LUTA SUJA: Lutador ficam com o corpo manchado da terra que cobre o ringue
Por Cassio Waki
Fotos Vitor Motomura
Os cabelos longos, lisos e bem pretos caem levemente no rosto, enquanto as mãos, apoiadas no solo, dão apoio às pernas para um tranqüilo “espacati” – aquele alongamento em que abrimos as pernas até encostarmos (ai!) a virilha no chão.
O sol ainda nem havia ameaçado aparecer na Terra do Sol Nascente (são 5h30 da manhã), mas os flexíveis músculos dos lutadores de sumô já começavam sua árdua rotina de alongamentos que seria fácil para uma ginasta, complexo para um aluno de ioga e inimaginável para um cidadão comum. Presenciamos, in loco, o treinamento e nos espantamos ao ver uma pessoa de 150 quilos fazendo tudo isso sem esboçar qualquer expressão de dor.
Os lutadores de sumô ou sumotoris são seriamente gordos, mas tão flexíveis quanto a ginasta Daiane dos Santos. “Flexibilidade é fundamental para lutar sumô. Abrir o espacati é básico; se você não fizer, o treinador vai pegar no seu pé”, conta o brasileiro Fernando Kuroda, 30 anos, que competiu durante 12 anos no Japão e se aposentou em 2003 devido a sérias contusões nos joelhos. Kuroda pertence ao seleto grupo dos lutadores que atingem a primeira divisão do sumô nipônico – para cada mil lutadores da segunda divisão, há apenas um do grupo de elite. “Demorei quase dez anos para chegar a esse nível. Foi muito difícil, mas valeu a pena”, conta.
Quando Kuroda fala “muito difícil” multiplique por, no mínimo, três vezes. Aí, a gente começa a ter uma idéia do perrengue. Eles acordam e treinam cinco horas e meia seguidas, sem comer. “Não tomamos café da manhã, caso contrário, a gente vomitaria tudo”, diz Kuroda. Cada atleta luta no mínimo 35 vezes ou uma hora e meia sem parar. Em cada luta, enfrentam dezenas daqueles característicos choques entre os lutadores. Dói ao ver, ouvir ou imaginar a pancada. Após o combate, as peles ficam vermelhas na altura do tórax, por causa do forte impacto. Um movimento mal encaixado pode custar caro. Cabeçadas são freqüentes e produzem cortes próximo ao supercílio ou ao nariz – sangrar faz parte – e até lesões nos músculos do pescoço. Também é comum deslocar ou quebrar algum dedo, já que as mãos são muito usadas nos golpes. Flexões e agachamentos fazem parte da preparação física – imagine levantar tantos quilos com apenas dois braços ou sustentar tanto peso somente com duas pernas.
A parte mais árdua do treino é o final. Um lutador – geralmente um dos mais fortes do grupo – fica no centro da arena, onde irá receber choques consecutivos de um oponente, que tem a missão de tentar derrubá-lo ou empurrá-lo para fora do círculo. Nessa tentativa, é comum o oponente cair no chão várias vezes, levantar-se buscando o ar onde não tem, e chegar ao limite, fazendo o nariz sangrar e os olhos lacrimejarem. Se, por um instante, os outros sumotoris acharem que o lutador está fazendo corpo mole, chutes ou puxar pelo cabelo são técnicas normais para fazê-lo levantar. “Esse é o treino básico. É feito pra passar do limite. O engraçado é que assim que a respiração volta ao normal você vai pra cima com mais vontade”, conta Kuroda.
DEPOIS DO TREINO, COMEÇA uma vida ainda mais dura do que dentro da arena de terra batida. Os lutadores não voltam para a casa, porque a casa deles é a academia. Dormem, comem, treinam e convivem, tudo lá dentro. “É como uma família. Um lutador chega à academia aos 15 anos e só sai de lá por desistência ou ao se aposentar, por volta dos 35 anos”, afirma Oscar Morio, vice-presidente da Confederação Brasileira de Sumô. E, nessa convivência, a hierarquia rege suas vidas. Os sumotoris de primeira divisão da academia possuem cerca de três lutadores, que servem como empregados. Fazem compras no supermercado, lavam e passam suas roupas, preparam seu banho – enfim, são encarregados de todos os afazeres domésticos de seus mestres.
