Vôo livre


CORAGEM: Sabiá se joga do Corcovado e conta até cinco antes de abrir o pára-quedas

Por Marcela Chaves

“PREPARAR PARA O SALTO! Obrigado equipe, obrigado paizão e obrigado meu anjo da guarda. Três, dois, um… fui”. Esse “até logo” com cara de “adeus” foram as últimas palavras do base jumper Sabiá antes de saltar do Corcovado, no Rio de Janeiro – um feito inédito até então.

O Corcovado foi apenas o começo de um vôo triplo pelos ares cariocas. Depois de saltar da casa do Cristo Redentor, o fera dos ares – batizado Luis Henrique Tapajós – pularia também, nos próximos meses, de dois outros cartões postais cariocas: o Pão de Açúcar e o Dedo de Deus, aquela montanha rochosa de 1.692 metros de altitude que tem o formato de um indicador apontado para o céu. Realizadas entre julho e setembro de 2006, essas foram apenas as mais recentes peripécias do Sabiá, que em 22 anos no ar acumula um currículo de mais de 10 mil saltos em 22 países e cinco continentes, incluindo dezenas de títulos e recordes no pára-quedismo, sky surf e base jump.

O velho desejo de encarar esse desafio renasceu num bate-papo com alguns escaladores do Rio de Janeiro, profundos conhecedores das montanhas do Estado. A diferença entre o pára-quedismo tradicional e o base jump é o local de onde o atleta salta: no primeiro de um avião, no segundo de bases fixas. A sigla b.a.s.e. é a junção das iniciais de building (prédio), antena, span (vão da ponte) e earth formation (penhasco ou montanha). Normalmente, o maluco salta de altitudes baixas, sem pára-quedas reserva, o que não deixa margem para erros e torna a colaboração técnica de escaladores fundamental nos saltos de montanha, principalmente na busca por um local perfeito para a saída. No tríplice desafio carioca, Sabiá contou com a ajuda dos montanhistas Flávio Carneiro, Arthur Estevez, Hillo Santana e eu. Juntos, encontramos locais com os pré-requisitos: parede com inclinação igual ou superior a 90 graus, uma base legal para a impulsão, altura suficiente para a abertura do pára-quedas, áreas ideais de pouso no entorno, entre outros fatores.

O primeiro desafio foi bacanérrimo. Sabiá é fascinado pela imagem do Cristo Redentor, a estátua gigante que abraça a Cidade Maravilhosa do alto do Corcovado, a 710 metros do nível do mar. A apreensão ficou por conta do local do pouso, que deveria acontecer precisamente no Parque Lage, a única clareira em meio à floresta. Pára-quedas dobrado na véspera, escaladores posicionados e Sabiá pronto, só faltava esperar um momento sem vento, num dia que não poderia estar mais perfeito. Cinco segundos de queda-livre e o pára-quedas se abre. Gritos de euforia. Mas, saltar é só metade da aventura. É preciso pousar com segurança. Havia um pouco de vento no local e Sabiá teve que passar rente às árvores para pousar perfeitamente no parque. Vitória!

NO PÃO DE AÇÚCAR, O SALTO FOI PELA FACE SUL e o pouso na pista de corrida Cláudio Coutinho, que circunda a montanha. O mais difícil foi escolher um dia sem vento – que costuma uivar por lá –, além da existência de uma saliência na pedra que “apimentava” o salto. “Base jump não é para qualquer um, não é para qualquer hora e não é para qualquer lugar. Tem que respeitar e só saltar quando dá”, explicou o paciente homem-pássaro. Foram várias investidas até que rolasse o salto. Três segundos de queda-livre e um susto: o pára-quedas passou muito perto da parede, chegando a rasgar o piloto que comanda a abertura, coisa raríssima de acontecer. Habilidosamente, Sabiá conseguiu pousar a salvo, mas prometeu não repetir a descida. “Não vale a pena. Mas o que está feito, está feito. Vamos ao próximo!”, disse.

Já o salto do Dedo de Deus, palco da primeira escalada brasileira em 1912, exigiu uma logística maior, pois chegar ao topo não é moleza. Foi um dia inteiro de caminhada até o cume, seguido de uma noite maravilhosa sob a luz de lua. A tentativa aconteceria de manhã. Pela primeira vez, Sabiá saltaria vestindo um wingsuit, roupa que dá ao atleta asas como as de um morcego. A adrenalina triplicou. “É uma loucura fazer o que ninguém nunca fez. A gente não tem regra, não tem parâmetro”, confessou momentos antes do salto, ansioso.

A wingsuit faz com que o tempo de queda-livre aumente absurdamente. Foram 18 segundo até a abertura do pára-quedas. Da montanha, víamos o maluco voar da pedra rumo a Teresópolis sem puxar o piloto, imaginando que algo ruim estivesse acontecendo. Pára-quedas aberto, Sabiá começou o que seria a navegação mais casca grossa de sua vida, nas suas próprias palavras. Não havia ninguém na base para auxiliar o pouso e uma ventania aterrorizante resolveu dar o ar da graça. Mais uma fez, Sabiá provou por que é o base jumper mais habilidoso do Brasil e pousou na boa. “Sei lá o que estou sentindo agora. Feliz, por ter feito mais essa na vida”, desabafou para a câmera instalada no capacete. Esse é o Sábia, um cara que não perde tempo perguntando por que as pessoas se metem em perrengues. Para ele, somos assim e pronto. Não importa os feitos anteriores, o olhar sempre se volta para o que está na frente, num mundo de infinitas possibilidades.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2007)