Patrimônio Histórico Nacional – numa escola de design e, para eles, permitir que a largada acontecesse ali era abrir um precedente perigoso.
Marcelo Camelo, da banda Los Hermanos, passa por nós e olha assustado a movimentação dos moradores, portando faixas de protesto e ameaçando “chamar a Globo”. Atrás de mim, uma jornalista gasta seu latim tirando as dúvidas de uma daquelas autênticas personagens de Nelson Rodrigues, a quem o repórter se referiria como “grã-fina de nariz de cadáver”.
“Como é que é mesmo o nome?”, ela quer saber.
“Ecomotion, minha senhora. É a maior prova de corrida de aventura da América Latina. Vem equipe do mundo inteiro participar. E esse ano é importante porque no ano que vem, a Copa do Mundo das corridas de aventura vai ser aqui no Brasil, sabia?”, explicava a jornalista.
“É mesmo? E quanto tempo dura essa corrida?”
“Ah, dura a semana toda.”
“A semana TODA? Minha nossa senhora! E como eles fazem pra tomar banho, pra fazer as necessidades? E a roupa? Como eles fazem pra trocar de roupa?”
“É tudo durante a corrida, minha senhora. Vão ser quatrocentos-e-quarenta-e-quatro-quilômetros de corrida”.
“Meu Deus do céu. Eles vão a pé?”.
“A pé, também minha senhora. Eles vão largar daqui com os caiaques e vão remar quase que até Teresópolis, pegam as bicicletas e, depois, vão até o parque nacional da Serra dos Órgãos, atravessam a serra e vão embora”.
“E quando eles pegam as bicicletas, onde eles deixam os caiaques?”.
“Tem o pessoal do apoio deles que cuida disso.”
“E onde acaba?”
“Em Búzios, minha senhora.”
“Caramba… que disposição!”
Enquanto a grã-fina falava a respeito do Cassino da Urca – ela achava que aquilo era uma “velharia”, que “tinha que ser demolida” e, em seu lugar, construído um estacionamento, “porque a Urca precisa de estacionamento” – chegava a informação de que a largada seria um pouco mais tarde e um pouco adiante, na Escola Superior de Guerra do Rio de Janeiro, às 23 horas.
Ao chegar no novo local da largada, havia dois balões fazendo as vezes de velas naquilo que era um inegável banquete para os olhos. O acender repentino das chamas dava o tom de ansiedade e, quando dois helicópteros vieram contribuir com um violento rufar de hélices para aquele momento “Cavalgada das Valquírias”, tive a exata proporção do que era estar entre heróis.
Naquela eternidade de segundos que antecederam o sinal da largada, Cappi, postado com sua câmera no píer, via a tensão escorrer em gotas de suor, na espera de registrar o momento perfeito.
Depois que a buzina da largada soou – é um som inesquecível esse – e todas as equipes desapareceram com seus caiaques pela baía de Guanabara, o clima entre os que ficaram era de reveillon. Todos se abraçavam e desejavam boa sorte, certos de que, mais tarde, iam se encontrar outra vez e teriam um mundo de histórias para trocar.
NO PRIMEIRO DIA, SEGUIMOS O PLANO traçado e passamos a noite em Teresópolis, perto da entrada do parque nacional da serra dos Órgãos (PARNASO). A idéia era esperar as primeiras equipes no posto de controle (PC) número 4. Contávamos que as equipes teriam atravessado a baía de Guanabara, feito a transição para o trecho de bike em Magé (RJ) e, breve, estariam a caminho da base do Dedo de Deus, em Teresópolis (RJ), de onde, depois de nova transição, seguiriam no trekking até o parque. Porém, ao ligarmos o rádio-comunicador soubemos que o panorama era outro. Na manhã de segunda-feira, apenas duas equipes registraram passagem no PC 1 e muitas delas haviam sido pegas pela vazante da maré e estavam presas na lama, arrastando lentamente seus caiaques até o PC 2.
Quem também estava encalhado no mangue era Said Aiach Neto, organizador da prova, que fazendo uso de seu afiado senso de oportunidade, pediu para que os helicópteros da organização viessem imediatamente registrar o cenário que ele via de onde estava. Cappi aproveitou a deixa e partiu para registrar o drama das equipes, atoladas até a cintura na lama, espantando caranguejos às bofetadas, mas sem jamais perder o bom-humor que aos poucos eu ia identificando como inerente aos esportes de aventura.
