Trégua dos sexos

Por Andréa Estevam

UMA RABIOLA DE PIPA, era o que eu parecia, tremulando em ziguezague pela trilha estreita e íngreme, meio cega e tonta pelo déficit de oxigênio e com as pernas trêmulas pelo esforço das últimas seis horas. Do peitoral da minha mochila saía uma corda que me unia à mochila de meu companheiro de equipe – uma espécie de cordão umbilical sem o qual eu não sobreviveria àquela subida. Respirando como uma alpinista acima dos 8 mil metros e considerando a cada passo a possibilidade de simplesmente sentar, eu jurava pra mim mesma que nunca mais entraria numa corrida de aventura se não estivesse devidamente (leia-se muito) treinada.

Havíamos largado muito forte e até ali nos mantínhamos no primeiro pelotão – só que ainda tínhamos no mínimo mais umas 12 horas de montanhas mineiras pela frente. Nas primeiras três ou quatro horas de prova, até que eu tinha conseguido me garantir, dando tudo o que eu tinha (e mais um pouco que eu tirei da mente, e não dos músculos). Depois, minha capacidade de explosão exauriu-se e eu me vi ficando pra trás, até começar a ser arrastada morro acima pelos meus parceiros.

Participar de uma prova dessas, numa equipe forte, sem estar muito treinada é masoquismo, aprendi. Mesmo “tinindo”, não é fácil ser a mulher de uma equipe de corrida de aventura e encarar provas de seis horas a seis dias com outros três marmanjos que têm quase o dobro do nosso tamanho. É uma realidade darwiniana: eles evoluíram para caçar, nós para procriar – e essa evolução nos deixa numa desvantagem física que só pode ser igualada com muita dedicação e com um músculo que é igual em homens e mulheres: o cérebro.

Homens têm maior capacidade aeróbia que as mulheres, já que possuem pulmões e corações 25% maiores (em média, e usando os números mais modestos entre os publicados em estudos, para depois eles não dizerem que somos exageradas). O pulmão avantajado permite a eles absorver mais oxigênio do ar cada vez que respiram fundo, e o coração maior faz com que a freqüência cardíaca deles seja de cinco a oito batimentos por minuto mais baixa que a das mulheres. É por isso que chegamos à fadiga mais rápido do que os homens. Somando-se a isso, eles apresentam maiores valores de sangue total, eritrócitos e hemoglobina – nomes complicados que, numa explicação simplificada, servem para facilitar o esforço físico. Hemoglobina, aliás, nós temos menos e ainda perdemos um tanto todo mês na menstruação.

Passemos aos músculos. Homens têm mais massa muscular e uma constituição física maior, o que lhes permite suportar uma carga maior de trabalho físico. São em média 30% mais fortes que nós, o que também lhes garante mais velocidade e potência. Além de maiores, suas fibras musculares são mais numerosas, dando aos homens mais potência e explosão. A gente sai ganhando (se é que se pode usar essa palavra) nas gordurinhas: temos cerca de 10% mais gordura em nossos corpos do que os homens da mesma idade. Em países mais quentes, como o nosso, essa gordura se acumula principalmente em nossos membros inferiores – leia-se pernas e bundas –, o que interfere em nosso centro de gravidade e nos torna mais lentas em atividades que envolvam o movimento dos membros superiores.

Fim das lamúrias, começo da revanche. Lembra daquela corrida de aventura lá do começo deste texto? Eu não sentei nem parei, mesmo achando que ia desmaiar a qualquer momento. Eu até estava me divertindo com a idéia de descobrir em que ponto meu corpo finalmente entraria em colapso. Nunca “quebrei” numa prova de aventura, talvez aquela fosse a primeira vez. Ironicamente, nossa equipe parou porque um dos marmanjos (não citarei nomes) resolveu desistir. Cansou. Miou. Não estava mais a fim de sofrer, em suas próprias palavras. É, senhores: tantos milênios parindo e cuidando de crianças, maridos e parentes nos muniu de uma enorme tolerância ao desconforto e à dor, sem falar numa paciência (pra não dizer saco) de Jó, para administrar as manhas e fúrias dos outros e manter a cabeça no lugar quando dá vontade de mandar todo mundo às favas. Aliás, taí uma injustiça histórica: Jó era homem. A expressão merecia ter sido cunhada com o nome de uma mulher.