Essa etiqueta é parte das raízes do sumô, o único esporte nipônico que mantém suas tradições rigorosamente – só não podemos dizer que mantém 100% de suas raízes porque, nos primórdios do sumô, a luta só acabava quando um dos lutadores morria. Por isso, em grande parte, o esporte é tão venerado pelos japoneses, que sabem que a vida dos lutadores é repleta de privações. Outro motivo de tanta adoração é que as raízes também estão ligadas à religião oficial do país, o xintoísmo. A arena fica sempre embaixo de um portal religioso, os juízes se vestem como sacerdotes e os lutadores purificam suas lutas jogando sal no solo do combate.
Fora da arena, os sumotoris mantêm o estilo de vida tradicional no comportamento e nas vestimentas para os dias de descanso e, especialmente, para as competições. O corte do cabelo, o quimono e as sandálias de madeira são raramente vistos entre os “japoneses-mortais”, mas entre os lutadores é vestimenta de praxe. Não há quem não os admire – ou até se aventure num pedido de autógrafo ou foto – quando passeiam pelas ruas em seus horários livres, geralmente, das 16 horas às 18 horas. Essa admiração é vista também no salário que recebem. “A primeira divisão é encarada como um grupo de artistas. Além de ganhar, no mínimo, 10 mil dólares mensais, eles possuem muitos fãs, padrinhos e patrocinadores”, diz Morio.
NÃO SE DEIXE ENGANAR PELAS APARÊNCIAS. Lutadores de sumô não são lentos nem fracos por não serem musculosos e nem passam seus dias comendo fritas e hambúrgueres. Eles fazem apenas duas refeições por dia de muito, mas muito arroz e um cozido adocicado com vegetais e algumas carnes. “É realmente uma comida leve, pois tem pouca gordura. Acho que o que engorda é o arroz, porque em seis anos engordei 60 quilos. Pulei dos meus 70 para cerca de 130”, conta Kuroda, que recentemente abriu em São Paulo um restaurante, o Bueno, especializado nesse prato.
Os menos graduados comem praticamente o que sobrou da refeição dos mais fortes e ainda têm de lavar a louça. Só aí podem descansar. São duas horinhas preciosas de sono das 13h30 às 15h30, para depois limpar a academia. Pois é: lavar os chuveiros, banheiros, quartos, corredores, tudo. “Além de ter aprendido a cozinhar, lavo o banheiro melhor do que a minha empregada”, brinca Kuroda. Somente após a sessão limpeza vem o horário livre.
No Brasil, o sumô não é levado tão a sério como em seu país de origem, mas é praticado desde que o primeiro japonês pisou aqui, por volta de 1910. Movido a apostas, somente na década de 1960 organizou-se. Hoje, o torneio nacional está em sua 45ª edição, que acontece nos dias 22 e 23 deste mês em Araçatuba, interior paulista. Até agora, o Brasil já exportou nove lutadores para o Japão, sendo que três deles atingiram a divisão de elite. “O treinamento é difícil, mas o maior desafio é se adaptar a uma nova cultura. O nível do sumô japonês é muito alto, mas há lutadores brasileiros com muito potencial. Porém, só potencial não adianta – é preciso ter cabeça para aceitar viver de um modo completamente diferente”, diz Kuroda.
PARA PRATICAR
Se você se interessou pelo sumô e quer arriscar uns treinos, entre em contato com a Confederação Brasileira de Sumô e peça a lista de academias em que se pode treinar a modalidade no país. Tel.: (11) 3873 7872 e e-mail: mauzler@uol.com.br.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2007)
AULA: Você encara uma sessão de alongamento com ele ?
EXTRA: Lutador faz exercícios a mais como punição por ter faltado aos treinos