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FUNDURA:Espeleólogo num dos abismos da Toca da Boa Vista

Texto e fotos Adriano Gambarini

“QUER IR PRO FIM DE MUNDO?” Ouço o intrigante convite com sotaque mineiro enquanto tomo uma cerveja nada fria vinda da geladeira a gás do boteco da dona Rosália. Ezio Rubbioli me jogou o desafio assim que eu botei os pés em Laje dos Negros – um vilarejo quilombola no município baiano de Campo Formoso, que não consta no mapa e até há poucos anos ainda não tinha luz elétrica. Eu estava lá para me encontrar com o grupo de espeleólogos Bambuí. Desde 1987, os caras exploram, pesquisam e mapeiam a duas maiores cavernas do Brasil, localizadas na região: a Toca da Boa Vista e a Toca da Barriguda. Depois de ter passado mais um dia no breu total dos subterrâneos da Terra, Ezio estava empolgado com o potencial do tal fim do mundo. Ele então propôs acamparmos dentro da Toca da Boa Vista para economizar o deslocamento da entrada até o derradeiro lugarzinho. Topei a parada sem pestanejar e assim entrei para um seleto grupo de exploradores da fantástica Toca da Boa Vista.

No caminho, descobri que chamar o lugar de Fim do Mundo não era força de expressão. Para chegar lá, atravessamos trechos realmente complicados: tetos baixos onde só se passa rastejando, sem mochila nas costas, e salões com uma quantidade absurda de sedimentos, que te afundam até a cintura se você tenta bancar o esperto mudando de rota. Lá dentro, a temperatura média de 30º C, aliada à umidade do ar, te ensopa já nos primeiros 15 minutos de caminhada. Isso também obriga os aventureiros a carregarem pelo menos quatro litros de água para a hidratação. Mais uma mochila com uma batelada de equipamentos fotográficos e pronto: eu tinha os ingredientes necessários para sentir bater o arrependimento diversas vezes durante o percurso. Mas como toda boa expedição, o arrependimento é logo trocado pelo delírio de chegar a lugares inimagináveis, remotos e escandalosamente bonitos.

Como a maioria das descobertas no mundo das explorações, a história da Toca remonta àquele básico “vamos dar uma olhada pra ver no que dá”. Era 1987 e Ezio Rubbioli, Fabio Masotti e Flavio Chaimowicz saíram em viagem pela Bahia num “moderno” Fiat 147. Eles tinham uma carta topográfica da região na qual era possível ver um sumidouro (trecho onde o rio desaparece para debaixo da superfície, podendo reaparecer num outro ponto), uma evidência fortíssima de que ali poderia existir uma grande caverna.

Eles chegaram na região e logo conheceram José Telésphoro Ferreira de Araújo. Apaixonado por espeleologia, “Telécio” fundou a Sociedade Espeleológica de Campo Formoso, incentivando explorações naquela região do sertão. De cara ele reconheceu a tal suposta caverna do mapa. Era a Lapa do Convento, já bem conhecida dos peregrinos religiosos. Depois do primeiro banho de água fria, os três espeleólogos exploraram algumas grutas indicadas pelo baiano, mas nada que realmente valesse o esforço de ser castigado pelo sol da caatinga.

O trio estava na última tentativa de achar algum dos abismos citados por Telécio quando encontraram um caboclo na estrada que disse “óia, ali detrás da estrada tem dois buracões e mais outros ali na frente”. Os três correram para onde o caboclo apontava e, em meio a árvores espinhentas, encontraram um abismo com cerca de 15 metros de profundidade. Não demorou muito para eles perceberem o potencial da descoberta, principalmente depois de se depararem com uma enorme entrada num paredão de pedra escondido na vegetação, que futuramente foi batizada como a entrada principal da Toca da Boa Vista. Animados, eles seguiram pelo que parecia ser o conduto principal, marcando o caminho com montinhos de pedras para não se perderem, pois a cada segundo novos condutos laterais exibiam um complicado labirinto.