Assim que o helicóptero voltou ao chão, no heliporto improvisado num campinho de futebol em Magé onde Garrincha muito bem poderia ter dado seus primeiros passos no futebol, partimos para o PC 4 onde, pela primeira vez, eu poderia ver uma equipe de apoio em ação. No caminho de volta, completamente absorto na atividade de observar as estudantes normalistas que esvoaçavam como borboletas pelas ruas da cidade, quase perdi a bomba que o rádio-comunicador nos atirava em mãos: três equipes haviam chegado ao PC 2 sem passar pelo PC 1. Uma delas era a brasileira Motorola S.O.S. Mata Atlântica. Ao saber disso, Renata Falzoni deu a única explicação que via como plausível: Zé Pupo, experiente navegador da equipe brasileira, jamais teria errado a localização do PC 1. Portanto, havia alguma coisa errada com o PC 1. Logo em seguida, a organização da prova admitiu que o posto havia sido colocado em local errado e ele foi cancelado.
Quando chegamos ao PC 4, nem precisamos esperar muito até que as primeiras equipes aparecessem. Eu estava conversando com Geoff Hunt, diretor da Adventure Racing World Championship – a FIFA dos esportes de aventura – quando as equipes que lideravam a prova (a Buff, a francesa Wilsa Hellyhansen e a neozelandesa OrionHeath.com) chegaram praticamente ao mesmo tempo. Nosso carro, não por acaso, estava parado exatamente atrás do apoio da Wilsa e Geoff Hunt, pacientemente, ia me explicando o porquê de cada detalhe da transição. Ele fala sobre as fitas adesivas que são grudadas nos mamilos dos atletas para que eles não fiquem em carne viva por causa do atrito com a roupa e explicava a importância do creme que os atletas lambuzam generosamente em seus pés, axilas e virilhas, para acalmar a fúria das assaduras e das bolhas.
O apoio serve macarrão morno num saco plástico aos atletas. Geoff pergunta se eles estão cansados e ri quando eles respondem “just a little bit” (apenas um pouquinho). Os atletas rasgam o plástico com os dentes, apertam o saco e mandam pra dentro da boca o máximo de macarrão que podem. Penso se isso não é uma boa idéia os meus cafés da manhã contra-relógio. A sueca Bjufords Adventure Racing, a S.O.S. Mata Atlântica e a Sole, que recuperou na bike o tempo que passara perdida, partem para o PARNASO formando um sólido pelotão de frente que ia sofrer poucas alterações dali em diante.
O erro na localização do PC 1 foi um fator decisivo na formação desse pelotão que se manteve até o fim da prova. Senti uma dor legítima quando, acompanhando de carro a Sole, encontramos a S.O.S. parada no início do trecho de trekking enquanto um de seus integrantes voltava ao PC 4 para encontrar o mapa que havia sido esquecido por lá. Quando chegamos no início da entrada para a trilha que levaria até a pedra do Sino, vimos as equipes Buff e OrionHealth, emparelhadas, se embrenharem na mata. Falzoni e Cappi subiram atrás deles. Estavam decididos a passar a noite na serra dos Órgãos. Achei que seria loucura tentar acompanhá-los e eles acharam que seria loucura deixar um carro carregado de equipamentos desprotegido. Loucura por loucura, o carro ficaria comigo e eu dormiria na segurança do PC 4, aguardando contato na manhã seguinte para saber onde e como iria buscá-los.
FOI JUSTAMENTE NAQUELA NOITE que o segundo imprevisto aconteceu. A chuva que o Rio de Janeiro não via há seis meses desabou violentamente sobre Teresópolis às 21h30. As equipes que formaram aquele pelotão de frente já haviam passado pela pior parte do trajeto e, quando a chuva veio, elas já estavam sobre suas bikes, pedalando rumo PC 7. A chuva chegou ao PC primeiro, às 2h da manhã de terça-feira. A Buff chegou logo depois, às 3h10. Antes das 4h, eles teriam a companhia de Wilsa e OrionHealth. A Sole, quarta equipe a encaixar seu chip no PC 7, só chegaria ao raiar do dia, às seis e meia da manhã. E as equipes que, como Falzoni e Cappi, passaram a noite no PARNASO? Como teriam se virado?
A resposta mais apropriada para a pergunta é “não muito bem”. Com a chuva, a temperatura caiu muito e a hipotermia era um fantasma real. Havia dois abrigos na serra dos Órgãos. A imprensa oficial estava nos dois. O primeiro deles, onde Cappi e Falzoni passaram a noite, amanheceu como um abrigo de refugiados de Kosovo. Uma das fotos que Cappi tirou de lá mostra tantas cabeças num só enquadramento que parece a pista de dança de uma festa em que todos resolveram ir vestidos de atletas de corrida de aventura. A equipe brasiliense Oskalunga Sundown colheu os frutos da estratégia de combater o frio por meio do movimento constante e começou a consolidar ali o seu posto de equipe brasileira melhor colocada na prova.
