Por Daniel Nunes Gonçalves A PLACA NA ENTRADA DO HOTEL alertava que a presença de ursos e pumas era uma ameaça real, e não uma lenda na belíssima região das Montanhas Rochosas canadenses. E também avisava que uma mulher havia morrido atacada por um felino, dois dias antes.
Apesar dessa nada simpática recepção, os mountain bikers Odair Pereira e Mário Roma preferiram não se abalar. Providenciaram uns sininhos espanta-ursos para as bikes e focaram as preocupações num monstro maior: suas estréias no desafio TransRockies, uma das mais temidas competições do planeta. Ao longo de uma semana de agosto, 740 atletas, divididos em 370 duplas de 24 países, enfrentariam mais de 600 quilômetros lotados de obstáculos técnicos e cerca de 12 mil metros de desnível em meio a um cenário de picos nevados de mais de três mil metros, bosques fechados e lagos de águas azul-turquesa.
A empreitada dava um frio maior na barriga do baiano Odair Pereira, mountain biker profissional em 13 dos seus 33 anos de vida. O cara nunca tinha competido numa ultramaratona. Mas Odair embarcou para o Canadá com a bagagem de provas rápidas de cross-country como o Power Biker, em junho, quando se consagrou bicampeão, e da medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos de 2003.
A idéia era unir a força e a explosão do baiano com a experiência e a resistência de Mário Roma, 45, biker português que adotou o Brasil e se tornou um dos maiores especialistas em maratonas de bike daqui. Embora também estivesse estreando na TransRockies, Roma tinha um currículo mais adequado ao que vinha pela frente: ele já disputou a Cape Epic, com 900 quilômetros de roubadas na África do Sul, e correu duas vezes os 600 quilômetros da Alemanha à Itália na TransAlps, uma prova pioneira (existe há dez anos) quando o assunto é ultramaratona de mountain bike.
“O primeiro dia foi o mais duro da minha vida”, conta Odair sobre a TransRockies. “Levamos mais de três horas para percorrer 32 quilômetros, sendo que passei metade desse tempo carregando a bike em trilhas onde era impossível pedalar”, continua. No fim do trecho inicial, Odair andava de lado, com dores nos tendões dos pés. “Eu já não temia encontrar o tal urso de dois metros e vinte, mas me desesperava em pensar que os próximos seis dias poderiam ser piores que aquilo”.
Mário Roma, também surpreso com o tamanho da encrenca, levou um tombo que rachou seu capacete e confirmou a suspeita de que a TransRockies, menos famosa que as duas concorrentes que ele correu, era a mais casca-grossa de todas. “É como o Giro da Itália, menos falado que o Tour de France e a Volta da Espanha, mas que só é completado por guerreiros de verdade”, explica, numa comparação com a trinca das principais corridas mundiais do ciclismo de estrada.
Devorar uma macarronada coletiva num ginásio esportivo e em seguida jogar-se na barraca, no início da noite, era a melhor maneira de se recuperar para o dia seguinte. Menos ruim da cabeça e dos pés, a dupla saltou do colchonete às 6h da manhã, como quem parte para a guerra, sob um frio de dois graus. A palavra de ordem era “resistência”.
MAIS PEDALÁVEL, O PERCURSO A PARTIR DO SEGUNDO DIA evidenciava os pontos fortes de cada um. Sem se afastarem por mais de um minuto – como exige o regulamento –, Mário seguia à frente nas subidas longas e Odair assumia a liderança nas (poucas) retas. A estratégia deu certo, apesar das diferenças de idade, dos históricos e das bikes – Mário correu com uma full suspension e Odair com uma hardtail. E nem parecia que tinham se conhecido praticamente às vésperas da prova. Odair fora convidado pelo patrocinador comum aos dois (Scott) dois meses antes para montar a dupla. Ele teve pouco tempo para adaptar seu treinamento, elevando o número de horas diárias em cima da bike de 3,5 para 5 horas. Já Mário intensificara a pauleira seis meses antes.
O percurso deixava claro que ninguém estava no Canadá para brincadeiras, apesar do clima amigável que impera em provas de longa duração. Como se a natureza quisesse mostrar por que os principais freeriders do planeta nascem ali, no terceiro dia um imenso lamaçal fez os atletas carregarem as bikes no ombro, com as pernas afundadas na lama até o joelho. Uma queimada e o calor de 22 graus durante o dia deixavam o ar seco e especialmente incômodo. Os muitos rios que surgiam nos vales entre uma montanha e outra congelavam os atletas, que eram obrigados a atravessá-los, alguns com água até o pescoço. Não é a toa que 20% dos competidores abandonam a prova, muitos deles resgatados por helicóptero, com graves traumas.