SETÃO DO ABISMO: O salão da Caatinga, na Toca da Barriguda

Entre tantas possibilidades de caminho que se abriam, o instinto os fez seguir por um conduto escolhido aleatoriamente, mas que acabou os levando em direção à grande primeira descoberta da Toca: um gigantesco salão com cerca de 100 metros de comprimento e 20 metros de altura. O local foi batizado salão Telécio, em homenagem à pessoa que os ajudou a descobrir a maior caverna da América do Sul já encontrada até hoje.

Exaustos, mas absurdamente entusiasmados, Ezio, Fabio e Flavio refizeram o cronograma e permaneceram lá mais alguns dias, mapeando e comprovando uma das principais características da Boa Vista: “a capacidade de mudar o destino de quem cruza o seu caminho”, nas palavras de Ezio.

No ano seguinte, seis exploradores retornaram à região e atestaram o feeling dos primeiros exploradores. A Toca apresentava uma formação tão complexa e diferente das galerias, condutos e salões já encontrados em outros sistemas subterrâneos brasileiros, que seria necessário modificar as conhecidas técnicas de exploração e mapeamento para percorrê-la. Só até a quarta expedição, batia-se a marca de 16 quilômetros mapeados, já fazendo da Toca a maior caverna do Brasil. Mas havia ainda muita historia pra rolar.

A descoberta do Fim de Mundo aconteceu em 1994, depois dos exploradores já terem enfrentado os trechos batizados de Novo Mundo, Terceiro Mundo e Além Mundo. A cada ano, os espeleólogos conseguiam mapear uma média de 10 quilômetros de galerias. Para um explorador, não existe nada mais excitante do que encontrar, depois de um teto baixo, um pó fino ofuscando a visão e um calor de amolecer a moleira vindo de um salão gigantesco. E mais, ainda saber que ninguém jamais no mundo pisou antes naquele solo.

Nesse mesmo ano, o grupo Bambuí começou a investir na Toca da Barriguda, uma gruta já parte mapeada pela Sociedade Excursionista e Espeleológica de Ouro Preto (SEE). A investida acendeu uma luz nos exploradores: a Barriguda, que está a poucas centenas de metros da Boa Vista, tem características semelhantes às da sua irmã maior e, portanto, haveria grandes chances das duas se cruzarem em algum ponto.

Enquanto as explorações de mapeamento continuavam a todo vapor, começaram também as pesquisas do pessoal da geologia, biologia e paleontologia. O local atraía cada vez mais estudioso de várias áreas, tornando a Toca um enorme laboratório vivo. Uma série de descobertas de fósseis de primatas, preguiças gigantes e animais de antigas Eras colocaram a gruta num patamar de importância cientifica mundial. Já a 10ª expedição, em 1995, bateu o recorde de 64 quilômetros mapeados e profetizou que a gruta poderia bater os 100 quilômetros de extensão, uma marca que só exigia tempo e estratégia certeira de exploração para ser batida.


HOMENAGEM: O salão do Telécio, nome de um morador espeleólogo de Campo Formoso

A MINHA EMPREITADA PARA CHEGAR AO PONTO MAIS DISTANTE DENTRO DA GRUTA (o fim do mundo) já somava cinco horas de caminhada. Ou seja, dez horas contando a ida e a volta. Seguíamos num grupo de seis pessoas e apenas o Ezio conhecia o trajeto. Havia também dois espeleólogos eslovacos que, surpreendentemente, só falavam eslovaco.

Como a expedição do ano anterior havia encontrado uma pequena fonte de água, teoricamente a quantidade menor a ser carregada de água aliviaria o peso. Ledo engano. O peso subtraído não compensou os outros quilos de equipamentos que tivemos que transportar, nem o desprazer de beber aquela água “pesada”, típica de locais com rocha calcária. Para deixar a aventura ainda mais horripilante, essa parte da gruta é realmente bizarra: há fendas estreitas e profundas que são camufladas por blocos instáveis de rocha e uma espessa camada de sedimento escuro, compondo um perfeito cenário para filmes de terror barato.