Além de ter separado decisivamente o pelotão de frente do resto dos competidores, a chuva fez com que, por motivos de segurança, toda a parte de técnicas verticais fosse cancelada. Desafiando o mau tempo, seguimos até o PC 7, para onde se dirigiam, de bike, todas as equipes que haviam saído do PARNASO. Os funcionários da organização que trabalharam lá descrevem a noite em que a chuva começou como um pesadelo. Não havia sequer uma luz, chovia torrencialmente e as equipes só acreditavam que a cachoeira do Frade estava ali quando um ou outro relâmpago iluminava por instantes a paisagem, dando àquilo tudo um ar de cena excluída de um filme de Tim Burton.
Édson Dutra, da equipe médica, contava que a Bjufords teve problemas quando a chuva realmente engrossou porque eles decidiram dormir na encosta de um barranco e, quando o mundo caiu, eles quase foram levados embora pela enxurrada que descia do morro.
Não sei se foi aí, mas foi debaixo da chuva de terça-feira, que me dei conta que havia algo mais interessante do que as façanhas sobre-humanas de uma prova como esta. Havia ali algo inegavelmente humano e, a cada história que colhia, mais estava certo de que a última colocada seria tão aplaudida quanto a primeira e que, como em toda saga de herói que valha a pena ser contada, a jornada era muito mais importante que o destino.
Ainda debaixo de chuva, acompanhamos a passagem da Buff pelo PC 25, em Rio das Ostras (RJ), onde os espanhóis fizeram a última transição, largando as bicicletas e pegando os caiaques que os levariam até a chegada, em Búzios. A equipe entrou na água ao lado da casa onde morou o escritor Casimiro de Abreu e seguiu no rio, acompanhada por nossa equipe, até chegar ao mar. O medo ficou evidente em seus rostos, quando nosso barco fez meia-volta, retornando ao ponto de onde havia saído, antes que a água ficasse completamente salgada. O experiente piloto do barco não se arriscaria contra aquelas ondas. “Parece aquele filme ‘Mar em Fúria’, sabe?”, dizia Cappi. Parecia mesmo. O barco não se arriscaria, mas os caiaques seguiram em frente e a gente só saberia o que aconteceria com a Buff quando os encontrasse outra vez, na linha de chegada.
Era noite de quarta-feira e, enquanto eles remavam rumo ao PC 26, eu tomaria meu primeiro banho da semana. Quando estávamos a caminho da chegada, soubemos que a Buff havia aberto seu rádio e que poderia estar perdida no mar. Toda a imprensa estava esperando, mas eu ainda temia por uma tragédia de tal maneira que, quando a Buff finalmente chegou à praia, por volta de uma e meia da madrugada, eu chorava mais do que eles. De cima do pódio, Emma Rocca dizia que, para vencer, é preciso acreditar que é possível vencer e jamais jogar a toalha. Disse a ela que havia ficado com medo que eles tivessem se perdido no mar. Emma disse que eles não se perderam, mas que aquele trecho final havia sido tão difícil que eles acharam melhor abrir o rádio. “A gente estava enfrentando ondas de quatro ou cinco metros. Era realmente perigoso. Paramos e pedimos ajuda numa casa, mas as pessoas não entendiam a nossa língua e não quiseram abrir a porta. Então, abrimos o rádio e eu disse ‘Said, o que é que a gente faz?’. A situação estava feia e a gente precisava avisar as outras equipes de que o mar não estava fácil. Talvez eles não soubessem o que teriam de enfrentar”, disse Emma.
Enquanto ela sorria pra mim e dizia algo como “felizmente tudo acabou bem”, eu parecia ter sido atingido por um raio. Meus olhos estavam fixos no lóbulo da orelha de Emma e eu não podia acreditar no que via. Era a prova máxima de que, se existe um Deus, o senso de humor Dele é formidável. Corri para a van da imprensa e disparei a manchete: “ELES TROUXERAM A JUSSARA”. Os fotógrafos, que já davam o trabalho por encerrado e enxugavam seu equipamento, arregalaram os olhos e voltaram para a praia. Em questão de instantes, Emma estaria novamente cercada por fotógrafos que, aos berros de “sai! sai! sai!”, disputavam a melhor foto da orelha da espanhola. Emma terminara a prova usando brincos de tartaruga e aquilo que havia sido nossa diversão por toda a prova, assumia ares de premonição.
