Peixe dentro d’água

Por Mario Mele
Ilustração por Mr. Guache

A BICICLETA ERGOMÉTRICA DE DESIGN FUTURISTA que o cientista e mergulhador Lloyd Godson tinha à sua disposição em seu lar submerso não servia apenas para manter o condicionamento físico. Durante os 12 dias em que ele morou no fundo de um lago na Austrália no projeto batizado de BioSUB, o exercício no aparelho servia para produzir energia e recarregar a bateria de seu laptop.

Em sua quitinete à prova d’água, o australiano também se encarregou das produções de oxigênio, água e comida. O ar puro ele conseguiu recorrendo à fotossíntese: o vegetal consome o gás carbônico [CO2] da atmosfera e libera oxigênio [O2], o processo inverso da respiração humana. Lloyd plantou em seu “cafofo” algas e uma horta, e conseguiu respirar na boa – mas, por segurança, usou um pequeno aparelho eletrônico que media os níveis de O2 e CO2. Para matar a sede, utilizou uma máquina que transforma a umidade do ar em água potável.

O objetivo de Lloyd, 29 anos, com o BioSUB era mostrar que a vida auto-sustentável é possível. Os primeiros experimentos nessa área foram feitos pelos russos, ainda na década de 1950. Em 1989, a NASA desenvolveu o BioHome, um habitat ecológico do tamanho de um quarto que tinha como característica principal a independência do meio externo. Para Lloyd, essa história de sustentabilidade começou em 2005, quando foi convidado a participar do concurso “Live Your Dream” (Viva seu sonho, em inglês), promovido pela revista Australian Geographic. Ele convenceu o júri que seu sonho era o mais desafiador e ganhou US$ 50 mil para tirar a idéia do papel.

Finalmente, em abril deste ano, Lloyd se trancafiou numa caixa de 14,5 m³, construída com chapas de metal soldadas, que foi afundada a cinco metros de profundidade no lago Pit, na cidade de Albury. Lloyd contou com exclusividade à GO OUTSIDE os detalhes dessa louca experiência.

GO OUTSIDE: Você estava seguro de que nada poderia sair errado ou ficou um pouco tenso nos primeiros dias em que ficou submerso?

Lloyd Godson: Sempre havia a possibilidade de algo dar errado e isso estava em minha mente todo o tempo. A primeira noite, especialmente, foi tensa. Consegui dormir apenas uma hora e meia. Só fui chegar às oito horas de sono na terceira noite. Algumas pequenas coisas chegaram a dar errado, mas nada sério, e a equipe que estava na superfície conseguiu resolver tudo rapidamente e me deixar tranqüilo.

Como foi dormir submerso, tendo que controlar os níveis de oxigênio e gás carbônico?

Eu tinha um monitor de gás que tinha um alarme infernalmente alto. Se a concentração dos gases saísse dos limites seguros, ele apitava. A equipe de superfície também me fazia companhia 24 horas por dia, então se eu não conseguisse dormir, tinha sempre alguém para conversar. Não cheguei a ter pesadelos quando dormi embaixo d’água, mas tive quando voltei à superfície. Outro dia acordei gritando e procurando a saída no chão do quarto – acho que eu estava tentando fugir. Tive que pensar nessa possibilidade várias vezes enquanto estava submerso e mantinha até uma lanterna e uma máscara de mergulho ao lado da cama, caso precisasse fazer uma fuga rápida, no escuro.

Quais foram as maiores dificuldades que você enfrentou?

O mais difícil foi lidar com os níveis elevados de gás carbônico no ar que eu respirava. Isso me deixou irritado e desanimado, comparado ao que eu normalmente sou. Às 3 da tarde eu já queria dormir. Também passei muito tempo ao telefone, falando com a mídia pela minha conexão de internet sem fio. No 10o dia, precisei dar um tempo disso. Acho que me enjoei do som da minha própria voz (risos). Meu pai estava muito doente e fazia um esforço enorme para ir ao computador falar comigo todo dia. Eu conseguia ouvir o esforço dele, o que foi bem difícil para mim, emocionalmente. Ao mesmo tempo, foi ótimo quando acabou e eu pude dividir algo tão especial com ele.

Que recurso vital era mais difícil de “produzir”: ar, água, comida ou energia elétrica?

As duas semanas foram de muito sol, então produzir eletricidade para alimentar o módulo não foi problema. Além do gerador movido a pedaladas, tínhamos 16 painéis solares de 62 watts e uma célula movida a metanol que produzia 1,2 kw/dia. Água também não foi problema. Meus maiores desafios foram ar e a comida. Eu produzia O2 pelas algas verdes e suplementava meu ar com um compressor de mergulho de 12 volts que era recarregado pela célula de metanol. Acho que uma combinação de horta e algas num espaço mais amplo teria sido melhor. Mas foi um grande primeiro passo na direção da vida sob a água, que espero que abra caminho para outras experiências nessa área.


O que acontece na mente de alguém que fica isolado e submerso por duas semanas?

Muitas pessoas já me acham louco, então eles provavelmente pensaram que eu estava agindo normalmente (risos). Fui monitorado virtualmente por uma psicóloga e somente em dois dias tive resultados que saíram um pouco da minha resposta normal, o que é muito bom. Estamos analisando todos os resultados e devemos escrever um relatório a respeito. Acredito que comecei a ficar meio louco durante os dois ou três últimos dias, com meus olhos me pregando peças, mas isso provavelmente foi resultado do alto nível de CO2. Recebi centenas de e-mails do mundo todo, que mantiveram meu astral alto. Para cada momento difícil, houve provavelmente 100 em que eu estava extasiado por realizar meu sonho.

Quanto tempo você acha que conseguiria viver nesse ambiente, com os equipamentos de que dispunha?

Com melhor controle do CO2, acho que poderia ter ficado o suficiente para quebrar o recorde de 69 dias. Mas esse não era o objetivo deste projeto. Um amigo meu que também é “aquanauta”, Dennis Chamberland, ficou 11 dias e 12 horas. Eu fiquei exatamente 12 dias. Dennis me convidou para participar de seu projeto Atlantica, em 2009. A idéia é ficarmos 80 dias submersos.

Qual seu principal objetivo com o Bio Sub?

Era uma questão de viver de maneira sustentável, não importa onde. Se eu posso viver sustentavelmente embaixo d’água, então com certeza podemos fazer isso aqui na superfície também. Não quero dizer que devemos todos viver nas profundezas, mas que devemos cuidar do lugar em que vivemos.

Você está otimista quanto ao futuro do planeta?

Sou otimista por natureza. Acho que as atitudes das pessoas estão mudando para melhor, o que é um passo na direção certa.

Você tem algum outro projeto em mente?

Sempre! Acabo de voltar do Canadá, onde assinei um contrato para fazer uma série de TV baseada na aventura do BioSUB. Vou me aventurar por vários ambientes extremos. Será que vocês têm algum lugar no Brasil para me sugerir?

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2007)