As lesões vistas no fim do dia, depois de cinco horas de pedaladas, variavam de simples curativos nos joelhos a rostos deformados depois de quedas de cabeça. E ao contrário do que se possa imaginar, aquilo não desanimava ninguém. Em ultramaratonas, o objetivo maior é terminar a prova, ainda que lentamente (a velocidade média da nossa dupla era de 17 km/h). A rotina nos acampamentos continuava: jantar às 18h, fila para lavar as bikes, fila para usar os chuveiros móveis do caminhão-vestiário e algum burburinho entre os atletas que faziam a manutenção das máquinas ao fim de cada etapa. O staff de 150 pessoas e os 400 voluntários da organização se encarregavam de toda a infra-estrutura. Uma das funções deles era carregar as sacolas de cada dupla, com mudas de roupa, suplementos alimentares e peças sobressalentes.
Um singletrack de 30 centímetros de largura à beira de um abismo de mais de 100 metros, no terceiro dia, foi um dos momentos mais casca. “Ali entendemos porque as ultramaratonas só podem ser disputadas em dupla”, explica Mário. “Se alguém caísse ribanceira abaixo levaria dias para ser localizado”, continua. Um singletrack cheio de raízes e cercado por arbustos com galhos baixos, no quarto dia (“um caminho de duendes”, brinca Odair), arrancou sangue dos atletas e chegou a danificar o câmbio da bike de Mário, um dos poucos imprevistos que ameaçaram a integridade das magrelas. Outros foram os dois pneus furados de Mário e um de Odair. “Uma biker norte-americana parou e encheu o pneu da minha bike, na camaradagem. Nunca tinha visto isso numa competição”. Como um agradecimento indireto, Odair parou para passar óleo na corrente da bike de um outro participante.
O pesadelo dos pesadelos estava guardado para o quinto dia na forma do Rocky Garden, uma parede de chão de pedras enormes, que pouca gente se arriscou a enfrentar sentada no selim. Odair exibiu ali sua técnica, ainda que tenha terminado a descida com dores nas mãos. No mesmo dia, para se manterem no pelotão dos trinta primeiros entre as 165 duplas da categoria elite masculina, Odair e Mário tiveram que forçar o ritmo. Num dos downhills amedrontadores, com mais de vinte quilômetros, uma sensação inesquecível: o cheiro de pastilhas de freio, que evidenciava que ninguém podia se dar ao luxo de despencar ladeira abaixo livremente. Ainda assim, a dupla luso-brasileira não conseguiu, por estar embalada, se abastecer de isotônicos e frutas num dos postos que a organização disponibilizou a cada trinta quilômetros. Manter o pique sem repor as energias (gasta-se seis mil calorias num dia de prova) custou ao português um desgaste que ele só percebeu no dia seguinte. Mário precisou agarrar na camiseta de Odair para ser puxado em parte do sexto dia, o mais longo de todos, que exigiu 6h50 de pedaladas num terreno com desnível de dois mil metros e vento contra.
No entanto, o penúltimo dia tinha ares de alívio, pois o fim estava próximo. Um casal que tinha iniciado a prova com um just married (recém-casados) nas camisetas provocava gargalhadas por ter trocado a mensagem para still married! (ainda casados!). O “casamento” de última hora de Odair e Mário também terminava bem. No sétimo e último dia, depois de 31h57m30s, a dupla concluía a TransRockies em 30º lugar na categoria principal, já planejando repetir a parceria em outras competições. Os canadenses Tim Hemskerk e Roddi Lega levaram a melhor com o tempo de 24h39m23s e os outros brasileiros da prova, os brasilienses Maurício Gonçalves e Ivan Melo, terminaram em 62º lugar na categoria master (soma de idade acima de 80 anos), em 44h36m24s. Em tempo: ninguém viu ou ouviu sinal dos tais pumas e ursos que, dizem, são a face mais temível das Montanhas Rochosas canadenses.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de outubro de 2007)
PÉS FRIOS: Na TransRockies cruzar rios gelados com a bike no ombro, ás vezes com água até o pescoço, é uma rotina
Fotos por Dan Hudson
FANTASMA: No terceiro dia, 30 cm de trilha e 100 m de abismo ao lado
PIRAMBA: Ladeira de pedras. Dá para entender por que 20% dos atletas não chega ao fim da prova