Acompanhei Emma na subida que a levaria até a pousada onde estava hospedada e, ao lado de Felipe de Paula, do site oficial da prova, tentava explicar a ela o porquê do súbito apetite dos jornalistas por suas orelhas. Ela ria, divertida. “Então foi uma premonição? Vocês da imprensa sabiam que a gente ganharia?”. Eu tentava encontrar um equivalente em espanhol para “mais ou menos isso”. “Então por que você não contou isso pra gente antes?”, ela disse, com um sorriso lindo como o céu deveria ser.
Abracei seu corpo gelado, dei parabéns pela conquista e fui embora. Dali em diante, para meu total constrangimento, eu não poderia mais ver Emma sem que desatasse a chorar novamente.
A história havia sido feita e, agora, era hora de buscar as histórias, não menos importantes, mas tão fascinantes como a que eu acabara de testemunhar.
Obs. 1: Declaro aqui não ser verdade que Leco e eu fomos chamados ao palco por Thiago Valois, diretor-técnico da prova, para que apresentássemos o Funk do PC – um verdadeiro sucesso na van dos jornalistas – durante a festa de encerramento da prova. Também não é verdade que fomos vaiados, expulsos do palco e teríamos sido alvo de latinhas se o próprio Said não tivesse intervindo a nosso favor, naquele que seria o maior mico de nossas vidas.
Obs. 2: Por causa da imensa falta que irá fazer no Ecomotion 2008, o texto e as fotos desta matéria são dedicados ao Pedrinho Sansão que, para sempre, será o cara mais legal da história. Infelizmente ele morreu num acidente de carro, na volta da prova.
HISTÓRIAS DE SUPER HERÓIS
Piada pronta
Na noite em que a chuva começou a equipe canadense abriu seu rádio. Eles haviam perdido o mapa e não conseguiam encontrar o caminho para o PC 4. A organização sugeriu que eles procurassem a rodovia mas, para ajudar um pouco, as luzes da rodovia se apagaram. Assim, a equipe canadense, chamada Lost In Transition, acabou perdida justamente na transição da bicicleta para o trekking.
Pangarés
O trecho de cavalgada, entre os PCs 12 e 14, causou grande curiosidade entre os populares que acompanhavam a prova, porque os cavalos precisavam ser conduzidos numa velocidade tal que não maltratasse os animais. “De que adianta esses cavalos lindos e fortes, se esses caras levam eles como se fossem pangarés?”, dizia um morador que acompanhava a prova.
MacComotion
O carro da imprensa oficial emparelha com as atletas da Atenah Natura. A câmera aponta para Nora que, antes de qualquer pergunta, dispara: “Eu quero um McChicken, batata frita, um suco e um sundae de chocolate para a sobremesa”.
Um cachorro chamado Sai Fora
O PC 20, em Barra do Sana, onde os atletas faziam transição do trekking para a canoagem, recebeu um visitante insólito: um carente cãozinho preto que foi encontrado na cama de um dos fiscais. “Encontrei esse cachorro na minha cama. Então, dei pra ele o nome de Sai Fora”, dizia o sujeito. Durante a passagem da S.O.S. Mata Atlântica, a atleta Manuela Vilaseca brincou um pouco com o Sai Fora antes de cair na água. Foi o que bastou. O cão seguiu a equipe até as corredeiras e voltou amuado por não conseguir acompanhá-la. Na quinta, Sai Fora já havia conseguido chegar no PC 25, em Rio das Ostras, e houve quem apostasse que, se ele não estivesse na chegada até sexta, era presença garantida na festa de enceramento, no sábado. O capitão da equipe E.C.P. Selva/NSK Kailash, Márcio Campos, brincou com os jornalistas que juntavam restos do seu almoço para alimentar o cão magro: “Cuidado porque se um atleta vê isso, é capaz de roubar e não deixar nada pro cachorro”.
Selva e a baleia
A Selva de Márcio Campos, segunda melhor colocada entre as equipes brasileiras (oitavo lugar no geral), avistou uma baleia na perna final de caiaque rumo ao pódio. A baleia passou bem perto dos caiaques e fez com que eles apertassem as remadas. “Chegamos mais rápido porque ficamos com medo que os caiaques virassem em alto mar”, disse Márcio. Ajudando os apoios de uma das equipes, Márcio mostrava bom humor no PC 25, exibindo os ferimentos na região lombar, provocados pelo atrito do colete durante os trechos de remo. “Vocês não botaram a minha bunda na internet pra todo mundo ver, botaram?”, dizia ele.
