É logo ali


ESPELHO MEU: Durante um dia inteiro, a visão do espanhol foi a superfície esverdeada do Atlântico
(Foto:João da Mata)

Por Mario Mele

A DECOLAGEM FOI NO AEROPORTO ESPANHOL Jerez de la Frontera, em Cádiz. O pouso seria nas ilhas Canárias, a 1.350 quilômetros de distância sobre o Atlântico. Mas o mais peculiar no recorde mundial que o espanhol Ramón Morillas, 40 anos, se propôs a bater em abril deste ano é o veículo utilizado: um paramotor – parapente com motor no qual o piloto voa numa cabine aberta, exposto às intempéries e espremido num cockpit.

Ao todo, Ramón levou em seu vôo 105 quilos de equipamentos, incluindo um galão de combustível reserva, equipamentos de navegação, orientação e segurança e até uma espécie de camisinha-reservatório que servia de banheiro improvisado. Também tinha um bote e colete infláveis, barras de cereal, um pote com frutas secas e chá de limão na mochila de hidratação. No entanto, por causa dos ventos, a travessia Flypa (nome também do festival internacional de parapente de Los Realejos, que apoiou a expedição) acabou um pouco antes do planejado. Depois de 14 horas de perna balançando sobre o mar, Ramón perdeu velocidade e foi obrigado a encurtar o percurso para 1.105 quilômetros, encerrando a jornada na ilha de Lanzarote. Mesmo com o corte, o espanhol acabava de estabelecer uma nova marca mundial na modalidade. Se o recorde for homologado, será o segundo recorde de Ramón, que no ano passado tornou-se a pessoa que voou mais alto com um paramotor, alcançando 6.102 metros de altitude.

A paixão pelas alturas apareceu quando criança. Nesta época, ele sonhava em ser trapezista do circo espanhol Los Muchachos. Em 1989, depois de descobrir o parapente, a atenção passou a ser o vôo. Cinco anos mais tarde, Ramón definitivamente adotou o ar como sua segunda casa. Hoje ele é membro da seleção espanhola de Parapente e Paramotor e roda o mundo participando dos principais campeonatos. Ainda estão na agenda de 2007 o X-Alps, o campeonato de parapente mais difícil do mundo, e o campeonato mundial de paramotor, em setembro, na China. No bate-papo a seguir, Rámon conta, entre outras coisas, como é decolar levando nas costas quase o peso do mundo e por que decidiu pousar antes do destino final.


INSTROSPECÇÃO: Ramón acerta os últimos detalhes, pouco antes da decolagem
(Foto: Ramón Lopez)

GO OUTSIDE: Como você planejou a travessia?

RAMÓN MORILLAS: A preocupação maior foi em relação à segurança, já que eu sobrevoaria o mar por várias horas. Tive que ficar atento a tudo. Nenhum detalhe podia escapar, pois a minha vida estava em risco. Contei com o apoio do meu amigo meteorologista Guillermo de Armas, que me passou informações preciosas sobre condições do tempo. Ele me ajudou a escolher o melhor dia.


Você se preparou fisicamente?

Meu treino é a corrida. Pratico uma hora e meia, diariamente, numa região montanhosa perto de casa. Também faço exercícios para fortalecer as pernas, já que elas são muito usadas, principalmente na decolagem e aterrissagem. Não freqüento academia por falta de tempo. Nas horas livres, prefiro voar.

Chegou a ter cãibras ou alguma outra lesão?

Não. Tive apenas uma forte dor de cabeça, acho que por causa do sol forte.

Como é decolar com tanto peso?

Foi um dos momentos mais difíceis porque tive apenas uma chance. Além do esforço descomunal de correr cerca de 150 metros com 105 quilos nas costas, não podia perder tempo porque um outro avião no aeroporto esperava para decolar.

Quais seriam as piores encrencas que você poderia encontrar no caminho?

Tempestades, ventos muito fracos, ventos de frente ou em direção pouco favorável. Em caso de emergência, era quase certo que eu teria que pousar no mar. Neste caso, eu temia as ondas grandes. Mas no geral desfrutei de uma vista muito bonita, principalmente quando já estava próximo à Lanzarote. Um mar de nuvens e os últimos minutos de sol me fizeram lembrar da época que morei em La Palma, nas ilhas Canárias. Tive medo também, especialmente quando o motor fazia algum barulho estranho.

A orientação ao sobrevoar o mar é mais difícil do que sobre o continente?

Usei um GPS para saber a minha posição. Ao voar sobre a terra, com ou sem GPS, você tem referências visuais, o que não acontece sobre o oceano. É como voar dentro de uma nuvem. No começo é muito difícil. Mas fui me acostumando e consegui corrigir alguns desvios de direção. A partir das informações de localização do GPS e de uma pequena calculadora, eu determinava a minha autonomia de vôo. Dos 71 litros de gasolina que tinha à disposição, sobraram 18 litros, ou seja, mais quatro horas de vôo.

E então por que parou, já que tinha gasolina e o planejado era descer em Los Realejos?

Não tive opção. O sol já estava se pondo, os ventos estavam com velocidade inferior a 60 km/h e o lugar onde aterrissei era o único naquele momento. Conheço bem as ilhas Canárias, onde há muitas nuvens e ventos fortes. Os riscos seriam grandes caso eu decidisse continuar.

O novo recorde já foi homologado pela Federação Aeronáutica Internacional (FAI)?

Acabamos de enviar a documentação e a homologação demora alguns meses para ser efetivado. É um processo complicado, no qual não podem faltar nenhuma evidência.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2007)