Além de uma mente paciente, nós mulheres também temos músculos Duracell. Eles agüentam horas, dias a fio de esforço, desde que esse esforço não seja explosivo. Aquela gordura a mais que nos foi dada para que pudéssemos ter filhos é um combustível de queima lenta, que nos permite sair-nos bem em atividade prolongada. Quanto mais prolongada, aliás, mais perto ficamos dos homens.

Lembro de um gráfico que vi certa vez comparando as performances masculina e feminina, de acordo com as distâncias de corrida. Se em provas de 5 km os tempos femininos são em média 12% mais lentos que os masculinos, nas provas de maratona a 100 km, a diferença cai para 4%. E lembro também de um estudo que concluiu que mulheres que têm performance igual à dos homens nos 42 km costumam se sair melhor em provas acima dessa distância. Veja o exemplo de Pam Reed, uma ultramaratonista americana de 44 anos que já correu mais de 500 km, assim como o nosso homem da capa, Dean Karnazes. Em uma das provas de que ambos participaram, ela chegou a vencê-lo. Ou então as brasileiras da equipe de corrida de aventura Atenah, formada exclusivamente por mulheres. As meninas estão constantemente entre as cinco melhores colocadas nas mais importantes provas disputadas no país, competindo com equipes 75% masculinas.

Nas corridas de aventura longas de que participei – aquelas com mais de dois dias –, isso ficava evidente. Depois do terceiro dia, eu entrava num estado de piloto automático que só era quebrado pelos ataques noturnos de sono, combatidos impiedosamente com café ou com cochilos em pé mesmo. Não sentia fadiga extrema, nem dores musculares. Poderia continuar colocando um pé na frente do outro pra sempre. Numa ultramaratona em etapas que fiz, a Jungle Marathon, terminei o trecho mais longo, de 89 quilômetros, entre os 12 primeiros no geral (haviam 50 competidores). Foram 19 horas de trote/caminhada sem parar para nada, e ainda agüentando o chororô do californiano e do inglês que fizeram os 20 quilômetros finais comigo e que ameaçavam desistir a cada cinco quilômetros. Contei a eles a história da minha vida, pedi para ouvir a deles, incentivei-os a dar só mais um passo, só mais outro, só mais um. E chegamos super bem colocados. Ao fim dos seis dias de prova, quase metade dos homens e apenas 30% das mulheres haviam desistido ao longo da competição.

Nas corridas de aventura curtas, é o oposto: é como correr em apnéia. Encho o pulmão de ar, rezo pra nem sei quem e, ao ouvir a largada, saio correndo atrás dos meus parceiros, tentando dar o mínimo de trabalho possível. Fazer uma prova dessas – em que o ritmo é alucinado, esquizofrênico – sem precisar da ajuda dos companheiros de equipe é motivo de orgulho e algo que já consegui algumas vezes, quando estava super bem treinada e tinha minimizado ao máximo as desvantagens femininas.

Estava “sequinha”, com pouquíssima gordura corporal, e portanto mais leve para ser carregada pela minha própria massa muscular. Sob a orientação de Cristina Carvalho (uma das prós da reportagem “Contra-Relógio”, neste especial), eu havia focado nos treinos de intensidade de corrida e bike, aumentando meu limiar aeróbio e minha resistência ao lactato – assim, demorava mais para entrar em fadiga. Tinha feito muito fortalecimento muscular para suportar o esforço físico e diminuir o déficit de força em relação aos meus companheiros. E, sabendo que a diferença se faz em cada detalhe, havia trabalhado muito a minha técnica de mountain bike e de canoagem, e minha biomecânica de corrida.

O alongamento quase diário e o trabalho de fortalecimento funcional feito com Luciano D’Elia, usando superfícies instáveis, haviam deixado minhas articulações mais fortes e eu corria firme pelas trilhas esburacadas. E cuidava bem da minha alimentação, antes, durante e depois da competição. Ia pra largada com a hidratação super bem-feita e com os estoques de glicogênio muscular bombando. Durante a prova, ingeria líquidos e carboidratos sem parar. E assim, com dedicação, paciência, técnica e garra – e, o mais importante, sem perder o charme –, não fiz feio pra nenhum marmanjo.

Provavelmente, o esforço que é preciso para conseguir isso é maior que o feito pelos colegas do sexo oposto. Em termos relativos, pelo menos, com certeza é. Mas, se tem uma coisa que mulher gosta, além de chocolates e flores, é de desafio – e de se sentir um pouco Mulher Maravilha de vez em quando.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2007)