Festa da Atenah I
A Atenah foi a terceira equipe brasileira a atingir o pórtico de chegada, em nono lugar. “Imagina só. Na prova surpresa – que a gente ia de carrinho de rolimã por uma estrada de ferro desativada – um trem resolveu passar justamente quando a gente tava passando”, conta Silvia “Shubi” Guimarães. “A gente olhou pra trás e tinha um trem atrás da gente. Parecia coisa de desenho animado!”, ria. Na última parte no caiaque, Shubi conta que elas estavam brincando com as velas dos caiaques, fazendo festa uma com as outras, quando olharam para trás e viram que a arqui-rival Mitsubishi QuasarLontra estava na cola delas. A Atenah então firmou a mão no remo e garantiu a posição, chegando com menos de um minuto de diferença na praia dos Ossos, em Búzios. “Amanhã, tem festa na casa das Atenah”, dizia Shubi ao deixar a praia. “Hoje é banho e, depois, uma cama bem quentinha”.
Festa da Atenah II
A festa na casa da Atenah, na sexta-feira (26), foi até melhor que a festa de encerramento oficial da prova. Todo mundo passou por ali, trouxe cerveja, salgadinhos e conversou com todo mundo numa torre de babel formidável. Eu já estava pensando em português, inglês e portunhol ao mesmo tempo, falando como bêbado em todos os idiomas. O foco das atenções masculinas era Maria Saleta Castro, 20 anos, da equipe espanhola Gallaecia Bugarent, dona de uma beleza ímpar que fez com que marmanjões disputassem abertamente uma faísca de seu sorriso. Enquanto a gente se divertia, a equipe brasileira Goiabada Power chegava na praia aparentemente vazia e, no pórtico de chegada, via as quatro medalhas e um bilhete que dizia “Parabéns Goiabada Power. Não agüentamos esperá-los e fomos para a festa da Atenah”. Desconfiados, os atletas começaram a gritar “cadê todo mundo?” e – surpresa! – todo mundo saiu de dentro da tenda de som e fez a festa com eles.
Planos para 2008
“E aí? O que você achou?”, Geoff Hunt perguntava para mim. Não era surpresa para ninguém que ele seria mais rápido que eu. “Achei ótimo. Foi uma das coisas mais fantásticas que eu já vivi. Foi – mesmo – como estar no meio de heróis”, respondi. Então, quis saber o que ele esperava da prova em 2008, quando o Ecomotion será a final do circuito mundial de corrida de aventura. Ele me disse que a prova do ano que vem teria de ser mais dura, mais longa e esperava que nenhuma equipe completasse a prova em menos que três dias. “E a organização precisa ser perfeita”, concluiu.
Por fim
“Te deu vontade de participar?”, me perguntou Thamara Giampaolo, da organização da prova, no meio da festa de encerramento. “A gente precisa saber qual é o nosso negócio. O meu não é ser Aquiles, o cara que faz a história. Meu negócio é mais ser Homero, que é o cara que conta a história”, disse.
Por isso, é importante dizer que, tão fundamental quanto os atletas e apoios que participam da prova, é a equipe de organização que está ali, dia após dia, dando o sangue do próprio corpo pra que tudo aconteça da melhor maneira possível. Gente que atende por apelidos improváveis como Gambá, que salvam vidas, e pessoas que desafiam um diminutivo – como Pedrinho – e se tornam maiores do que a vida pode ser.
Estes são os heróis, na mais crua acepção da palavra. E eu tive a sorte, o prazer e a oportunidade de ser Homero neste mundo de Aquiles.
(Reportagem publicada originalmente n Go Outside de dezembro de 2007)
MANGUETOWN: Equipes atoladas no mangue da baía de Guanabara, próximo à cidade de Magé, antes mesmo do primeiro posto de controle da corrida
Fotos por Alexandre Cappi
TANTAS EMOÇÕES: O público confere a largada noturna
É DA FRANÇA: Equipe francesa Wilsa Hellyhansen foi a primeira a chegar à base do pico Dedo de Deus
SEM BRINCADEIRA: A equipe Wilsa liderando a prova na subida para Petrópolis
DURANTE A NOITE: Quarteto brasileiro pedala rumo à escuridão
AVENTURA: Equipe entre canoas caiçara
NA MISSÃO: Equipe Try On Landscape caminha rumo à pedra do Frade