Um senhor rio


RIO NEGRO: Águas escuras mas cristalinas

Por Kleber Bechara

ÁGUA BRANCA, ÁGUA PRETA, ÁGUA VERDE, ÁGUA BARRENTA. Na Amazônia tem rio pra todo tipo de água. E para cada rio há uma biodiversidade específica, própria da água que nele corre. Embarcar numa jornada pelo maior rio de água preta do mundo? É o que fizemos com mais 90 pessoas a bordo do Princesa Laura, legítimo recreio amazonense da mais dura madeira da floresta. Saindo de Manaus, na boca do Rio Negro, embarcamos para subir com ele até seu “ponto final”, em São Gabriel da Cachoeira, próximo à região das cabeceiras, já perto da fronteira com a Venezuela, a 858 quilômetros de viagem.

As cabeceiras que formam o Negro estão nos tepuis venezuelanos, as formações rochosas mais antigas da terra. É um rio velho e “escaldado”. Grande parte de sua calha é arenosa, o que resulta numa água com pouca matéria orgânica suspensa. Tem Ph baixo, temperatura alta e um aspecto negro-cristalino que convida ao mergulho.

“O caboclo da água negra que se muda pra barrenta, cedo adoece!”, adianta Seu Antenor, lá pelo km 100 da viagem. “Mas por que, Seu Antenor?”, pergunto. “Rapaz, o cabra tá acostumado a beber água do rio sem ferver, chega no rio Branco e se lasca. É tanta larva que ele num resiste.”

De fato, a riqueza de vida da água barrenta é muito maior que o da água preta. Não que o Negro tenha pouco peixe – aliás, na região de Barcelos, a 440 km de Manaus, o Tucunaré abunda. Mas, se comparado ao Solimões ou ao Rio Branco, o negócio fica pequeno. “No rio Branco ninguém toma banho despreocupado como no Negro… Lá piranha é perigosa e macaco, pra não perder o dedo, toma água de taboca, hahaha!”


GAIOLA: O recreio em que viajamos

A VIAGEM SEGUE NO ACONCHEGO DE NOSSAS REDES, atadas no convés superior. Ao meu lado tenho Seu Antenor Ribeiro, 57, caboclo de Barcelos. Do outro Geraldo Azeredo, 45, comerciante de carros em São Gabriel. Ao lado dele está Dona Anésia, 62, senhora eloqüente, filha de índia com português que vive em Santa Isabel do Rio Negro, a 750 km de Manaus. Conversamos todos como se há muito nos conhecêssemos, e assim é nos recreios. A prosa vai dos grandes incêndios aos Coronéis de Barranco, senhores feudais da borracha que nos idos de 1950 ainda imperavam na calha do Negro. Mas tento manter o foco: Água!

Aqui e acolá um passageiro joga um lixo no rio, um mau hábito que aqui é cultural. Até sentirem as conseqüências na própria pele ou verem alguém na TV dizer que aquilo prejudica o rio em que vivem, continuarão jogando. A bem da verdade, é muita água e pouca gente, e esses lixos não chegam a fazer nem cócegas na pele escura do Negro. Outro dia, um analista ambiental do IBAMA confidenciou-me que na beira de Manaus a água é poluída, mas oito quilômetros depois já está limpa de novo.

EM SÃO GABRIEL, O NEGRO ESTÁ SECO. Pergunto a Geraldo como anda a situação por lá. “Olhe, o prefeito muito do esperto decretou estado de calamidade. Tá lá, ganhando mantimento adoidado, e mesmo assim o quilo da cebola chegou a R$ 10 outro dia. Mas ainda não faltou nada”, diz. “Nem peixe?”, insisto. “Peixe em São Gabriel? É lenda, vem tudo de Barcelos. Lá no alto rio só tem pedra, mesmo.”

Pergunto ao Seu Antenor, homem de excelente memória, se já houve seca igual em Barcelos. “Rapaz… todo ano o rio enche e todo ano o rio seca, né? Mas o senhor conhece a boca do rio Caurés?”, ele pergunta. No que respondo que sim, ele continua: “Pois em 1964 aquela baía imensa ficou que foi só o corregozinho, mesmo. O chão espocou todinho com o sol – queria que o senhor visse! Mas aqui todo caboclo antigo conta da seca de 1925, a maior de que temos lembrança no Negro. Nessa nem o fio d’água ficou. Junto com a seca veio o Grande Incêndio, que arrasou toda a floresta do médio Negro, do Jauaperi ao Jufaris, Aracá, Demeni. Toda essa mata que o senhor tá vendo agora é crescida depois de 1925.”


EM CASA: Seu Antenor com sua família

Cinco minutos de silêncio. Fico pensando não só no nevoeiro mórbido que deve ter tomado conta do rio durante as semanas que sucederam esse incêndio, mas também nas últimas notícias sobre o aquecimento global e sua relação com as recentes secas da Amazônia. Se procedem ou são alardes sensacionalistas, ainda não sabemos. O fato é que tais fenômenos sempre são classificados como “os maiores dos últimos 30 ou 40 anos” – isso quer dizer que há 40 anos houve uma maior?

É preciso mais estudos e dados sobre o tema, disto não resta dúvida. E ouvir mais os locais sobre os fenômenos da natureza. Pois se quando criança me diziam que ao desmatarem a Amazônia ela viraria deserto, hoje sei que não é bem assim. Há cinco anos vivendo a realidade da selva, posso afirmar que seu poder de regeneração é incrível. Esta mistura de água com calor é bombástica: faz a vida explodir!

E a relação do caboclo com a água? Como com tudo aquilo que se tem em demasia, ninguém parece dar muito valor, não. Lá está ela como sempre esteve. É a estrada, o banheiro, o tanque de lavar roupa, a plantação onde se colhe o peixe. Se numa temporada seca, na outra enche, e assim tem sido desde que a Amazônia era uma grande planície rodeada de platôs e cordilheiras. Às vezes chove mais, às vezes chove menos, e assim caminha – ou melhor, navega, enquanto consegue –, a humanidade.

Kleber Bechara é publicitário e documentarista. Em 2006, dirigiu o documentário “A próxima refeição”, sobre a busca quase que diária da população ribeirinha por subsistência. Há cinco anos vive numa casa flutuante às margens do Rio Negro, na altura de Novo Airão.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2007)