O trabalho duro realmente começou quando Ezio caiu numa fenda e torceu o pé. Algumas confabulações sobre o que fazer e o próprio Ezio decide manter o cronograma planejado e dormir ali, no fim do mundo. Antes de pernoitar, buscamos água no conduto batizado de Onde-a-onça-bebe-água – nome que homenageia uma ossada desse animal encontrada perto do poço (claro que a onça não deve ter morrido por causa da qualidade da água). Até que o fim do mundo nos ofereceu uma laje bem confortável para dormirmos. O pior da história era não ter levado outra roupa além do macacão. Enquanto os espertos levaram um short, eu literalmente dormi pelado, apenas com uma pequena toalha cobrindo o essencial.

No dia seguinte, voltamos pelas nada menos árduas cinco horas de caminhada, com Ezio ignorando os sinais de que seu pé poderia ter sofrido algo mais sério (na verdade, ele havia sofrido duas pequenas fraturas e rompido alguns ligamentos). Vimos o céu novamente no final da tarde para uma bem merecida cervejada.

Em 1999, a 14ª expedição culminaria numa nova descoberta, que deu não uma luz, mas um holofote de esperanças ao grupo – e ao povo humilde de Laje dos Negros. Na mesma época que chegava luz elétrica na região, os novos caminhos descobertos na Barriguda fizeram os espeleólogos realmente acreditarem que ela corria em direção à Toca da Boa Vista.

Além disso, a beleza dos seus salões dava um novo brilho ao sertão baiano. Apesar de ser relativamente mais quente e sufocante, dificultando o trabalho no seu interior, a Barriguda é muito mais ornamentada, com diversos salões abarrotados de belíssimos espeleotemas (comumente conhecidos como estalactites e estalagmites). É o caso do salão da Caatinga, que tem uma infinidade de estalagmites brancas. Junto com o salão Bitelo (nome auto-explicativo!), também descoberto naquele ano, os dois salões possuem áreas superiores a 15 mil m2, dando à Barriguda a posição de segunda maior caverna do Brasil. Sem esquecer as surpresas vivas, como um casal de jaritataca (um mamífero parecido com o gambá) que adotou a gruta como moradia. Nada agradável foi o jato fétido expelido por eles, que deixou a minha câmera fotográfica três dias com aquele cheiro ácido insuportável.


PARA ONDE EU VOU: Espeleólogos do Bambuí analisam o mapa da Toca da Boa Vista

E ASSIM A DESCOBERTA DAS TOCAS COMPLETA 20 ANOS EM 2007. Exceto algumas empreitadas realizadas no meio do ano por pequenos grupos, as grandes expedições na Boa Vista acontecem religiosamente no período do réveillon. Todas elas já somaram 107 quilômetros mapeados, cada um deles devidamente comemorado em rodadas de cerveja animadas pelo pessoal da Laje dos Negros. É sempre emocionante o modo como eles nos recebem. As crianças costumam correr atrás dos carros gritando “joga bala terê-tetê”. A brincadeira surgiu há muitos anos quando uma espeleóloga apelidada de Tetê costumava lançar guloseimas quando passava num antigo ônibus. As crianças de hoje nem sabem mais o porquê daquelas palavras, mas continuam a propagar esta lenda. Ou a lenda do caipora, um ser mítico das florestas que emprestou o nome a um fóssil de primata encontrado nas entranhas da Toca.

Ou a lenda da conexão das duas cavernas, que é apenas uma questão de tempo para virar realidade. Pois, como diria o também espeleólogo Augusto Auler, “uma das poucas coisas previsíveis a respeito de cavernas é que elas são imprevisíveis”.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2007)